quarta-feira, 11 de abril de 2007

Vida Mansa

Decidida a permanecer mais dois dias aqui no albergue Paine Grande, despeço-me do simpático e bem humorado guia Daniel, meu companheiro durante esses 6 dias de permanência no parque. Ele não vê a hora de regressar a Puerto Natales pois sua mulher, há pouco, pariu uma menininha, a Josefa, e Dani, como um autêntico canceriano, não vê a hora de lamber sua cria. O dia está muito ventoso, ora o sol aparece ora se esconde, mal dá pra se avistar os Cuernos Norte e Principal. Sobre o valle del Francês paira uma pesada e escura nuvem, sinal de que ali as condições atmosféricas permanecem as mesmas de ontem, em nada se alterando. O lago Pehoe com sua água verde-turquesa resplandece quando o sol digna-se em aparecer, tornando mais dourado o capim que cresce à sua margem. O lindo cerro Ferrier coberto de neve brilha ao longe, e vez por outra escuto o pio engraçado dos tiuques. Eu que havia permanecido aqui, na esperança de que hoje fizesse bom tempo de modo a retornar mais uma vez ao valle del Francês, entro no refúgio depois de me despedir de Victor, um santiaguino muito afável que conheci durante a primeira caminhada no vale, igualmente, hospedado no albergue. O refúgio Paine Grande, situado em frente ao lago Pehoe, é um edifício de alvenaria e estuque, com dois pisos. Construído há três anos é mais sofisticado e amplo que o las Torres. Dormitórios acarpetados acomodando três beliches duplos além de pequenas tulhas para se colocar objetos pessoais, duas salas de convivência com lareiras, por andar, também forradas com carpete. O banheiro foi, de todos os refúgios, o melhor. Salamandras espalhadas pelos corredores, pois não há ainda calefação; em compensação a luz elétrica é forte e fica acesa até bem mais tarde do que nos Cuernos. Um enorme refeitório e até um pub localizado em seu mezanino!Há, inclusive, uma lojinha de conveniência onde são vendidos chocolates, pacotes de massa, biscoitos, arroz, cigarros, pilhas, latas de atum e de molho de tomate entre outros gêneros alimentícios. Infelizmente, aqui, as refeições não são lá essas coisas. Feitas em escala industrial, usam um tipo de tempero que faz com que a comida tenha um gosto pra lá de insosso. Servem, contudo, vários tipos de lanches. Dos amplos janelões do refúgio, é possível avistar nitidamente os cerros Paine Grande, Bariloche, os Cuernos Norte e Principal, além dos cerros Espada e Hoja. Hoje tirei o dia pra descansar: li um bocado de um livro de aventuras, A Través de la Patagonia, comprado em Puerto Natales, sobre uma inglesa, a Florence Dixie, a primeira mulher turista a percorrer estas bandas do sul do Chile, a cavalo, no final do século XIX. Escrevo um pouco em meu diário enquanto beberico uma taça de vinho. Chama-me a atenção um casal de australianos, ela, com 63 anos, ele, 67. Fico sabendo que ambos são trekkers há muitos anos, contam-me que já conheciam a América do Sul, inclusive o Brasil, onde navegaram pelo Amazonas desde Belém até Iquitos. Entabulo papo com o guia deles, um atraente chileno, natural da Terra do Fogo, que me confidencia com uma voz grave e pausada "estoy harto de ser guia". Troco idéias com um inglês, meio pretensioso ele, contudo, desculpo-o, é tão jovem. Queixa-se de que está de saco cheio de seus compatriotas, preferindo, no momento, viver no Chile, explica, " onde as pessoas são mais sinceras e afetuososas. Consigo trabalho lecionando inglês, junto um tanto de dinheiro, e depois viajo mais outro tanto," acrescenta. Conheço, ainda, uma escocesa, dona de uns lindos e grandes olhos azuis, a Kate. Estudante de medicina, conseguira um estágio num hospital situado nas ilhas Malvinas. Como lhe sobrara uns dias de férias, aproveitara para conhecer o parque. Dorme, coincidentemente, no mesmo quarto onde estou alojada. Foi assim que combinamos, já que vamos fazer a mesma trilha amanhã, em irmos juntas até lá. E assim passam as horas. Desisto de fumar, pois o vento muito forte torna bem desagradável permanecer no terraço ao lado do refúgio. A noite, há muito, apossou-se do dia, e eu, cansada de nada fazer, resolvo tomar o rumo do berço. Amanhã, coisa boa, espera-me mais um dia de caminhada, irei até o lago Grey!

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