domingo, 21 de novembro de 2010

As cidades reais: Baktapur e Patan

Carlos e Itamar não se encontram mais em Kathmandu. O vôo deles, estranhíssimo, dá uma ré até a China, pra então seguir rumo à Europa, com nova parada, dessa feita, na Holanda. As tais de “conequições”!! Só daí eles retornam ao Brasil. Eu, que saio um dia depois deles, chego no país antes dos dois!! Peninha que já se foram. Foi tão agradável tê-los como companheiros de passeio e de mesa! Reservo o domingão pra conhecer Baktapur e Patan que, juntamente, com Kathmandu, foram construídas para servirem de cidades reais. Situadas no vale de Kathmandu, foram declaradas patrimônio histórico da humanidade pela UNESCO. De guia, Birju que fala espanhol. Dá algumas explicações sobre a trindade máxima do Hinduísmo, os deuses Brahma, Vishnu e Shiva que, em realidade, são três manifestações diferentes de uma mesma divindade, conhecida como Trimurti. Brahma representa a criação, Vishnu, o equilíbrio entre as coisas e suas ações e reações, já Shiva significa o poder que destrói, oferecendo a possibilidade do renascimento. Afora essa tríade, o hinduísmo comporta 33 milhões de outros deuses, simbolizados por avatares, retirados dos reinos animal, vegetal e mineral. De tudo isso sou inteirada enquanto percorremos os 15 km entre Kathmandu e Baktapur. Embora a distância não passe dum estalar de dedos, o tráfego intenso faz com que demoremos quase uma hora até lá. O complexo de templos e palácios, conhecido como a Durbar Square de Baktapur, me impressiona bem mais que a de Kathmandu. Grandes esculturas de animais e deuses guardam as fachadas dos edifícios, construídos com terracota, em estilo pagode, cujas portas e janelas, em madeira escura, ostentam soberbos trabalhos em talha. Vistas de determinado ângulo, as principais stupas exibem um design altamente moderno com seus vários pisos se sobrepondo uns aos outros. Em 1934, um terrível terremoto, com registro de 9º na escala Richter, causou muitos estragos em diversas construções. Afora isso, são evidentes os sinais de deterioração causados também pela má conservação dos prédios, típico de país pobre. Impossível tirar fotos sem que haja alguém na frente dum templo ou palácio. E não são turistas, não. A maior parte dos freqüentadores são nepaleses. Os comerciantes ambulantes não dão trégua. É uma verdadeira perseguição. Por onde quer se vá, oferecem sempre os mesmos badulaques: brincos, colares, pulseiras e rodas de oração. Há que se tomar cuidado quando se compra algum objeto em turquesa ou lápis-lázuli porque podem ser feitos de resina. Às vendedoras não basta dizer não, elas desconhecem tal palavra, tamanha a obstinação em tentar vender suas mercadorias. Tem de se ter uma paciência de Jó pra não se irritar e mandar à merda toda aquela simpática gente. Ou, o que é pior, não resistir à tentação e comprar tudo que é bugiganga motivada pelo preço, baratíssimo (4 colares a 1.000 rps valem 25 pila), pra depois, na calma e silêncio do quarto, perceber que, de grão em grão, os nepaleses esvaziaram a minha bolsa me convencendo a adquirir material tão vagabundo! Em Patan, nova sucessão de palácios e templos semelhantes aos que já vi em Baktapur. Já estou meio enfastiada de tanto palácio e templo, ainda bem que o passeio está acabando. Às 15 horas, já de volta à Thamel, compro um marionete representando Ganesh. Desde que cheguei, me encantei pelo brinquedo. À noite, saio pra dar uma banda e entrevejo entre os prédios, uma lua cheia brilhando no céu. Nas ruas, a eterna trilha sonora do ruído contínuo das buzinas fazendo fon fon. Que bagunça adorável!! Quando volto ao hotel, ligo a tevê. Pois não é que virei fãzoca dos filmes de Bollywood? Sessenta por cento tem cantoria e dancerê. Todas as heroínas têm cabelo lisérrimo com “aquele” balanço, conseguido à base de escova e chapinha. Em certas películas, soltam umas frases em inglês, nada a ver com o contexto do filme, porque não se trata duma conversa com um estrangeiro mas entre eles, indianos. Os gêneros de entretenimento vão dos dramalhões rasgados - dão de 10 a zero nos mexicanos - às comédias tipo pastelão. Durmo com a tevê ligada e sou acordada, segunda-feira, por uma animada cantoria vinda da tevê. São meus heróis de Bollywood me dando bom-dia!! Conforme combinara com Nara, que retornou ontem de Lukla, vamos os dois tomar café no Pilgrim, misto de livraria, bazar e restaurante vegetariano. Conta que um homem em Lukla, irritado com a demora dos voos, jogou uma cadeira no vidro duma janela. Como meu vôo é à tarde, dou uma última banda pelas ruas de Thamel, sendo, assim, surpreendida com a curiosíssima advertência das lavanderias sobre o prazo de entrega das roupas: se chover ou o tempo estiver nublado, o atraso na devolução das vestimentas resta justificado. Essa é boa, hahaha!! Reencontro, aproveitando também suas últimas horas na cidade, o pessoal da Malásia que conheci em Lukla. Contam que foram de avião até Jiri de onde pegaram um ônibus, chegando ontem, após uma sacolejante viagem de nove horas. Faço as últimas compras, adquirindo um banquinho feito de vime colorido, a coisa mais lindinha, chamado muda que coube apertadinho no sacolão North Face. Almoço um quiche de cogumelos e uma tartelete de morango, comprados numa padoca perto do hotel. Baratas e boas as guloseimas! Sunir me leva até o aeroporto de onde vejo as fumarolas das cremações realizadas em Pashupatinath. Pensando bem, tanto o aeroporto quanto o templo hinduísta não deixam de ser lugares de partidas. Chego em Doha às 2 e 30 da madruga. Em razão da diferença de fuso horário entre Qatar e Nepal, tenho de atrasar o relógio pra meia noite, o que me obriga a aguardar 10 horas nesse aeroporto, sem conforto algum, cujos atrativos se resumem a um free shop mixuruca e três lanchonetes. Descubro um lounge e pago os 40 dólares exigidos. Dessa forma, tenho o direito de, se quiser, tomar um banho, me refestelar em poltronas confortáveis, beber e comer à la vonté, além de acesso à internete até o momento de embarcar. Durante a longa espera de meu vôo ao Brasil, agradeço mentalmente, com uma frase aprendida com Nara “Maile dherai ananda liye, tapaiko Nepal ra nepali manchhe sanga, Dhanyabad!”, que numa tradução livre significa “eu gostei muito de você Nepal bem como de seu povo, obrigada!”. Escuto, em resposta, um coro silencioso de “Namastê, Beatriz!”

sábado, 20 de novembro de 2010

Pashupatinath: Uma incursão ao reino dos mortos

De volta a Kathmandu, Sunir me hospeda num hotel chique, situado em outro bairro que não Thamel. No sábado, exijo, pra sua surpresa, o retorno imediato ao alvoroço do agora familiar bairro. Faz muito mais meu estilo. Lá sinto-me em casa. Instalada num hotel furreca, saio eu pra caminhar pelas apinhadas vielas, quando escuto alguém, chamando “Bea...Bea”. Viro-me e vejo um jovem loiro, sorrindo calorosamente. Não o reconheço de imediato, o que não me impede de abraçá-lo com efusividade. Identifica-se e recordo dele sem demora. É o fofo do Carlos Eduardo Santalena, da Grade 6, operadora paulista de turismo de aventura. Conheci-o em La Paz, em junho, quando fui fazer o Huayna Potosí. Gentilíssimo, ajudou-me a escolher um isolante embora estivesse ciceroneando clientes. Ficamos de conversa naquele fervo, que são as ruelas de Thamel, eu, ele e um cliente, alagoano pra lá de simpático, o Itamar. Informam que vão a Pashupatinath, templo hinduísta onde há um crematório a céu aberto que funciona 24 horas ininterruptamente. Não dá outra. Pergunto se posso ir também. Aceita no pequeno grupo, embarcamos num táxi, antes deixando Agnaldo, outro cliente de Carlos, no aeroporto, localizado justo em frente ao famoso santuário. Na entrada, não resisto e compro um colar de flores amarelas que trato de pendurar no pescoço. Como é feriado nacional, a aglomeração de fiéis é intensa no interior do parque onde foi construído o grande templo em homenagem à Shiva, além de outras stupas de menor porte. E aí começa a incrível viagem ao reino dos mortos! O clima é festivo porque, na religião hindu, nada impede que os vivos festejem seus mortos! Já de cara, na entrada, um bando de gente passa correndo e entoando uma ladainha, enquanto empunha bandejas com tochas acesas. No centro duma roda, duas mulheres, enroladas em sáris coloridos, dançam ao som de canções executadas por músicos que dedilham instrumentos típicos. Mais adiante, o bando, que eu vira há pouco, agora circunda um poço onde foram colocadas, na beirada, as bacias ardentes, enquanto cantarolam mais orações. Num canto do grande pátio, onde se situa o templo principal, cujo acesso é vedado aos turistas, mulheres lavam louça, acocoradas no chão. Algumas vacas escarrapachadas jazem lânguidas no meio do caminho, donas absolutas do pedaço. E ai de quem profaná-las! Tudo muito sujo, maravilhoso, muito louco. Itamar, um amador que se dedica com afinco à fotografia, clica adoidado tudo o que vê. Eu não fico atrás. Quando já nos encontramos em frente ao local das cremações, que se realiza à beira do rio Bagmati, somos abordados por um simpático homem de cabelos cuidadosamente pintados de acaju. Hablando um espanhol quase ininteligível, desfia algumas curiosidades sobre a cerimônia de cremação, que se desenrola na margem oposta à que nos encontramos. Convence Carlos e eu a segui-lo até um jardim onde, segundo ele, desfrutaremos uma bela visão dos santuários. A bem da verdade, fui eu a seduzida, mas como estava um pouquinho receosa de ir sozinha, trato de pôr uma pilha no Carlos. O nepalês nos guia num passo acelerado, falando rapidinho naquele espanhol arrevezadíssimo. Decerto, quer pegar outros turistas pra faturar mais uma graninha. Enquanto caminha, larga uma frase de efeito cujo desfecho sabe que agradará em cheio aos turistas. Com ar circunspecto (até então se mostrou sorridente o tempo todo), explica que três são as religiões no Nepal: budismo, hinduísmo e (aqui faz uma paradinha de modo a causar aquele suspense)........ turismo! Ora é claro que sorrimos com a irreverência do chiste. O breve tour chega ao fim e damos algumas rúpias ao esforçado guia que se mostra satisfeito com a módica gorjeta. Afinal, o passeio não demorou mais que 15 minutos. Reencontramos Itamar fotografando diversos sadhus que, em troca de algumas rúpias, se posicionam de modo cativante frente às câmeras dos turistas. Estes homens, embora tenham renunciado a todo tipo de conforto material, cobram para tirar fotos. Um deles, curiosamente, guarda sua féria diária numa bolsa Diesel que mantém ao seu lado. É estranho, porque a bolsa toda modernosa destoa de sua rudimentar vestimenta. Aos sadhus é permitido fumar maconha dentro do perímetro do templo. Imagino quantos hippies na década de 70 não se tornaram sadhus pra poder dar um tapa em seus baseados. Olhando os tais “santos” homens - quer saber duma coisa? - não percebo ar algum de santidade neles. As poses adotadas são automáticas, coisa montada, percebe? Não que sejam falsas - não é isso - mas vislumbro um não sei quê safo neles. Não me convencem. Será que aderiram à globalização de modo a difundir com mais eficiência sua fé? É....vai ver é isso! Bueno, no hinduísmo, reservam-se somente aos homens santos, às crianças e às mulheres grávidas o privilégio do sepultamento porque somente esse pessoal atingiu o nirvana, grau máximo de sabedoria, advinda do conhecimento do universo e de si mesmo. Encerram-se, assim, os sucessivos ciclos de morte e reencarnação que liberam o ser humano da roda infinita de carmas. Ao restante dos mortais, a fogueira, de modo que continue o processo de purificação através do fogo, tantas vezes quantas forem necessárias até a liberação final. Só, então, farão jus ao tão sonhado enterro. Ora, se isso for verdade mesmo, nós católicos, somos santos de carteirinha, porque, de prima, somos jogados no fundo da cova....brincadeirinha! E, pela primeira vez em minha vida, tenho o prazer (?!) de presenciar, ao vivo e a cores, a sequência duma cerimônia de cremação. Um mundaréu de gente, a maioria nepaleses, assiste aos rituais que ocorrem, simultaneamente, em nichos, na margem direita do rio Bagmati. A cada nicho corresponde uma casta. À ala masculina da família do falecido é permitido assistir à cerimônia sentada nos degraus, próxima ao morto. Já às mulheres, reserva-se lugar mais distante. Na primeira etapa, a de lavagem do corpo, o defunto, coberto apenas por um tecido alaranjado, é colocado numa padiola onde fica com os pés mergulhados dentro d’água um par de horas. O morto, um sessentão gorducho, é trasladado da padiola pro chão por seis parentes homens que dão conta do recado com evidente dificuldade devido ao peso do corpo. Entra em ação, um homem, magrinho, já entrado em anos, que cobre o cadáver com um pano branco pra então puxar, agilmente, o pano laranja que coloca, então, sobre o branco. São retirados diversos eletrodos do peito do cadáver bem como a fralda que enrola seu púbis, indicativos de que morreu num hospital, provavelmente, numa UTI. Colares são arrancados sem dó nem piedade. Tudo é lançado no rio onde bóiam milhares de objetos que um dia pertenceram a milhares e milhares de mortos. Terminada a arrumação, é espargido um pó vermelho sobre o corpo. Só então, o defunto é conduzido ao local onde será incinerado numa pira feita com troncos de árvores. Noutra pira, um homem zela pela manutenção da fogueira, atirando maços de palha pra avivar as brasas enquanto com uma vara comprida remexe o que sobrou dos ossos, espalhando-os de modo que a sejam incinerados por completo. O mau odor oriundo da carbonização dos corpos é driblado seja usando toras de sândalo na construção das piras dos ricos, seja jogando pó de sândalo na fogueira onde ardem os menos abonados. Voltamos à Thamel e vamos os três almoçar numa pizzaria cuja decoração maneira é o infalível kit de parede de tijolinho à vista, chão de madeira de demolição, mesas do mesmo material e iluminação intimista de abajur, em tudo remetendo a dezenas de cantinas semelhantes, facilmente, encontráveis em qualquer pizzaria do planeta. Brindamos à vida e, claro, ao nosso agradabilíssimo reencontro. Itamar e eu empunhando taças de vinho tinto, ao passo que Carlitos faz tintim com uma tulipa de cerveja! Tão bom estar viva aiiinda!! Antes de domir, já no hotel, deitada em minha cama, sinto um forte cheiro, que me embrulha um pouco o estômago, emanando de meu corpo...será o que estou pensando? Putz, ninguém merece!! Euzinha, Beazinha, me-re-ço, sim, por ser relaxada e não ter tomado banho depois da cerimônia de cremação a que assisti à tarde em Pashupatinath!! Estou fedendo à........carne queimada........arghhh!!

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Voando de helicóptero

Chegou o dia de minha partida pra Kathmandu. Tsk tsk tsk....estou com um pressentimento de que não será hoje. E não é pessimismo. Apenas lógica matemática! Há 12 aeronaves na frente da nossa e o tempo, que amanheceu razoavelmente bom, nesta quinta-feira, dia 18, começa agora, meio-dia, a fechar novamente. Nuvens compactas invadem o vale...ai ai ai. Tô sentindo que não será hoje que sairei de Lukla! Um clima de preocupação, irritação, impaciência e resignação toma conta das pessoas. No Tara Lodge, a movimentação dos hóspedes, na hora do almoço, é intensa. Aqueles que estavam no aeroporto, aguardando seus vôos, frustrados, retornam para almoçar. Para uns, a situação é dramática porque a data de retorno aos países de origem está vencendo. O tempo, nem aí pros aflitos turistas, piora, mantendo-se cerrado durante o resto do dia. Até os vôos de helicóptero são cancelados porque o nevoeiro é espesso pra caramba. À tardinha, uma chuvinha miúda começa a cair. Eu que prefiro bater perna do que ficar em meu quarto, considerando a "luxuosa" acomodação em que estou instalada, retomo minhas andanças por Lukla. Após a janta, Dhoma, a garçonete que atende no refeitório, põe música nepalesa tradicional, com uma leve batida moderna. É o sinal prum grupo de japoneses, seus guias e porters se porem a dançar. Animados, os japoneses, já meio no tragoléu, dançam desinibidamente. Parecem garotinhos fazendo fuzarca. Até eu entro na roda e ensaio, meio sem graça, uns volteios pelo salão. E não é que os japas comem tangerina, maçã e batata frita, tudo isso regado a uísque?! Servirá talvez como paliativo contra a ressaca do dia seguinte? Coisas de japoneses. Vá lá saber, hehe. Graças a deus, hoje, sexta-feira, o tempo dá uma melhorada, o que permite avistar as montanhas situadas ao sul da cidade. Oxalá os vôos de avião sejam autorizados e eu consiga, finalmente, retornar a Kathmandu. Já estou ficando meio de saco cheio de estar aqui em Lukla, já que sou obrigada a ficar de prontidão, no hotel, porque, a qualquer momento, Nara pode me chamar pra eu ir pro aeroporto embarcar em meu avião. E as conversas, coisa chata, acabam sempre descambando no mesmo assunto: aluguel duma vaga num helicóptero. Alugar ou não alugar, eis a grande dúvida da turistada. Após avisar Nara, saio do hotel (não agüento mais ficar parada) e vou dar uma banda. E quem encontro, fumando um cigarro, bem tranquilo, na rua principal? O glaciologista francês!! Sentados na beira da calçada, conversamos em espanhol. Embora o dia esteja frio, o sol brilha generoso no céu. O movimento de turistas na rua diminuiu consideravelmente. A maioria ou se mandou pro aeroporto ou permanece em seus hotéis, aguardando serem chamados para embarcar. O Starbuck onde, ontem, havia gente saindo pelo ladrão, exibe, hoje, meia dúzia de gatos pingados. Sobram lugares onde sentar. Desde terça-feira tenho conhecido pessoas bem diferentes entre si: um casal, ele de Bahrein, ela tcheca, dois italianos que se conheceram durante o trekking; o mais velho, tranqüilão, ao passo que o mais jovem, só sabe reclamar e soltar muxoxos irritados por causa da estadia forçada; um casal de holandeses em lua de mel; uma escocesa bem jovem cujo trabalho voluntário envolve resgate, na fronteira entre Índia e Nepal, de crianças nepalesas seqüestradas pra diversos fins, nenhum deles lícitos, por óbvio; um casal de alemães super simpáticos que trabalha com mergulho numa ilha na Malásia; um inglês que curte sua lua de mel viajando ao redor do mundo (a mulher ficou em Kathmandu porque não gosta de trekking) e mais dois bombeiros italianos, muito contentes com tudo, que fizeram Island Peak e Mera Peak. Na rua, quando passo, reconheço rostos e sou reconhecida. Há trocas de sorrisos e saudações. O sol que até então dera pinta na cidade se retraiu. Novamente, o tempo se encaramuja...ai ai ai. Até então não estava esquentando muito com minha permanência forçada aqui. Agora, porém, já começo a ficar meio atucanada. De aviões, só dois decolaram. Nenhum, entretanto, chegou de Kathmandu porque, pra complicar mais a situação, o tempo lá está ruim, com muita névoa também. E, de repente, eu na rua principal sou abordada por um turista que pergunta se não topo dividir um vôo de helicóptero com ele amanhã. Quando olho pro lado, vejo Nara fazendo sinais pra que eu não aceite. Respondo que vou pensar no assunto e marcamos de nos encontrar no fim da tarde. Nara, quando eu me livro do homem, explica que está vindo de Kathmandu um helicóptero e que eu posso ir nesse vôo se quiser. O vôo custa 900 dólares!! Resolvo encarar tal despesa, ai ai ai. Fazer o quê, se quero passar mais dois dias em Kathmandu antes de deixar o país na segunda? Vamos até a loja e acertamos o negócio, num clima de nervosismo e ansiedade. Eu passo o cartão, eles me entregam uma quantia em dinheiro. É tudo muito rápido, tenso, porque o helicóptero já está no heliponto do aeroporto. Peço a Nara que pegue minhas bagagens no hotel. O bom guia sai correndo. Eu não entendendo porque me entregaram tal quantia pergunto o motivo. Os intermediários tentam explicar em um péssimo inglês, até que um homem pega a grana e me faz sinal para que eu o siga. Correndo através duns becos, chegamos no portão do aeroporto. Um guarda não permite que entremos embora o homem tente argumentar. De nada adianta, contudo. O guarda mantém-se irredutível. Eu suo frio apesar de não fazer calor, muito pelo contrário! O intermediário, então, vê um homem do outro lado da cerca e o chama. Após breve conversa, enfim, a permissão pra entrar. E descubro que Nara conseguiu fazer com que eu furasse a fila na frente dum monte de turistas que esperavam há mais dias que eu. Nem consigo me envergonhar, tão excitada estou. É minha primeira viagem no besourão mecânico, hehe!! O helicóptero, já com as hélices em movimento, faz aquela ventania, levantando uma poeirama ao redor. Mais três passageiros, todos homens, embarcam junto comigo na aeronave. E da minha bagagem nem pista. Aflita, só me preocupo com os cartões contendo todo o conteúdo visual clicado e filmado até então. Cadê Nara, meu deus? Espio pra fora na esperança de que Nara surja com minha sacolona verde mas nada. E o bichão levanta vôo. É emocionante demais!! Avião nenhum proporciona tão ampla visão como a que se usufrui num helicóptero. E lá vou eu olhando à esquerda e à direita, encantada com tudo o que vejo. Nesse voo, visualizo, perfeitamente, a perigosa topografia no entorno de Lukla, motivo por que é tão difícil e arriscado pousos e decolagens quando há névoa, mesmo que não seja espessa. Assim que decolamos, ingressamos num estreito vale, formado por um maciço de montanhas cuja altura não é inferior a 5 mil metros, num percurso que se estende por mais ou menos 4 km. A viagem até Kathmandu, super tranquila, dura pouco mais que 1 hora. São e salva, encontro a capital, ensolarada, e Sunir, sorridente, a minha espera, me acalma quanto à bagagem. Amanhã, Nara, vai despachá-la....eeebaa!!

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A grande atração turística de Lukla: aeroporto!

Resignada em ficar aqui, sabe-se lá quantos dias mais, rapidinho trato de estabelecer uma rotina. Adoro rotinas, amo ser organizada! Até na minha barraca tudo tinha que ter o seu lugarzinho. Bueno, depois do desjejum no hotel – mingau de aveia com passas – atravesso a rua que margeia o aeroporto e vou circular ao longo da rua principal. Meu destino final duas a três vezes por dia é sempre o mesmo: o Starbuck e seus inúmeros atrativos. Espalhados, em duas ensolaradas e aquecidas salas, confortáveis sofás e poltronas de vime acolhem os clientes. Livros e revistas em abundância não deixam ninguém solitário por muito tempo. Terminais de internete são disputadíssimos. Raramente, encontro algum desocupado. Ah, o wc tem vaso sanitário em vez do buracão! O lugar está sempre atrolhado de gente. Nada como os confortos da civilização ocidental pra atrair o povo. E, como não podia deixar de ser, num atrativo menu, variadas ofertas de chocolates, cafés, bolos, roscas e drinques alcoólicos. O telefone, constantemente ocupado, permite aos turistas avisar familiares e solicitar junto às companhias aéreas adiamento de seus vôos. Consigo captar das conversas entreouvidas, não só aqui quanto no hotel, que o lance é as pessoas se juntarem em grupos a fim de rachar o aluguel dum helicóptero. Se os turistas não se encontram nada satisfeitos com a estadia forçada, o mesmo não se pode dizer dos pequenos comerciantes. Estão felicíssimos, lucrando mais do que nunca com o inusual agito na cidade. Ontem, quando cheguei, a água mineral custava 50 rps, hoje, estão cobrando 100 rps! Sem esquecer das empresas de helicópteros cujo faturamento deve estar nas alturas, já que cada vôo sai em média 600 a 900 dólares por pessoa!! Decido não almoçar no hotel e procuro um restaurante dentre os muitos existentes na rua principal. Não há um que não seja escuro e sujo, salvo dois ou três construídos especialmente para atrair os turistas mais exigentes. Como não sou muito enojada, escolho um, bem sujo e escuro, levada em parte pela curiosidade de conhecer um lugar típico, outro tanto pelo cozinheiro. De feições indianas, o jovem frita, com ar compenetrado, numa enorme panela wok, à vista de quem passa na calçada, um macarrão com legumes. Não entende patavina de inglês o magricela; minha comunicação com ele é feita na base do infalível, e pra lá de antiquado meio de comunicação, usado em priscas eras pelos povos primitivos: o apontar de dedo pro objeto desejado, hahaha. A massa não me decepciona. O mesmo já não posso dizer dos dois doces que provo. O primeiro, super doce, redondo e achatado, tem leve sabor de pipoca. O segundo, uma bolinha maciça, sabe a gosto nenhum. Ambos têm algo em comum: são super gordurosos. Saio dali e resolvo ir até o monastério budista. Lá sou atendida por dois guris que me levam ao interior do templo. Coloridíssimo e claro, não lembra em nada as sisudas e escuras igrejas cristãs. Num altar, cinco imagens de deuses, três com feições humana, dentre elas, Buda, com seu semblante sereno. As demais representam seres de traços animalescos com ares ferozes, assustadores até, eu diria. Tão distinto das imagens dos santos católicos cujas fisionomias, invariavelmente, humanas, exibem doces, resignados ou tristes semblantes. Conversando com os aspirantes a monge, fico sabendo que o regime de estudo é puxado: da manhã à tarde. Já de volta ao burburinho da rua, vou espiar o movimento de aeronaves no aeroporto, a principal atração turística da cidade. A quantidade de gente fotografando e filmando lembra os paparazzi em dia de Oscar. Isso tudo porque o tempo amanheceu e continua bom, com direito a sol brilhando num céu, fracamente, enevoado, o que favorece sobremaneira o pouso e decolagem de vários aviões e helicópteros. Cansada de bater perna na rua principal, resolvo sair do perímetro urbano e vou até o final da pista, onde, separado por um alambrado, foi construído um hotel aos moldes ocidentais. No jardim, uma pequena stupa em cuja cúpula jaz empoleirado um corvo. Um irresistível convite à fotografia. Disparo, como não podia deixar de ser, vários cliques. De onde estou, vejo o rio 50 m abaixo, de forma que resolvo descer até lá. Uma desilusão. A estradinha, respingadésima de lixo, conduz a um leito mirrado, com pouquíssima água fluindo. Retorno, subindo por uma ribanceira, igualmente atulhada de detritos. Esses nepaleses não estão nem aí pra conservação do ambiente. São desleixados mesmos. Mas não só o aeroporto é um espetáculo. As crianças são outro delicioso atrativo. Espontâneas, amistosas, acompanham a tradicional saudação de namastê, unindo as mãozinhas em prece. Presencio duas brigas infantis. Numa delas, pontapés e cuspidas fazem parte do vale tudo. Noutra, um dos contendores, um guri duns 6 anos, com ar de provocador nato, sai da briga, após um pontapé bem dado, debochando, descaradamente, da cara desconsolada do perdedor, que chora sem qualquer pudor. A estupidez humana já se manifesta desde a infância. Pra mim um divertimento, pra eles, um pequeno drama. Agora 15 horas, o céu já se encontra nublado pois o sol, enfastiado de tanta generosidade, deu uma de vilas-diogo e se mandou. Pasang despede-se. Inicia sua jornada a pezito, rumo ao seu vilarejo, situado à oeste de Kathmandu. Agora, do grande grupo, só restam eu e Nara!

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Lukla

Em decorrência de Lukla estar atopetada de turistas, eu, que não quero mais ficar em barraca, tenho de me conformar com um hotel xinfrim, porque nos bons não há mais vagas. Meu quarto, um cubículo onde só cabe a cama, localiza-se no anexo do Tara Lodge. O prédio tem toda pinta de ter sido, originariamente, uma residência, daí o motivo de os quartos serem divididos por finos tabiques de compensado. Sem privacidade alguma, até o suspirar do vizinho de quarto é audível. Apesar de os banheiros serem limpos e melhor ajambrados (se comparados com os do trek), com os buracos forrados de cerâmica branca, localizam-se , contudo, no pátio, distantes 30 m do tugúrio onde durmo. Bem desconfortável, portanto. Na barraca, a mão de obra pra urinar era ínfima. Bastava abrir o zíper e pôr o bumbum pra fora. Finalmente, entro pra baixo do chuveiro ao custo de 250 rps. A sujeira é grossa, estou há 14 dias sem ver a cor da água. Por mais espantoso que possa soar, sinto-me mais leve depois do banho. Vou então conhecer Lukla cuja etnia majoritária é sherpa. A minúscula cidade é dividida em dois setores pelo aeroporto. Naquele onde estou hospedada, o forte do comércio são os hotéis, os melhores da cidade, e uma confeitaria alemã, responsável pela fabricação de irresistíveis guloseimas. Do outro lado do aeroporto, situa-se o centro nervoso da cidade em cuja rua principal, uma via comprida e tortuosa, sobressai calçamento de pedra apenas em sua parte “nobre”. As demais são de chão batido. E neste setor fervilha um pequeno centro comercial, oferecendo de tudo um pouco: lojas de roupas, de artesanatos, de equipamentos de escalada e montanhismo. Restaurantes escuros e sujos, autênticas bibocas, constituem um desafio aos estômagos dos turistas. Um barbeiro atarefado não dá conta das meneludas cabeças exibidas por porters e guias. E mais hotéis, estes, contudo, de acanhadésima aparência. Cafeterias, dentre elas, pasmem, uma Starbuck! Fico atônita quando deparo com o logotipo verde da famosa rede americana. Mas  tanta surpresa por quê, guria? Comprovadíssima mais uma vez a tese de McLuhan sobre o planeta não passar duma aldeia - global of course! Três ou quatro pubs oferecem, na happy hour, descontos pra atrair a clientela. Afixado, numa parede, um reclame de sauna exibe homens e mulheres – todos louros -usufruindo, sorridentes, as delícias do banho a vapor. Ferve o movimento na rua principal. Desfilam, além das centenas de turistas de várias partes do globo terrestre, outras centenas de porters que carregam nas costas dokos (cestos de vime), atulhados de tralha das expedições. O destino é muito óbvio: retornam ou rumam pro acampamento-base do Everest. Sons de badalo tilintam no ar: é a madrinha da tropa de dzokyos, anunciando a passagem dos bovinos que trafegam submissos ao longo da rua principal. A última moda aqui em Lukla é uma touca de lã cujo formato imita um corte de cabelo a moicano. Super fashion, o gorro é usado tanto por turistas quanto por guias e porters!! Evidentemente, compro um pro meu filho! Espremo-me contra a parede pra deixar passar uma vaca e seus terneiros. Isso é Nepal! A quantidade de mesas de botão, instaladas ao ar livre, confirma a popularidade deste esporte entre a população nepalesa. Num beco, transversal à rua principal, guris jogam bolita. Bem sujos, são a cara da cidade: tão imundos quanto ela. Mas nem só de jogo de botão são devotos os nativos de Lukla: numa mesa de pingue pongue, o revezamento de jogadores é intenso. Mas os esportes de mesa não param por aqui, não! Descubro, numa viela lateral, amplo e mal iluminado salão de sinuca que tem, sob as mesas, sacos plásticos contendo alfafa!! Enquanto as galinhas sempre de cabeça baixa ficam naquele cisca cisca incessante, os belos e emplumados galos, de crista erguida, cocoricam vaidosos no meio da rua. Muito entra e sai duma stupa cujo ritual consiste, primeiramente, em fazer rodar as pequenas rounding many (rodas de oração), colocadas numa antesala; ato contínuo, os fiéis rodam a maior que ocupa uma sala inteira. Quando acionada, produz um tilintar agradabilíssimo aos ouvidos. No final da rua, vê-se o pórtico de entrada do Sagarmatha National Park que conduz não só ao Everest como a outras duas montanhas com altitude superior a 8 mil metros. Compro um petisco indiano, chamado samosa. Trata-se duma trouxinha de massa recheada com batatas e cenoura frita. Uma delícia! Vez por outra, numa brecha de bom tempo, escuto o ruído dos helicópteros que decolam ou pousam no aeroporto Tenzing-Hillary. Entretanto, nenhum ruído de avião se faz ouvir porque a posição topográfica de Lukla não favorece o pouso e a decolagem de aviões quando há névoa. E isso se explica em razão de, bem à frente da cidade, situada num platô, erguer-se uma muralha de montanhas cuja altitude supera os 6 mil metros. Acomodada num dos salões de refeição, escolho no variado cardápio o que será minha janta. Enquanto espero, assisto tevê juntamente com outros turistas e guias. O astral, apesar de toda a incerteza sobre os vôos, é animado. A decoração da peça segue o estilo chinês e, por óbvio, a cor predominante não poderia deixar de ser outra que não a vermelha. Diante de mesas baixas com aspecto de escrivaninha, longos bancos de madeira cobertos com tapetes. Enfeitam os peitoris das janelas grandes baldes, isso mesmo que vocês estão lendo, grandes baldes de plástico contendo uns, plantas naturais, e outros, flores artificiais. Estas, de gosto duvidoso, são enormes, horrendas! E não estou exagerando, não!!

domingo, 14 de novembro de 2010

58 anos na trilha...ebaa!!

O domingo amanhece lindo. O céu azul não lembra em nada o dia anterior, cinzento e frio. Deixamos Tangnag, cedinho, às 7. A paisagem árida, constituída quase que, exclusivamente, por pedra e areia, vai adquirindo outra feição, à medida que me aproximo de Khote. Abundante vegetação brota nas encostas das montanhas, ocupadas agora por largas extensões de bosques de pinheiros. A coloração até então bege do cenário é substituída pelo luxuriante verde das matas. Pedras cobertas de espesso musgo denunciam um clima menos seco nesta parte do vale do Inkhu Khola. E bruscamente o tempo muda, quando estamos a não mais de 40 minutos de Khote. Nuvens envolvem o vale e uma espessa bruma impede a visualização além de 30 palmos de distância. Agora em Khote, após 3 horas de pernada, descanso numa sala improvisada de cozinha. Faz um frio danadinho tanto que sai fumaça de minha boca. Nara prepara um almoço rápido, composto de batata frita, omelete e sopa com muito alho e gengibre...ebaaa!!! E como não poderia deixar de ser o infalível chá. Num cenário envolto em brumas, deixo a aprazível vila Khote e ingresso num bosque de pinheiros de cujos galhos pendem gotas de orvalho. O tempo, úmido e frio mais o céu encoberto, faz com que a tarde mostre uma feição de 18 horas embora o relógio aponte tão-somente 13 horas! Como Thaktor se localiza mais acima de Khote, as subidas são mais freqüentes que as descidas. O cansaço acumulado, resultado do longo trekking, já se faz sentir. Paro algumas vezes pra descansar. Quando chegamos a Thaktor às 13 e 45, Nara indica onde será armada minha tenda: no interior duma estrebaria! Isso tudo porque cai uma garoa miúda e constante e dessa forma ficarei melhor abrigada. Ele não é um amor de atencioso? Tal qual o Menino Jesus, comemoro meu nascimento num paradouro de animais, hahaha! Porque hoje faço 58 anos!! E quer coisa melhor do que passar meu niver neste país encantador, rodeada de gente alto astral? Presente bacana de niver me dei hein?!! O fofo do Nara faz um bolo em minha homenagem e desenha com chocolate “Beatriz Happy Birthday”. E, quando eu apago as velas, os três porters, mais Nara e Pasang batem palmas. Tão emocionante!! Só de lembrar me arrepio toda!! E nos pusemos a conversar. Pasang, estirado sobre o banco e apoiado sobre um cotovelo, mais escuta do que fala. É todo sorriso. Nunca o vira assim antes! Exibe engraçadas manchas claras ao redor de ambos os olhos, causadas pelos óculos escuros. Parece um texugo o querido Pasang. E conversa vai, conversa vem, sou informada de que seus nomes são dados, conforme o dia de seus nascimentos. Pasang, por exemplo, cujo significado é sexta-feira, assim foi chamado porque veio ao mundo neste dia da semana. Pemba, a dona da Mera Guest House and Restaurant, situada em Khote, deve seu nome porque nasceu no sábado. Aos nomes acrescentam as etnias: Pemba Sherpa, Pasang Sherpa, Nara Tamang e por aí afora. Embora o papo esteja bom, vou me deitar porque faz muiiitooo frio. A segunda-feira, data da Proclamação da República no Brasil, amanhece com aquela cara nojenta de segunda-feira que ninguém merece quando está trabalhando: nublada e friorenta. Saimos de Thaktor às 7 e 10 e logo alcançamos o bosque de rododendros. Pra minha surpresa, está tudo coberto de neve. A caminhada se faz difícil devido à placa de gelo que se formou sobre o solo, tornando deveras escorregadia a ascensão. Até o passo Tuli Kharka foi só subida, dura subida, agravada pela presença de neve e gelo. Neve é muito bonito nos filmes e em fotos. Na vida real, é traiçoeira pra caramba, tornando penosa a caminhada! E eu que nem lembrava mais de que a ida fora mais descida que subida, santo deus!! Pasang escolhe uma rota alternativa, mais curta, pra seguirmos adiante. Um pouco melhor porque caminhamos um bom trecho num terreno sem neve e quase plano. Tão nublado o tempo que não se enxerga mais que 15 m a frente. Parece que estou numa cena de Dr. Jivago! E sobe-se, sobe-se e sobe-se. Às 11 e 30, encontramos Nara, juntamente com nossos três porters, nos esperando pro almoço. O bom cozinheiro, que devido à defecção de Nima, passou à condição de líder da expedição, está terminando de preparar meu ranguinho cuja dieta é a mesma de ontem: batatas fritas, omelete e sopa....ebaa!! Apesar de cansada, não perdi o apetite. Avidamente, devoro o a la minuta. Tanto frio faz que meus pés e mãos começam a doer enquanto estou parada almoçando. A descida de Cheeter La até Naulakh La é, relativamente fácil, conquanto exija certa atenção devido a grande quantidade de neve na trilha. A coisa complica mesmo na descida do Naulakh La até Tharki Tanga. A íngreme ladeira, e bota íngreme nisso, coberta por neve e gelo, exige redobrados cuidados. Um tombo aqui e tu rola sem parar uns bons 200 m. Durante os trechos mais críticos, Nara ajuda-me, segurando-me a mão. Quando o terreno permite, coloco um saco embaixo do bumbum, e deslizo ladeira abaixo. Bem divertido meu skybunda, o que arranca sorrisos de Nara e Pasang. Quando nos encontramos a meio caminho da vila, sou surpreendida por um cenário muito mas muito louco mesmo!! Naquele céu toldado por denso nuvaredo, faz-se, sem mais aquela, abruptamente, um claro através do qual o sol escapole, descobrindo várias montanhas ao redor. É inacreditável: apenas, no passo Naulakh, tempo bom, no restante da região, tempo totalmente encoberto. A descida até Tharki Tanga dura 3 horas e, quando chegamos na vila às 15 horas, tomamos um chá pra nos reenergizar, porque prosseguimos viagem até Thukding onde, finalmente, iremos pernoitar. Somente quando ingressamos noutro bosque de rododendros, após uma hora de pernada, a senda não exige tanto cuidado, pois, aleluia, inexistem vestígios de neve no solo. Porque estamos numa zona de menor altitude, noto um tamanho mais avantajado nos rododendros. Um pouco antes de alcançarmos Thukding, duas jovens que vem em sentido contrário ao nosso, param pra conversar com Nara e Pasang e os informam sobre o cancelamento dos vôos pra Kathmandu devido ao mau tempo. Nem esquento minha cabeça com tal informação. Estou mais preocupada com o fim do trekking. Fico sempre meio chateada quando acaba o que era doce, sniiifff. Meus joelhos dão gemidinhos de dor quando chegamos na vila às 5 da tarde. Também pudera, foram 10 horas de pernada! No lusco fusco do entardecer, uma chuva fininha dá o ar de sua graça embora não faça mais tanto frio. Venho observando que, nas vilas, só tenho visto crianças em idade pré-escolar. E indago de Pasang, apenas pra confirmar o que já venho suspeitando, o motivo. Meu sereno guia explica que a criançada, a partir dos 5 anos, vai pra Lukla estudar. Acrescenta que, durante o ano letivo, moram com parentes, pois os pais permanecem nas vilas atendendo aos turistas. No dia seguinte, terça, dia 16, o tempo feio persiste. Após o desjejum, partimos de Thukding às 7 e 45 e cruzamos o rio Ghatte Khola três vezes, equilibrando-nos sobre rústicas pontes feitas de troncos de árvores. O trajeto até Lukla, uma descida, é breve: uma hora e trinta minutos. O mau tempo confirma-se quando entramos na cidade: céu totalmente nublado. Tão distinto de quando eu parti há 14 dias!! Sem contar que a cidade ferve com a estadia forçada dos mais de 600 turistas que esperam seus vôos de retorno a Kathmandu.