domingo, 16 de maio de 2010

Perrengues no Braço Solitário

Neste findi, após dois meses sem lá pôr os pés, me mando direto e reto pra Praia Grande. Estou na ponta dos cascos, carente de adrenalina. E dessa vez, vou fazer um canionismo numa via onde me esperam duas cachoeiras com 100 m cada. Sábado, depois do almoço na Pousada Colina da Serra, Kaloca, mais Élson, Ramonn, Ricardo, Flavio e sua mulher, Monalisa passam pra me buscar. Embarcam, em meu carro, Kaloca e Ricardo. Quem conduz é Pauleca que o trará de volta à pousada após nos largar no ponto onde iniciaremos nossa pernada. Ramonn e Elson seguem-nos no Corsa deste. Na frente, liderando o comboio, Mona e Flavio, de moto. O clima é de alta voltagem. Tá todo mundo a milhão. Ponho um cd de música eletrônica. Ao longo da subida pela serra do Faxinal, passados uns 5 km, já se avistam as duas primeiras gargantas da parede norte do Malacara: a Cascavel seguida do Braço Solitário. São profundas e largas. Tremo nas bases de excitação só de pensar que amanhã estarei lá, enfrentando as cachus que rasgam aquela impressionante greta. Decorridos 10 km, saltamos dos veículos e, lépidos e fagueiros, atravessamos a cerca de arame, percorrendo os campos de cima da serra em direção ao velho Malaca, sob um céu com poucas nuvens e temperatura amena. Tão agradável estar pernando depois de tanto tempo sem qualquer atividade física relevante! Ao atingirmos a borda do canyon, o pôr do sol tinge as nuvens de um rosa violáceo. O restante do caminho, circundando a borda da parede norte, é feito praticamente no apagar das luzes do dia que dá tchau pra nós. Entramos num capãozinho e logo surge uma clareira onde vamos acampar. Monalisa e Flavio estendem apenas uma lona. É lá, dentro de seus sacos de dormir, que irão passar a noite. Os demais dividirão duas barracas. O fogareiro é aceso, e a comida – os invariáveis sopões e massa miojo – é cozida em etapas porque a única panela que trouxemos é pequena. Uma fogueira arde mais adiante lançando fagulhas que lembram as estrelinhas das festas de São João. Estendo meu isolante em frente ao fogo e logo o pessoal se acomoda, conversando. É um desfiar de estórias, seguidas de muitas risadas. Não sigo o pessoal que resolve esticar um pouco mais a noite, indo até a borda do canyon curtir o céu estrelado. Entro na barraca. Tô cansada. No meio da noite sou acordada pelos roncos de Élson. E assim passo a noite. Dormindo e acordando ao som daquela cacofonia respiratória. Fazer o quê, né? Dar uma cotovelada nele? Tsk tsk tsk....de pouco adianta. Os roncadores são muito enganadores. No que se toca neles, eles param....triste engano! Não tarda muito, recomeçam naquele roinc roinc irritante. Acordo às sete e abro o zíper da barraca de modo a conferir o tempo. Não tá de todo mal. E bons dias animados são trocados entre nós. Logo uma alegre algazarra toma conta da mata. Todos estão excitados com a perspectiva da aventura. Às nove, já devidamente paramentados, nos encaminhamos em direção à borda da garganta quando aquela urgência nas tripas me obriga a procurar um cantinho pra me aliviar. Quer coisa mais sacal do que desvestir o neoprene até a cintura e retirar a cadeirinha? Só depois dessas manobras, posso então me acocorar, não sem antes, colher algumas barbas de bode que uso na falta de papel higiênico. Sempre nos meus passeios ao Malaca, a rota limitara-se até então em contornar a borda da parede sul. Hoje, estamos andando pela beirada da parede norte. Assim, tenho a oportunidade de apreciar pela primeira vez a parede sul do Malaca. Iluminada pela amarelada luz matutina, vislumbro uma garganta, bem à minha frente, onde, escavadas numa parte do maciço rochoso, despido de vegetação, é possível avistar algumas grutas. Embaixo o rio Malacara mal se entrevê entre a densa mata ciliar que se espalha verdejante ao longo de toda a encosta do canyon. A garganta que desceremos, a segunda da parede norte do Malaca, apresenta duas vias: Braço Solitário e Caranguejo, ambas conquistadas em solitário por Kaloca. Aproximamo-nos da borda da primeira cachu do Braço Solitário. Ladeada por duas pontiagudas torres rochosas, a passagem por onde a água verte numa altura de 45 m, é estreita. Meio chatinha em seu início, desescalo, portanto, a canaleta cuidadosamente. Ricardo, Flavio, Ramonn e Mona já se encontram lá embaixo. Devido à forte declividade desta garganta, as cachoeiras são próximas umas das outras. Dessa forma, o trajeto entre uma e outra não demora mais que 10 minutos. Assim, logo, logo já estamos na borda da segunda cachoeira. E esta tem 100 m. Élson e eu estamos um pouquinho nervosos. Afinal, será a primeira cachu que enfrentaremos com tal porte. O resto do pessoal é macaco velho embora sejam todos jovens na faixa dos 20 anos, exceto Kaloca, eu e Élson, os coroas do grupo. A aproximação obriga a gente a se deitar de barriga pra baixo quando se chega a sua borda. Eu até que tô tranqüila porque já sei, de antemão, o que irei enfrentar. Trata-se duma queda vertical mista apresentando em seu trecho inicial uma inclinação positiva onde despontam pequenos rebordos. O restante do lance é totalmente negativo. À medida que dou corda, constato que ela tá pesada demais, deslizando a caro custo. Cada braçada é um sacrifício. Meu braço direito começa a doer do esforço despendido. Tenho de parar diversas vezes pra recobrar as forças. Não faço quase progresso algum no descenso. A cada vez que dou corda, desço, se tanto, uns 50 cm. Ainda em sua porção positiva, mantenho-me, portanto, na vertical, conseguindo, entretanto, a caro custo pôr os pés na parede. Após 20 m de descida, a cachu se verticaliza e daí ocorre algo que me fará repensar que todos os medos até então por mim sentidos foram fichinha. O peso da mochila, que eu carrego nas costas, me faz girar e me coloca na horizontal. A água bate em meu rosto e entra em meu ouvido esquerdo. Entro em desespero. O pânico bate forte. Eu que já sou meio nervosa pela própria natureza, além de ainda guardar um pouco da velha fobia de altura, me descontrolo de vez. Nem me reconheço naquela mulher embrulhada num gélido casulo de puro terror, pendurada a 80 m do solo, berrando descontroladamente pro vazio “eu não vou conseguir, eu não vou conseguir”. Só tenho esse pensamento na cabeça e um medo horrível, horrível mesmo de ter um ataque cardíaco ou AVC, tamanho o desespero de não conseguir sair daquela situação. Faço força pra não deixar o pescoço pender pra baixo, tentando mantê-lo alinhado com o corpo. E, embora tente dar corda, a mão direita não me obedece mais, jazendo inerte, agarrada na corda, sem força alguma. Não posso nem dizer que minhas preces são atendidas porque nem dou conta de rezar. Do que lembro naquele momento, isso sim, é do providencial conselho passado por Kaloca a Élson, um pouco antes de iniciarmos o primeiro rapel, ensinando-o a agir, caso ocorresse uma situação de muito atrito no freio. De trazer a mão esquerda até a corda pra fazer com que ela deslize mais facilmente através da mão direita. E apesar da posição deitada em que ainda me encontro, (e assim permaneço até o término do rapel, porque muito ignorante, e bota ignorante nisso, não atino em destravar a barrigueira e o peitoral da mochila, fazendo com que ela se solte do meu corpo), dificultando os movimentos, a corda começa a se movimentar. Provo na carne o gosto dum velho chavão: nunca tão escassos 10 minutos pareceram uma eternidade!! E, finalmente, assustadíssima, alcanço o chão onde sou amparada por Flavio e Élson. Uma sensação horrível de mal estar toma conta de mim: dor no tampo da cabeça, enjôo e tontura. Fico assim deitada, até que me sentam com a cabeça colocada entre as pernas. Durante uns bons 15 minutos não tenho condições de andar porque cada vez que tento me levantar minhas pernas parecem geléia de tanto que tremelicam. Mal consigo caminhar por isso sou amparada até a próxima cachu, com 20 metros. Flavio desce junto comigo. Nas duas seguintes, Kaloca também desce ao meu lado, embora eu já me sinta restabelecido do choque por que havia passado. Paramos pra lanchar e analisar o motivo do perrengue. Foram dois: mochila nas costas quando deveria ter sido clipada na cadeirinha e nó convencional que faz muito atrito no oito. E sem problema algum, continuo a descer a enfiada de cachus que ainda temos pela frente: a quinta com 60 m, a sexta com 25 m, a sétima com 8 m e a oitava com 25 m, finalmente, chegando na nona com 100 m. Uma aproximação chatinha que exige um certo malabarismo, pois se tem de contornar uma estreita platibanda até alcançar a posição de rapel, situada 2 m abaixo. Dessa feita, Kaloca faz um nó esportivo e a mochila é levada por um dos guris. Uma fofura a cachu. Mista, entremeia trechos positivos com negativos. Lá pela metade, onde há um platô acentuado, a água jorra forte porém eu já recuperada desço serenamente até atingir terra firme. E daí é a vez de Mona passar seu momento de pavor, pode? Pois não é que a guria prende o cabelo no oito e fica presa a 50 m do solo? E é aquela gritaria pro Kaloca e pro Flavio que se encontram lá em cima. Claro que com o barulho da água, eles nada escutam. Lá pelas tantas, Kaloca se dá conta e desce pra resgatar Mona. Até então a gente pensava que a corda tinha dado um nó. Só quando ela se junta a nós, sabemos o que de fato a fez ficar enganchada no meio da cachu. Teve tanta sorte a Mona que, no trecho em que o cabelo se enroscou no oito, há um platô onde ela pôde apoiar os pés. Se fosse num trecho negativo, uma tragédia poderia ter acontecido. Provavelmente, a guria teria sido escapelada. Que horror! E a névoa começa a baixar no canyon. A parede sul, até então, perfeitamente visível, fica totalmente encoberta. E pensam que os perrengues terminaram? Só não!! Descemos a última cachu, com 25 m, praticamente no escuro porque já são seis da tarde. Eu mal enxergo onde ponho os pés. Se houvesse mais resquícios de claridade, teria descido num átimo, contudo sou obrigada a rapelá-la bem na lenta. O restante da caminhada, depois de todas aquelas emoções com letras maiúsculas, foi desgastante. O que deveria ter durado tão-somente 2 horas e 30, arrasta-se por infindáveis 6 horas. Isso porque quando saímos da garganta, e entramos dentro do Malaca, a escuridão já é total. Dos sete, só três portam lanternas: Ramonn, Flavio e Kaloca. Eu, esgotada, tenho vontade de xingar deus e o mundo. Lá pelas tantas perco a pose e a elegância. Paro e declaro que não tenho condições de seguir adiante. Discute-se, então, a possibilidade de se acampar ali mesmo. Enfim, mais restabelecida, reúno minhas parcas forças, e continuamos a caminhar sobre o leito do rio numa aventura sem precedentes em minha vida. Pra fechar com chave de ouro o festival de horrores, lá pelas tantas as baterias das lanternas de Kaloca e Flavio dão pau. E só resta a de Ramonn. Como sou a que estou mais baqueada, ele permanece ao meu lado pra iluminar o caminho. No trecho final, Ramonn, um gentil cavaleiro, oferece-me o braço. Um fofo!! O coitado do Ricardo também passou seu eito: quase escorregou e despencou pela borda da quarta cachu, fato que só me inteirei após meu regresso a Porto Alegre. Nesse meio tempo, dez da noite, os familiares disparam telefonemas aflitos pra saber o que está acontecendo. Todos são devidamente acalmados, e nós prosseguimos até o bar Malacara, ponto final desse extenuante, e põe extenuante nisso, canionismo, onde chegamos à meia-noite!! Entre ninguém morto e tampouco ferido (nem dá pra considerar como ferimentos as assaduras do pobre Ricardo nas virilhas e uma dorzinha no couro cabeludo de Mona!), aprendemos bastante com essa sucessão de erros. E seguimos mais do que à risca o lema dos Piratas dos Canyons: "Quanto pior melhor." Se bem que não precisava ser tanto, né?