terça-feira, 30 de junho de 2009

Crime passional

Provocada pela aplicacação de severas multas a infrações de trânsito, a tal greve nacional dos transportes, anunciada, desde que cheguei, não surte o efeito retumbante anunciado pelos líderes sindicais. Foram tímidos os paros, em Lima: apenas 50% dos motoristas não puseram seus veículos nas calles. Aqui em Huaraz, também a paralisação foi parcial. Mesmo assim gorou o passeio que eu planejara fazer até Chavin, outro sítio arqueológico. Quando desço até o hall do hotel, sou apresentada a Juan, novio de Arantza. Magro, já entrado nos 40 anos, conhece alguns países da América do Sul, tendo escalado o Aconcágua, Ojos del Salado, entre outros. Tomamos o desjejum juntos na Pastelaria D’Karla. Resolvo provar um iogurte (uma mania nacional esta bebida láctea) e escolho o de guanabana, trigostoso. Peço, ainda, um tostado de queijo serrano. Decido não aceitar o convite do casal pra caminhar até Willkawaian, primeiro porque já o trilhei e, segundo, porque sinto um pouco de dor em meu joelho esquerdo. Era só o que faltava tal peça de meu corpo me incomodar durante o trek que inicia depois de amanhã. E já vem do Brasil quando da pernada ao canion do Tajuva. Deve estar ressentido do esforço feito à época (é a artrose velha pegando neste corpitcho.....coisas da idade, fazer o quê!). Resolvo então caminhar pelas calles, curtindo a balbúrdia da cidade. O que tem de táxi e chollos-táxis é qualquer coisa. As buzinas dos veículos soam seus bibis a todo momento. Aqui, por supuesto, há uma generosa tolerância da lei aos buzinaços. Em certas passagens cobertas, que unem uma rua à outra, homens, sentados a pequenas mesas, batucam, em velhas máquinas de escrever manuais, cartas para os analfabetos. Cobram 3 soles por página. E assim ganham a vida. A cidade é plana, com muitas construções sem reboco, deixando o tijolo à vista, não por charme, mas pra não pagarem imposto sobre as edificações....ahahaha, essa é boa!! Espertos esses peruanos, hein?!! A principal artéria da cidade - a avenida Luzuriaga - apresenta um comércio intenso, predominando lojas de fotografias (há uma ao lado da outra), de guloseimas, sorveterias (outra mania nacional) e farmácias, afora algumas casas de câmbio onde a variação do sol limita-se apenas a 1 centavo entre um e outro estabelecimento. A sempre onipresente Plaza de Armas, com um chafariz ao centro, tem em seu entorno a catedral, ainda em fase de reconstrução, desde o terremoto que destruiu Huaraz, em 1970 (atingiu 7.8 na escala Richter), e matou praticamente todos seus habitantes. Huaraz, aliás, é premiada por catástrofes: em 1941, um fenomenal aluvião que despencou da Quebrada de Churup arrasou também com a cidade. Dou uma banda ao redor do mercado e aproveito pra comprar folhas de coca que pretendo usar durante o trek. Quando vou filmar uma banca de galinhas, o balconista faz um gesto que vai cortar minha garganta, e não era de brincadeira, não! Mesmo assim acho tal gesto hilário e sorrio à socapa. Decido almoçar no Amma y Tequila, situado no meu já conhecido Parque Ginebra. O lugar, aconchegante, é decorado com espigas de milho penduradas nas paredes. Observo encantada que, enquanto no Brasil só há as de grão amarelo, aqui há de várias colorações: pretas (usada para fazer a chicha morada), amarelas, por supuesto, brancas e vermelhas. Os tamanhos do grãos variam dos bem miúdos até os graudões. A garçonete serve, como aperitivo, pacchus, que vem a ser o grão de milho torrado. Usa-se para tanto um tipo de cancha (espiga) que não estoura em pipoca (palomita), conservando o grão intacto e crocante. Deliciosos de comer porque a gente pensa que são duros e, que nada, se dissolvem na boca! A dona do restaurante quando sabe do meu interesse neste cereal, ordena a uma empregada que vá comprá-lo no mercado. Assim trago pro Brasil 1/2 kg de milho! Um cordeiro à la plancha com batatas fritas mais salada mista é minha escolha (não achei lá muito bom o prato, carne meio dura e batatas um tanto quanto gordurosas). E claro, uma taça de vinho. A amável dona do restaurante que trabalha no computador, sentada à mesa ao lado da minha, sugere um tinto argentino porque "los peruanos non son buenos, salvo uno, pero muy caro”. O máximo da hospitalidade, não é verdade? Um afago carinhoso sem toques. Esse Peru é do caralho!! Enquanto espero o almoço (como sempre, almoço tarde, já lá vão há muito as três da tarde), leio, num jornal sensacionalista, comprado na rua, "El Men ( el diario que lucha por tus derechos), o rumorosíssimo caso das cantantes Alicia Delgado, vulgo Princesita del Folclore, e Abencia Meza, conhecida como Pistollita, devendo tal cognome ao hábito de carregar arma de fogo, ou, ainda, la Reina de Las Parranditas (Parranda é uma festa popular). Amantes, as duas viviam entre tapas e beijos, pois Abencia, quando tomava uns tragoléus, cagava Alicia a pau. A Princesita foi assassinada e seu guarda-costas, César Mamanchura, suspeito de tê-la apunhalado, acusa, entretanto, Abencia de ser a mandante. Tanta a baixaria das envolvidas que a tal Abencia tem uma amiga, também, cantante, cujo sugestivo apelido é Mecânica del Folclore. Seu physique du rôle faz jus ao espírito de caminhoneira que encarna: cabelos curtos, jaqueta masculina de couro preto e enormes óculos escuros. Coisas do reino das sapatas peruanas. Abencia, baixa e de carnes socadas, quando entrevistada num programa de TV, apresentou-se o tempo todo deitada e rodeada de parentes e amigos, temerosos de que tente se suicidar pois "Alicia me está llamando", assegura La Pistollita com cara de canastrona infeliz. Quedas de pressão e desmaios fizeram com que Abencia fosse internada numa clínica no dia do enterro de Alicia (foi ontem). De todas as pessoas com quem comento a estória na cidade, nenhuma duvida de que Abencia seja a mandante, mas como explica uma balconista, placidamente, “faltan pruebas”. Terminado o almoço, resolvo fazer um city tour e para tanto pego um chollo-táxi motorizado (há os puxados por bicicleta) e dou então uma banda pela cidade. Lá pelas tantas, o motora pára em frente a uma construção e me explica que ali há uma arena de toros. E eu pensando que só na Espanha houvesse esse esporte. Meu city tour foi tudo de bom. O motora do barulhento e lento veículo pára a meu pedido, permitindo que fotografe e filme recantos de Huaraz que não palmilharia se houvesse contratado um tour convencional. E minha impressão inicial de Huaraz confirma-se: embora seja uma cidade pobre e sem graça, eu gosto dela mesmo assim,ou, talvez, por causa disso!

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Macashca

Faço meu desjejum na Pastelaria D’Karla antes de iniciar outro pequeno trek pela Cordilheira Blanca. Começamos o passeio em frente ao cemitério onde desembarcamos dum táxi, eu, Arantza, basca, 35 anos, que faz parte do grupo de trek que percorrerá a Cordilheira Huayhuash, e Richard, nosso guia, com 18 aninhos, estudante de turismo. O céu, de brigadeiro! Uma beleza o tempo aqui em Huaraz, nada a reclamar, quente durante o dia, sem vento, esfriando à noite ma non troppo. A trilha é fácil sem grandes subidas e, durante o trajeto, alguns nevados chamam atenção, destacando-se o de Cojup e a linda quebrada de Churup, sempre sobressaindo, é claro, o onipresente Huascaran. A paisagem é muito mais linda do que a de ontem, não resta dúvida. E depois de duas horas de caminhada, sentamos na relva e fazemos um lanche. Richardi oferece-nos um cereal, o kiwicha. A aparência é de isopor mas o gosto é muiiiitooo bom. Lembra pipoca doce. Arantza revela-se muito boa companhia, esperta e engraçada demais. Está esperando seu novio, Juan, que chegará hoje à noite. Espalhadas pelos campos, diminutas choças, feitas de ichu (espécie de capim), assemelham-se, por seu formato cônico, aos chapéus usados pelos chineses. Servem de abrigo aos pastores em suas lides com os rebanhos de ovelhas. Um pouco antes de chegarmos a Macashca, ponto final de nossa caminhada, passamos por um rio onde uma mulher lava roupas num córrego. Disfarçadamente, filmo-a. Tem de ser na camufla porque raramente as mulheres indígenas permitem. Há pouco uma velha me jogou água, repelindo minhas investidas em tentar fotografá-la. Interessante isso, no Paquistão, as mulheres também se recusam a ser fotografadas! Enquanto naquele país asiático, os motivos são o machismo religioso que reprime qualquer vaidade feminina, aqui, é a mulher a responsável pela recusa, numa clara demonstração de preservação de sua privacidade. Já os homens e crianças em ambos os países posam bem pimpões quando instados a tal! Na vila de Macashca, não há muito o que ver. Embora pequeno, o pueblito exibe sua pracinha onde no entorno há uma igrejinha branca com dois campanários e casitas simples de adobe com singelos balcões de madeira. E nem precisa de mais adorno porque embeleza o lugarejo o lindo nevado Huamashraju, dominando a paisagem. Que cenário invejável têm seus moradores! Sentados no chão, esperamos a van que nos levará de volta a Huaraz. Embarcamos no veículo onde se amontoam pessoas e fardos de legumes, verduras e alfafa. Enquanto dura a curta e sacolejante viagem até Huaraz, dois pequenos sentados ao meu lado, olham, curiosos, pra mim. Quando eu os miro, eles viram os rostinhos - bem sujos, aliás -, encabulados. Mas logo voltam a me encarar. Ficamos nesse joguinho até descerem do carro. Arantza e eu, super enturmadas, decidimos almoçar no restaurante Huaraz Querido, localizado no Parque Internacional de la Amistad, a duas quadras da Plaza de Armas. O lugar é “abastado” se comparado à modéstia do resto da cidade. Casas com fachadas rebocadas e pintadas, revelam certo apuro arquitetônico. Um supermercado, bem maneiro, em frente à praça, exibe um sortimento de variadas mercadorias. O restaurante, especializado em ceviche, está vazio. Também pudera, são 5 da tarde. A simpática garçonete serve, como aperitivo, leche de tigre. Esta bebida é feita com “sustância de pescado” (caldo preparado com cabeça e esqueleto de peixe), temperado com limão, aji, salsa, coentro, sal e uma pinga de leite. Pedimos, de entrada, um ceviche de peixe e mariscos, acompanhado por yuca (aipim) e camote (batata de cor alaranjada), esta última sempre presente nesse tipo de prato por fazer um contraponto doce ao sabor mais ácido da marinada. E, pra derrubar em definitivo nossa fome, comemos ainda um picante de calamares. Nem deu pro postre, de tanto que nos empanturramos, eu e Arantza. Como estou a fim de comprar umas roupitchas, rumamos, Arantza e eu até a Tatoo, loja especializada em roupas de montanhismo. Qual não é minha surpresa quando um cara, que está escolhendo umas meias, fala em português comigo. Foi aquela alegria ruidosa, bem à brasileira. Apresentamo-nos e descubro que ele, jovem muito simpático, é David Marski, a quem eu conhecia de nome do site Alta Montanha. Banco a tiete e arrasto o escalador paulista pra tirar fotos na pracinha em frente à loja. Veio a Huaraz, explica, liderando uma expedição em que participam mais três rapazes, que só riem e nada falam. Vão tentar escalar vários cerros da Cordilheira Blanca, entre os quais o Huascaran. Despedimo-nos e eu parto contente da vida. Tão bom encontrar gente da minha terra e poder descansar a língua falando o português. E viva o Brasil!

domingo, 28 de junho de 2009

Trek cultural

Como o hotel não serve café da manhã, descubro uma confeitaria (pastelaria D’Karla) a meia quadra de distância. Abre às 6 e cerra às 22 horas. Há quitutes deliciosos, destacando-se os iogurtes com frutas e empanadas de carne. Vale a pena provar também o pão, sempre crocante, com queijo serrano. O dia está quente tanto que uso blusa de manga curta (já à noite esfria, exigindo agasalho) e o céu despejado de nuvens. Huaraz, situada a 3.090 m, localiza-se no Callejón del Huayllas, pequeno vale espremido entre as cordilheiras Negra e Blanca, ramificações da Cordilheira dos Andes. A cidade e seus arredores são irrigadas por cinco rios, destacando-se o Santa por sua extensão e larga bacia de captação, cujo leito flui entre as duas cordilheiras, desembocando no Pacífico. De um lado a Cordilheira Negra, à oeste de Huaraz; doutro a Blanca, situada à leste da cidade. O contraste entre as duas cordilheiras é preto no branco, literalmente. Enquanto a primeira deve seu nome à coloração escura de suas rochas e a pouca quantidade de nevados porque não é alta o suficiente para mantê-los, a segunda é um deslumbre de brancura, exibindo impressionantes cerros toldados de neve cuja atração máxima é o Nevado Huascaran, o mais alto do Peru, com 6.768 m. Começo meu processo de aclimatação com um pequeno trekking de 3 horas, guiada pelo guia Saul com o objetivo de visitar o sítio arqueológico Ichic Willkawaian (casa pequena do neto, em quechua). Pequenas construções quadradas feitas de pedra, as chullpas, escuras e de pé direito baixíssimo, obrigam a gente a andar meio agachada. Chama minha atenção um lindo nevado, o Cashan (significa espinha em quéchua) com seus cumes leste e oeste apontando à distância. No departamento de Ancash, do qual Huaraz é a capital, há muitos vestígios de velhas culturas pré-incas, destacando-se a cultura Chavin, a mais antiga de todas que se impôs durante quase mil anos. Mas o que me atrai mesmo são as flores (na outra encarnação, quero ser botânica) que colorem os campos. Uma, em especial, destaca-se devido à linda tonalidade arroxeada e delicada fragrância doce que exala. Pertence à família das lupinus e sua semente, chamada chocho (formato de ervilha embora de coloração branca), come-se temperada com salsa, tomate e cebola. Deve tal legume, entretanto, ser posto, durante três dias de molho, pra perder o forte ressaibo amargo (culinária também é cultura). Retorna-se, descendo uma estradinha um pouco mais exigente que a da ida porque se trata duma ladeira bem inclinada e arenosa. Escorrego algumas vezes enquanto desço, mas nada, ufa, que me leve ao chão! De repente, numa curva da trilha, surge, bem a minha frente, o esplendor branco do nevado Huascaran com seus cumes norte e sul banhados pelo sol do início da tarde. Como é lindo e imponente. Os peruanos têm motivos de sobra pra se sentirem orgulhosos de tal colosso! O passeio finda nas termas de Monterrey, um balneário com piscinas e duchas de águas calientes. O lugar está cheio de gente! Também pudera, é domingo. Desisto de entrar, sou nem um pouco chegada em aglomerações, ainda mais as domingueiras. Pego, então, uma van já que não tô afim de encarar na pernada os 7 km até Huaraz (tá um sol danado de forte), e pago a modesta quantia de 1 sol (60 centavos) à mulher do motorista que recolhe o dinheiro sentada no interior do veículo. Chego na cidade e, como já são 15 horas, vou direto ao restaurante Encuentro onde me sento a uma mesa na esplanada em frente. Um pisco sour enquanto espero a comida que ninguém é de ferro. Ô driquezinho bom esse! A sorridente garçonete traz uma salada mista de alface, espinafre, cenoura, tomate, cubitos de queijo, brocólis e abacate, regada com vinagreta de iogurte, acompanhada por presunto serrano ladeado por fatias de cebola roxa e pão bem quentinho. Vejo chegar Oskar, Ana e Marcos que fizeram juntos comigo o passeio. O casal de bascos e o baiano vêm ao meu encontro, e acabamos almoçando todos juntos. Oskar pede um prato típico, Pachamanca serrana, que consiste num cozido de tamales (vem a ser a pamonha peruana), camote (batata doce de cor fortemente alaranjada), habas (um tipo de ervilha), okas (tubérculo pequeno cujo formato lembra uma minicenoura de sabor adocicado) e três variedades de carnes, servidas numa panela de barro; de sobremesa, humita, a pamonha doce deles. Estou no céu: boa companhia, comida gostosa e curtindo uma cultura diferente e pra lá de interessante. E viva o Peru!

sábado, 27 de junho de 2009

Huaraz

Fui obrigada a dormir, sexta-feira, em Guarulhos já que meu vôo pra Lima sairá sábado, às 8 e 30 da matina. Depois de 5 horas voando, chego às 14 horas e trato de acertar os ponteiros do relógio pro meio-dia, considerando a diferença de menos duas horas entre os fusos horários do Brasil e Peru. Um cara, empunhando um cartaz com meu nome, aguarda-me no aeroporto. Embora paire alta umidade na atmosfera da capital peruana, chove pouquíssimo aqui, porque os Andes atuam como uma barreira impedindo a precipitação pluvial. Dessa forma, os cerros que a rodeiam são praticamente despidos de vegetação, fazendo com que Lima apresente uma feição árida. E há sempre uma névoa pairando no ar. Por isso, eu a classifico como uma cidade de semblante opaco. Sem charme apesar de estar à beira do Pacífico, motivo pelo qual prefiro passar de raspão por ela. Sou levada até o terminal de Olivos, bairro pobre porém de intensa atividade comercial, onde pego o bus da Moviltours. Tanto aqui quanto no Chile, há o costume de se pegar os veículos nas sedes das empresas. O busão chega atrasado, culpando o motora o trânsito....também pudera, são 8 milhões de viventes! Às 14:10, ulálá, já estou refestelada no andar superior onde a visão é bem melhor do que no piso inferior. Não demora muito e uma rodomoça passa bandejas com almoço e bebidas. Durante 2 horas e meia rodamos pela Ruta Panamericana. Este sistema interligado de rodovias que une o Alasca à Patagônia (totaliza 48.000 km de extensão), aqui, na América do Sul, foi construído, em boa parte, à beira do Pacífico. Dos dois lados da estrada, há altas e calvas colinas mais lembrando gigantescas dunas. Pouca rocha aflora em sua superfície. Puro areião. Em uma hora e meia de viagem, apenas a monotonia bege dos áridos cerros. A partir de Pasamayo, onde há, ao que parece, uma comunidade alternativa cujas casas apresentam bizarras formas cônicas (vi um cara, num alto dum morro, fazendo umas saudações apontando as mãos em direção ao céu), os cerros passam a ter cobertura vegetal embora tal colorido dure pouco. Logo as colinas retomam sua coloração bege. O resto do trajeto deu-se sob noite cerrada e, portanto, nada consegui observar da paisagem. Chego em Huaraz às 21:20, sendo recebida por Sergio, dono da Nuestra Montaña, agência que contratei pela internete. A seu conselho, vou jantar na plaza dos Periodistas. Escolho, dentre os vários restaurantes localizados no quadrilátero, um de sugestivo nome Encuentro, onde aliás fiz meu ponto durante a permanência de 4 dias na cidade. Escolho uma truta à la plancha com legumes cozidos ao dente e uma salada mista, tudo muito gostosinho. A temperatura fresca e a lua crescente são um convite a um passeio mas o cansaço pesa neste corpitcho e rumo sem hesitação pro Hotel Las Tejas. Aliás, este hotel é um capítulo à parte. Tão frio quanto uma geladeira, encontra-se inacabado. Falta assento no vaso sanitário e uma parede que separa as escadas da garagem. Por ali, entra um vento polar. Ruinzinho mesmo. E a porta do estabelecimento é trancada toda vez que o único recepcionista, um gentil homúnculo, tem de arrumar os quartos durante o dia. Quase tive um chilique, quando, no dia seguinte, apertada pra fazer xixi, vinda da rua, dou com a porta fechada. Fiz discurso, sacudindo, energicamente, o dedo indicador, e o homenzinho, pasmem, esboçou um quase imperceptível sorrisinho. E nada respondeu, limitou-se apenas a escutar (será que ele não entendeu direito meu portunhol?) E eu até hoje, por deus, não entendi seu sorrisinho (mas bah, que havia algo de maroto naquele arrepanhar de lábios, ah, isso havia!!) Contudo, justiça seja feita numa coisa, a internete é bem rápida!

domingo, 21 de junho de 2009

Garganta Tajuva

Já em treinamento pro trek que vou fazer no Peru, hoje a caminhada vai ser em Morrinhos do Sul, município gaúcho perto da divisa com Santa Catarina. Sábado, saímos de Praia Grande, eu e Kaloca, percorrendo uma estradinha de chão batido que não é lá das piores. Eu, toda pimpona, até arrisco algumas manobras mais ousadas enquanto dirijo. Kaloca, que tem medo de andar de carro, vai meio tenso ao meu lado, hehehe. Um som maneiro rola no cd player, com direito a Pink Floyd, Los Hermanos, Nei Lisboa, Naná Vasconcelo, Nara Leão e músicas indianas. Deixamos o carro num sítio, na comunidade de Tajuva, cujos donos são pequenos agricultores. Descendentes de alemães, cultivam cana de açúcar pra fazer cachaça, banana e variados legumes que vendem na Ceasa. A dona da casa assa umas roscas de polvilho no forno de barro. Em vez de forma de alumínio, usa folhas de bananeira de modo a evitar que os biscoitos queimem por baixo. Seguimos por uma estradinha até alcançar o topo duma colina de onde se descortina o litoral gaúcho. A visibilidade, magnífica, permite avistar nitidamente as praias de Arroio do Sal e Torres, além da lagoa de Itapeva. Dia lindo, céu claro, temperatura amena em torno de 23º C, embora estejamos no inverno. Adentramos o canyon por uma trilha aberta pelos tropeiros que conduz até o alto dos campos de cima da serra. Nada difícil, a caminhada é bem curta, coisa de 2 horas. A única dificuldade é carregar a mochila, cujo peso beira os 5 quilos. No mais, tudo é tranqüilo. Pela primeira vez, vejo um bando de bichos que penso serem lontras. Um deles me olha curioso enquanto aponto a máquina e o filmo. Logo dispara mata adentro, juntando-se ao resto do bando. Quando comento com Kaloca, ele explica que são coatis fugindo dos caçadores que se encontram, no vale, caçando. Eu bem que escutara uma barulheira, mas supus serem fogos de artifícios. Qual o quê! Eram tiros de espingardas, isso sim! Antes de armarmos o acampamento, damos uma banda pelos arredores, avistando ao longe a serra do Pinto. Uma beleza de paisagem. Escolhido o lugar, Kaloca monta a barraca e vamos ver o pôr do sol encarapitados numa pedra que se debruça sobre o vale. A luminosidade alaranjada do sol poente é um convite à fotografia, e os incessantes cliques da máquina tentam reter um pouco daquele esplendoroso fim da tarde. As luzes das cidades e vilas começam a se acender e o cenário, daqui de cima, assemelha-se a uma gigantesca árvore de natal. Voltamos ao acampamento já noite fechada. Kaloca acende, rapidinho, um fogo e lá ficamos conversando enquanto jantamos em frente à fogueira. No céu, estreladíssimo, distinguem-se, perfeitamente, as nebulosas da Via Láctea. Deito na grama e deixo meus olhos deslizarem pelo firmamento coroado de estrelas. A sombra escura dum pássaro voa, célere, sobre minha cabeça. É boa demais essa vida! Lastimo o sono que me pesa nas pálpebras e, assim, me recolho, enquanto Kaloca permanece bem contente ao pé do fogo. Durmo um sono só, acordando às 7 horas. Saio da barraca, sentindo na pele o frescor matinal. Tão revigorante isso tudo: o céu límpido, a grama molhada de orvalho e, lá embaixo, o vale recoberto, ainda, pelo manto branco da geada que teima em pairar sobre a terra. Sigo até o riacho pra pegar água e quando retorno, encontro meu amigo ainda deitado. Diz ele que, sem isolante, dormiu mal...tadinho! Não quis trazê-lo pra não pesar demais na mochila. Também pudera, ela é qualquer coisa de pesada! Leva, além de barraca e outras traquitandas, 100 metros de corda pros rapeis que iremos fazer na garganta Tajuva. Às dez estamos já iniciando os procedimentos pra descer a primeira cachoeira que se revela, embora a altura seja apenas de 25 m, um pouco complicada. Trata-se dum brete, e as pedras, por onde escorre a água, são pontiagudas demais, exigindo certa cautela. Nem bem avanço dez metros sobre as pedras que recobrem o leito do rio, eis a segunda cachu. Maior moleza descer seus 10 m. A terceira queda exige duas cordadas, uma de 30 e outra de 45 m. Como meu neoprene não é lá dos melhores, damos balão em 4 cachoeiras porque apresentam poços fundos, cujas águas estão geladíssimas nesta época do ano. Uma pena porque são beleza pura de se rapelar, em especial a sétima e oitava cachoeiras, esta última com 45 m. Me aguardem, cachus, porque voltarei no verão, com certeza! Os rapéis na nona e décima cachoeiras são barbadas, faço num abrir e fechar de olhos. O Tajuva, na verdade, não chega bem a ser um canyon, está mais pra ravina. Mesmo assim é muito bonito e fácil demais sua travessia, completada em cinco horas. Paramos num potreiro e de lá admiramos a linda parede sul do Tajuva enquanto me desvencilho da cadeirinha, capacete e neoprene, trocando por roupas secas. Sentados na relva, comemos as sobras de nosso rango. No retorno, colhemos, de um pé de bergamoteira, plantada ao lado da estrada, algumas frutas que saboreamos durante a pernada até o sítio. Compro dois litros duma cachacinha feita no alambique do tiozinho por R$ 2,50. Ao chegar a Praia Grande, olha só o que me espera: um baita pedaço de costela que Pauleca, marido de Mariazinha, estava assando há 4 horas. Como até fartar grossas fatias da suculenta e macia carne com aipim cozido, regando a comilança com duas generosas taças de vinho tinto. Afinal, o que regala a boca mal não faz, embora, antes de pegar no sono, tenha escutado uma algazarra esquisita no meu estômago.....maldita gula!!

domingo, 7 de junho de 2009

Conquista duma via de trek

Já tenho a minha tenda favorita na Estrada do Mar quando vou a Praia Grande. É a tenda do Veio. Mal se desce do carro, um atendente avança em minha direção e oferece petiscos variados: pedaços de abacaxi, salames, queijos de variadas qualidades, arrematando o banquete com biscoitos. Meu lanche da tarde é de graça, hehehe. Chego à tardinha na pousada Colina da Serra, e uma lua quase cheia aponta no céu limpinho de nuvens. Mariazinha espera dois hóspedes, motivo pelo qual a janta é servida no refeitório. Quando só estou eu aqui de hóspede, prefiro fazer as refeições na cozinha, super quentinha, graças ao fogão a lenha sempre aceso. Um aconchego só! A comidinha caseira que a gringa oferece está super apetitosa: bifes acebolados, arroz soltinho, feijão, batatinhas na manteiga, salada e de sobremesa, figo com pudim de leite! Deito cedo, estou podre de cansada, também pudera, acordei seis da manhã em Porto! Sábado, passo na casa de Kaloca e seu pai, seu Aniceto, nos leva em sua caminhonete, até o ponto de onde iniciaremos nossa caminhada. Vamos desbravar uma trilha rumo ao primeiro platô da parede norte do cânion Malacara. É meio-dia e lá vamos nós carregando nossas mochilas por uma senda que conduz até a crista da montanha. Carrego comigo os bastões que depois se revelaram não só desnecessários como incomodativos nesse tipo de trek....enfim. Embora estejamos subindo, a trilha, no início, não é difícil apesar das taquaras que vez por outra se emaranham no capuz da jaqueta presa no lado de fora da mochila com um pequeno mosquetão. Mas a moleza acaba porque logo adiante o mato se torna mais denso. É um tal de cipó enredando-se no meu corpo e raízes no chão dando calços nas minhas canelas que por pouco não me estabaco no chão. A trilha, feita por caçadores, é pouco utilizada nos dias de hoje em que a caça é controlada e punida. É um matagal sem fim, bem ruinzinho de se caminhar. Raros raios de sol penetram através da densa vegetação. Saímos, enfim, daquele cipoal e respiro, contente, de me ver livre de matagal tão enfezado. Mas qual o quê! A coisa engrossa quando deparo com um paredão de 245 m cuja escalada é inevitável. Obra de avalanches provocadas por sucessivas enxurradas, a encosta agora se apresenta desnuda de terra e vegetação, dificultando ainda mais o ascenso. Muitas das pedras nas quais me firmo deslocam-se, causando-me calafrios de pavor. Tremo nas bases. A vontade é de dar meia volta, volver. Kaloca, entretanto, dá uma força, ora me empurrando ora me içando. Eu só fico no aiaiaiai, gemendo, louca de medo de rolar ribanceira abaixo. E mal ouso lançar um olhar em direção ao despenhadeiro que se delineia aos meus pés. Pergunto aos meus botões o motivo pelo qual me meto nessas empreitadas. Concentradíssima em avançar e me ver livre de tal martírio, continuo a escalada, sentindo-me meio humilhada, porque estou sendo guindada, literalmente, pelo meu eficiente guia. Finalmente, chegamos ao fim da carrasqueira. Uma pequena façanha porque escalamos rochas super quebradiças sem segurança alguma (Kaloca esquecera de trazer corda). Segundo ele, fizemos uma escalada de 3º grau. Suspiro aliviadíssima quando tudo termina. Triste engano. Espera-nos uma mata de bambuzal virgem, ultra cerrada, que Kaloca corta a golpes de facão. Ele, cujo cabelão comprido enrosca-se, amiúde, nos galhos dos arbustos, resmunga, entredentes, que vai cortá-lo a facão. Falo pra usar touca. Pois o, até então, paciente guia quase tem um chilique com tal sugestão. Explica que a tal touca – de lã – vai fazer com que sue. E segue dando faconaços nos bambus a torto e a direito! Antes eles do que eu, hehehe!! O terreno, forrado por folhas de bambu, é muito fofo, dificultando mais ainda a caminhada. E lá vamos nós subindo os 130m que faltam pra atingir o topo da parede norte do cânion Malacara. Demoramos, pra vencer esses 375 m, 2 horas e 30 minutos! Quando atingimos o platô, situado a uma altitude de 1.000 m acima do nível do mar, sou contemplada com a visão duma parte da parede norte do cânion Churriado. Lá embaixo, no vale, Praia Grande parece uma cidade de brinquedo, tão diminuta está a essa distância. E a lua cheia já se mostra, perfeitamente, visível no céu, embora sejam apenas 17:30! Coisa linda tal cenário! Eu, bem feliz, supondo que agora a trilha seria sobre um terreno plano, rapidinho, percebo que estou andando nos campos sujos de cima da serra. Forrados de urtigão, capim alto e pequenos arbustos, a caminhada se faz árdua. Levo vários trompaços nas canelas quando esbarro nos caules duros dos urtigões e gemo de dor. Não paro de exclamar “merda” e “droga” a cada minuto palmilhado. E o tal trek nunca acaba. Pra piorar, o alto capinzal esconde Kaloca de meus olhos. E eu perdidona naquela imensidão sem fim. Kalooooocaaa!!! grito eu, amedrontada (como sou cagona...santo cristo!). Obtenho como resposta apenas o silêncio, pois Kaloca, meio surdo, nem deve estar escutando meu aflito apelo. Fazer o quê, né? Sigo em frente. Lá pelas tantas - graças ao bom deus! - avisto a jaqueta dele e recobro ânimo, segura agora da direção a seguir. Quando o alcanço, ele já está armando a barraca. A clara luz do luar dispensa o uso de lanterna, tão iluminada está a paisagem ao redor. O silêncio que paira nestes ermos soa como a mais linda música nos meus estressados ouvidos urbanos. De comida, há queijo, salame e pão. Kaloca prepara uma sopa, a calhar com a baixa temperatura que já se faz sentir. Nem quero saber de curtir a fogueira, tampouco a lua no céu. Estou com muiiiitoooo frioooo!! Entro dentro da barraca, me enfio no saco de dormir e demoro quase uma hora pra aquecer meus pés, duas barras de gelo. Nem bem nove da noite, a temperatura já atinge 0º C, e no teto da barraca há lasquinhas de gelo! Acordo apenas duas vezes durante a noite pra virar de lado! Às 7 da manhã, bem desperta, fico remanchando até as 8, quando não agüentando mais a vontade de fazer xixi, sou obrigada a sair de dentro da barraca. Quando retorno, acordo Kaloca. Ele me conta que ficou à beira da fogueira até 1 da madruga. Guri valente esse, segura todas as ondas, inclusive a de frio de renguear cusco!! E ficamos na boa ali em cima, curtindo o Malacara, o Índios Coroados e o Orbal que se avistam um ao lado do outro. Daqui de onde estou, consigo avistar, também, a tal garganta, ainda, inexplorada da parede sul do Malaca. Enquanto Kaloca desmonta o acampamento, vou buscar água num córrego, tropeçando nos urtigões. Desajeitada demais eu! E ficamos durante a fria manhã, cuja temperatura beira os 9º C, nos aquecendo em frente à fogueira. Conversamos, damos muita risada das bobageiras ditas e cozinhamos uma massa miojo a qual misturamos sardinha com molho de tomate. Um baita almoço domingueiro o nosso! Ao meio-dia, mochilas nas costas, partimos. Eu tremo só de imaginar que vou ter de descer aquela parede e ter de encarar o precipício de frente......aiaiai. E não deu outra! Foi uma tormentosa descida, auxiliada pela mão firme de meu guia. E o matagal inicial, que me parecera tão moleza na vinda, é trilhado aos trancos e barrancos em sua parte final. Cansada de tanta aventura, a irritação toma conta de mim e excomungo Kaloca durante aquela parte do trajeto (intimamente, é claro). Entretanto, o mal querer se dissipa quando avisto, por entre os galhos das árvores, a lua enorme, amarelona, a despontar na penumbra da tarde que se despede.