sexta-feira, 30 de julho de 2021

Nem só de Jalapão vive o Tocantins

Vale dos Pássaros
Decorridos 40 dias em Mateiros, convivendo intensamente com a família de tia Maria, personalidade ímpar, que me delicia com sua prosa animada, mencionando não só os vivos quanto os mortos, quero conhecer outras paragens no Tocantins porque até então era só Jalapão, Jalapão e Jalapão. Assim me mando pra Almas pra conhecer o canyon Encantado pilhada que estou pela falação de Diomil, um andarilho da bike que conheci em Mateiros. Assim que passo a saber da existência da Estação Ecológica Serra Geral, ou simplesmente Serras Gerais, distribuída entre os municípios de Ponte Alta (Arco do Sol), Dianópolis (Fortaleza dos Guardiões), Rio da Conceição (Lagoa da Serra), Pindorama (Lagoa do Japonês), Almas (Canyon Encantado, Vale dos Pássaros), Aurora (Rio Azul e praias do Pequi e Puçá) mais Natividade. Quando chego em Ponte Alta, continuo pela rodovia TO 130 que conduz a Pindorama mas quebro à esquerda, na TO 476, pra conhecer a Pedra Furada, um monolito de arenito, há horas na minha lista de desejos. Alguns poucos kms antes da Pedra Furada, um imponente maciço rochoso se destaca na paisagem: é o morro da Cruz. Um lugar repleto de imponentes pedras me deixa quase em estado de graça, a natureza é minha religião e as pedras são os meus deuses! Continuo pela TO 476 e no encruzo entre Rio da Conceição e Almas, pego a TO 40. Estas últimas são estradas de chão batido, trafegáveis mesmo em época de chuva. A 30 kms do Vale dos Pássaros, avisto da estrada algumas formações rochosas interessantíssimas cuja placa indica ser o Arco do Sol. Nem hesito, pego a estradinha e vou lá conferir. Maravilhosa formação de arenito avermelhada em forma de arco com cavidades de diversos tamanhos, ladeada em ambas as extremidades por 3monolitos compactos. Pra mim, superou a Pedra Furada, até porque há várias pedras furadas Brasil afora. Mas a viagem prossegue e lá me vou pra pousada de seu Davi e Antonia, donos da chácara Vale dos Pássaros. Os dormitórios, em número de 4, 2 deles com banheiro, estão numa casa de madeira, onde balouçam redes na varanda. Distante alguns metros, o refeitório, um puxado de madeira, está agregado à casa de enchimento onde vive o casal. Tudo muito simples, comida caseira feita no fogão a lenha por Antônia ao passo que seu Davi assume a tarefa de lavar a louça. Todos os dias, antes do café da manhã (cuscus com ovo frito, ó delícia!) e da janta, seu Davi convida os hóspedes pra celebrar Deus orando e cantando salmos. O casal se conheceu num culto evangélico, ela jovem, com 21, ele com 34. Revela Antônia que foi amor à primeira vista. Ele ofereceu carona pra ela e até hoje ela não desembarcou do carro. Seu Davi, alto, magro, é o homem mais doce que conheci, voz baixa e fala mansa. Já Antônia é o oposto, baixinha e roliça, é enérgica e hospitaleira. Ambos vez por outra se saem com uns saborosos ditados regionais como o de seu Davi transformando “em Roma como os romanos” pelo “em terra de sapo de cócoras com ele.” Já Antônia com seu temperamento menos afeito aos mimimis lasca "se morre e não acha quem enterre, urubu trata de come”. Os 3 córregos que atravessam a propriedade são o Jatai, o da Cortina que despenca pela cachu de mesmo nome e o da Água Limpa, da Urubu Rei. Nas árvores, pulando de galho em galho, uma macacada curiosa te observa, galinhas com suas ninhadas de pintinhos passeiam pra lá e pra cá ao passo que os cachorros veaoz por outra ladram alertando quem se aproxima. Detalhe pitoresco são os gatos que se quedam preguiçosos sobre o parapeito do fogão a lenha.
Canyon Encantado
Dia seguinte, ao invés de pegar o carro pra fazer o percurso de 14 km entre o Vale dos Pássaro e o Canyon Encantado, vou caminhando até lá pela trilha de 2 km ao longo da mata que ladeia a encosta da serra Negra. Compro um combo de passeio de dia inteiro que inclui canyon Encantado, Cidade de Pedra e Cachoeira dos Pelados. Guiada por Bonfim (é obrigatória a condução por guias), na trilha bem demarcada, sinto a cheirosa floração dos cajuins, sinalizando que seus frutos não tardam a dar pinta nos galhos. A 600 metros do início da trilha há um mirante donde já é possível se ter uma visão parcial da fenda. De seu vértice jorra manso (quando fui a primeira vez era ainda época de seca) o córrego Água Limpa. Andorinhas traçam o ar em revoadas constantes e o matraquear ruidoso das araras não dá trégua ao silêncio. Algumas passarelas de madeira e de metal facilitam os 130 metros de desnível até a base do canyon. Um pequeno brete (parece até lance de filme de Indiana Jones), escavado artificialmente na rocha pra facilitar a descida, esconde brevemente a fenda mas logo a ordem é restaurada e a garganta volta a dar as caras. À medida que me afundo no perau, vestígios de mata atlântica vão dando pinta ali e acolá. No lado esquerdo do paredão de coloração avermelhada, a vigorosa queda d’água do Sumidouro, enquanto à direita, o fio d’água mirrado, que na época da seca forma uma prainha de areia clara, recebe o nome de Elias, em homenagem a antigo morador da região. No final da pequena garganta, próximo ao vértice, delimitada pelos paredões, desenha-se um arco-íris, à semelhança de um luminoso de neon colorindo a escura e estreita cavidade cujas rochas se exibem esverdeadas de musgo. No retorno, observo a pequena reentrância na rocha à semelhança duma mini gruta que me passara despercebida quando descera. Almoço no restaurante e descanso no redário aguardando a pernada ao restante dos passeios. Às 2 da tarde, o guia nos tira da indolência da sesta e lá vou eu num calor de antecâmara do inferno à Cidade de Pedra. Já vi outras mais interessantes, mas esta até que dá conta caso você não tenha conhecido a da Chapada dos Guimarães e a de Vila Velha. Seguimos então prum mergulho na cachoeira dos Pelados, onde foi filmado o seriado americano Largados e Pelados, daí a origem do nome da cachu. A pequena queda d’água, banhada pelo córrego D’Anta e rodeada de árvores, oferece uma refrescante sombra, super bem vinda após a caminhada sob o sol causticante do cerrado. No dia seguinte, de manhã, vou visitar outros dois atrativos no Canyon Encantado: as cachus do Portal e da Capivara. O início da trilha é plano, sem maiores dificuldades. A partir dum certo momento, o guia Juraci avisa que teremos de descer 500 metros de terreno acidentado, aberto no meio do mato. Ele me oferece um cajado que dispenso, contudo. A vegetação é luxuriante, já que guarda resquícios de mata atlântica. Um prazer sair da canícula do meio da manhã e entrar em ambiente sombreado. Muito arrebatadora a cachoeira do Portal, não pelos seus 60 metros de altura, mas pela aurora gigantesca cúspide que coroa seu topo donde duma cavidade jorra o córrego D’Anta que continua serpenteando e forma adiante a cachoeira da Capivara, a próxima queda d’água a conhecer. Dureza não foi descer os 500 metros até o Portal mas subir tal desnível seguidos doutros 500 metros de descida até a Capivara, essa sim uma ladeira bem perrenguenta, quase uma piramba de tão íngreme. Claro está que depois que se conhece a surpreendente Portal, a Capivara não eletriza tanto assim se comparada àquela. Se eu fosse guia, deixaria a Portal por último pra causar aquela impressão. No retorno, Juraci, profundo conhecedor da flora do cerrado, vai saciando minha curiosidade sobre as plantas. Conta que aprendeu principalmente com sua mãe porque seu pai se ausentava muito viajand0 a trabalho. Comenta que conhece tanto planta pra curar quanto pra matar...ala putcha!! Juraci explica que os remédios são feitos mais com cascas do que com folhas, porém os melhores são os obtidos das raízes. No trajeto de retorno à sede do canyon Encantado, fico a par de que o angelim é venenoso pros seres humanos, não sendo nefasto contudo com os animais. Já a bananeira, além de sua flor ser linda demais e cheirosíssima, serve pra fazer cestas. Numa curva da trilha, dou de cara com a árvore nacional do Tocantins, a fava de bolota, que lembra uma árvore de natal quando está florida com suas vermelhas flores arredondadas. E a sapucaia, acrescenta Juraci, só é comestível por aves, como as araras, que furam seu fruto até pinçar a desejada semente. Pra finalizar a interessante aula informal de botânica, sou apresentada ao murici de cujo pequeno fruto amarelo se faz uma pinga deliciosa.
Vale dos Pássaros
Deixo pra conhecer as cachus do Urubu Rei e Cortina (ida e volta em torno de 4 km) no último dia de minha estadia. Inicialmente percorro a trilha bem marcada que risca a mata fechada (afinal estamos no cerrado). Por 2 vezes me equilibro sobre improvisadas pinguelas feitas com troncos de árvores pra atravessar os córregos que cruzam a propriedade. Depois da bifurcação que indica à esquerda a cachoeira da Cortina e à direita, a do Urubu Rei, escolho fazer esta primeiro. A paisagem então começa a mudar e a mata cede lugar à vegetação rasteira com a presença abundante dum denso capinzal. Os paredões avermelhados da serra Negra se mostram em toda a sua magnitude e já se avista lá no fundão os 70 metros da cachoeira do Urubu Rei. Pela estrada, é possível chegar na borda da Urubu Rei e vislumbrar o vale lá embaixo com sua vegetação compacta entremeada por veredas de buritis. No retorno, entro na trilha que leva à Cortina e caminho ladeada sempre pela mata cerrada sem mudança na vegetação. Assim como a Urubu Rei, a Cortina também pode ser vista de cima. Para tanto, envereda-se por uma trilhazinha que sai da estrada e termina na charmosa cachu da Arquibancada que antecede à da Cortina. A vista frontal dos seus 50 metros de queda livre à tardinha com o sol atiçando ainda mais sua parede vermelha é um convite irrecusável à contemplação. Final de julho é aquele concurso de beleza no cerrado: as árvores estão floridas, cada uma mais linda que a outra, destacando-se as flores dos pequizeiros com 5 pétalas dum amarelo claríssimo donde despontam centenas de filamentos ultra finos. Afinal, nem só de ipês amarelos vive o cerrado. Infelizmente, tenho de partir, mas levo comigo a saudade gostosa do que ficou pra trás!!