Pretendo com este blog descrever viagens que fiz e farei por este tão lindo planeta, resgatando da memória as impressões armazenadas, algumas já esmaecidas pelo tempo, outras prudentemente registradas pelo olho mágico das lembranças fotográficas.
30/03/2017 –
Quinta-feira – 13º dia de Trek Everest BC – Tengboche a Dingboche
Às 5 e 30 quando acordo está um baita dia o que não me espanta porque quando levantei durante a madrugada para fazer xixi o céu estava todo estrelado. Às 8 e 15, nos despedimos de
Tengboche, donde se tem uma visão
espetacular do Nuptse, Lhotse e Ama Dablam. Ah, do Everest mal e mal se vê a
miniponta de seu cume, motivo por que nem merece minha atenção, é um anão diante
dos outros hahahaha!! O movimento de helicópteros está animado, inclusive um
deles pousa aqui na frente do hotel pra deixar alimentos e pegar turistas que
retornam a Kathmandu. Nem sei se é o caso desses, mas muitos turistas não conseguem completar o circuito Everest BC por causa do mal de altitude. A trilha, inicialmente, é uma descidinha
no bosque de rododendros. Depois só encosta de montanha a céu aberto. Do
Nuptse, Lhotse e do minúsculo e escuro ponto que é o Everest pouco se vê porque há
sempre uma parede de nuvens escondendo-os. O Ama Dablam, contudo, não deixa
barato pras nuvens, e impõe sua branca nudez sobre a região. O dia continua
lindaço. Kungde, pico do qual gosto muito, fica pra trás, mas ainda se vê à
direita o leque de rochas que forma a parede oeste do Thamserku. Não é uma trilha
exigente embora continuemos a ganhar altitude gradualmente. Passamos por
Pangboche encarapitada a 3.985 metros. A vila tem boas guest houses, feitas de
pedras, material usado na construção de 90% das residências do Solukhumbu.
Muitos currais de yaks, todos eles vazios, já que o transporte de cargas nesta
época do ano não permite que os bichos esquentem lugar. Daqui pra frente mulas
e dzos não têm mais vez nas trilhas. Pangboche é porta de entrada pra quem quer
escalar Ama Dablam. Pra tanto, deve se cruzar o rio Dudh Koshi e pegar a
trilha que conduz àquele acampamento-base. Uma estradinha bem estreita, num terreno
escarpado onde lá embaixo se encontra o Dudh Koshi, desce até Shomare onde paramos
prum lunch break. Aqui já está almoçando o simpático casal de alemães que conheci em Junbesi
e que ocasionalmente encontro. A partir de Shomare, a
paisagem sofre dramática alteração: salvo a presença de pequenos arbustos espinhentos
inexiste qualquer outro tipo de vegetação. Caminhamos por 2 horas no árido vale
banhado agora pelo Imja Khola. Cercado por montanhas sem grande expressão,
apenas Ama Dablam é digno de nota. Conforme nos deslocamos, novas faces Ama desfila de seu mesmerizante e esquizofrênico perfil. Quando próxima de Dingboche, se agiganta, à esquerda, Taboche. No fundão da vila, destaca-se, ao lado do Lhotse, Island Peak, montanha muito
procurada por turistas devido ao seu status de “facinha”, também é escalada pra
aclimatar antes de os montanhistas se lançarem em busca do cume do Everest. Às
14:00 estamos entrando em Dingboche cuja rua principal, demarcada por muros de
pedras, tem em ambos os lados lodges, padaria e até um salão de sinuca. Várias
lojinhas vendem desde toucas de lã a papel higiênico. O tempo muda a partir das
16 e 30, baixando aquela cerração e sensível queda de temperatura. Após
conversar com Silvia, jovem italiana de 20 anos, que viaja sozinha, carregando
pesada mochila, vou pro quarto onde descanso até a hora da janta. Os 4.500
metros de altitude - não é pouca coisa, não é mesmo? - estão cobrando seu
preço, na forma duma dorzinha de cabeça e um pouco de sono. Agora 18 e 20, vejo
pela janela envidraçada do refeitório que a cerração se dissipou restando
apenas pequenas caudas de nuvens nas partes mais baixas das encostas das
montanhas ao redor da vila. Island Peak, até então obnubilado, ressurge lindo tal
qual bolo polvilhado com açúcar de confeiteiro.
31/03/2017 – Sexta-feira – 14º
dia de Trek Everest BC – Dingboche
Desperta às 5 da manhã porque, como não gosto de fechar cortinas pra escurecer o quarto, a claridade é o melhor despertador já inventado. O dia promete ser deliciosamente comportado. Agora 7 e 30, o bom tempo dá alô exibindo impecável céu
de brigadeiro. Dentro do hotel a sensação térmica é mais baixa que a da rua
onde o termômetro marca 5ºC. Hoje é dia de “descanso” em Dingboche. Descanso, em treks que envolvem alta montanha, nem sempre significa ficar de barriga pra cima, sem nada a fazer. Pra nos
fortalecer, já que daqui em diante, só há ganho de altitude, vamos aclimatizar subindo
o Nagarjun, um pico de 5.040 metros. O ascenso é suuuuperrrr puxado. Nem
consigo curtir o visual enquanto calcorreio a puta rampa que conduz ao cume porque só concentro em
harmonizar a respiração a cada passo dado. Meu foco é respirar com
calma e caminhar sem pressa de chegar. Descanso algumas vezes pra recuperar o fôlego
sem sequer pensar em fotografar ou filmar os arredores. A energia dirige-se apenas pro cobiçado cume. Que alívio quando alcanço o amontoado de
rochas escuras ao final da duríssima, e bota dura nisso, ascensão ao cume do Nagarjun!!
O cenário é recompensador: à leste Ama Dablam, Kangtega (6.782 metros) e Thamserku,
ao sul, nas bandas de Namche, Kungde e, a sudoeste, Taboche (6.542 metros) e
Cholatse (6.440 metros) voltados pro vale que leva a Lobuche. Dá pra ver ainda Island
Peak, também conhecido como Imja Tse (6.160 metros) bem como a perfeita forma
piramidal do Cho Polu (6.735 metros). E pra completar tanta belezura e grandeza,
avisto, de inhapa, boa parte do flanco nordeste do Makalu (8.463 metros)!! Sorte
nossa de o tempo estar tão legal, proporcionando alta visibilidade da região. Durante nossa permanência no pequeno cume do Nagarjum, vão chegando mais turistas,
alguns com ar abatido, outros bem serelepes. À margem direita do rio
Tsola, se vê a vila de Periche, segundo Nir bem mais fria e ventosa que
Dingboche embora situada a mesma altitude. O tempo, pouca demora, mostra seus
maus bofes e rapidinho a cerração encobre a paisagem, motivo pelo qual iniciamos
o descenso pelo bem demarcado sendero. Não tão cansativa, é claro, quanto a
subida, exige ainda assim bastante cuidado porque coberta de areia fina. Percebo quão bom é o uso dos bastões
nesse tipo de terreno, evitando escorregões à toa. Além da cerração, o frio ventinho
que sopra aumenta o desconforto durante a descida. Chego exausta em Dingboche e,
após o almoço, venho pro quarto descansar. Aquecida embaixo do edredom, entremeio
leitura de contos de Katherine Mansfield com deliciosas cochiladas. Tenho de
fazer certo esforço pra levantar, porque se não tivesse de jantar permaneceria
deitada. Não só a altitude quanto o tempo colabora pra que eu me sinta
preguiçosa. Sinto que o esforço despendido na descida do Nagarjun deixou marcas dolorosas em minhas
coxas. O número de turistas aumenta a cada dia que passa, tanto que hoje
a Guest
House Yak, onde me hospedo, se encontra com lotação esgotada ao contrário de
ontem, parcialmente ocupada. Observo que as pousadas, por questão econômica, não utilizam em seu interior
isolamento acústico. Assim, as paredes que
separam os dormitórios não passam de finas divisórias de compensado, razão por que
deixam vazar o mais insignificante dos ruídos. Em meio à vulgaridade dos sons emitidos pelos
vizinhos de quarto, observo que o céu noturno, até então envolto em brumas, ostenta
em meio a oceanos de estrelas uma lua crescente.
29/03/2017 – Quarta-feira – 12º dia de Trek Everest BC – Namche Bazaar a Tengboche
Com
céu de brigadeiro, às 6 da manhã, faz frio, coisa de 5º C. Avisto, enfim, os generosos flancos cobertos de neve
do Kungde. Saímos de Namche às 8 e 15, rumo a
Tengboche, onde pernoitaremos. A trilha de chão batido, aberta em encosta de
montanha, é limitada à direita por penhascos que formam o paredão oeste do
canyon onde desfila o rio Dudh Koshi. Segue nessa moleza até Phunki Tenga,
salvo curtos trechos de subidas ou descidas mais ardidas devido à presença dos
famigerados degraus de pedra. É um mar de montanhas e gargantas que se sucedem
vertiginosamente. A cada curva de estrada desponta, ao norte, o quase
imperceptível cume do Everest, escondido pela escura cimeira sul do Nuptse e
pela grandiosidade dos paredões do Lhotse. À leste, as duas cristas, tais asas angelicais encravadas em cada lado da pirâmide principal do Ama Dablam, parecem
abençoar a região. Apesar de ser um 6 mil (mais exatamente 6.812 metros) e o terceiro
mais procurado pico do Himalaia, isso não quer dizer que seja uma montanha
facilmente escalável. Pelo contrário, exige alto nível de conhecimento técnico
em sua ascensão. Nos dois mirantes, onde há stupas caiadas de branco, os
turistas param pra curtir e fotografar Everest, Nuptse, Lhotse e Ama Dablam,
os mais emblemáticos da região. O motivo
pro crescente afluxo de turistas na trilha se deve, a um, porque a maioria são jovens com pouco dias de férias, e, a dois, porque partindo de
Lukla o bate e volta do trek ao Everest BC dura 15 dias. Como a alta temporada
da primavera está em seu início, o número de turistas indo pra Gorak Shep é bem
mais superior ao que retornam de lá. Paramos prum chá em Kyangjuma, donde
desfruto, sentada a uma mesa ao ar livre, as nunca cansativas presenças de Ama
Dablam, Lhotse e Taboche destacando-se contra o fundo azul do céu. O cenário
magnífico, a aconchegante vila e a simpatia de seus moradores faz com que eu
lamente não poder pousar aqui. Ao sair de Kyangjuma, percorro uma alameda de
rododendros, pena que ainda não floriram. O tempo muda, assim, num estalar de
dedos. Quando me dou conta, o céu nublou geral e nem bem 11 e 30 são....tsk tsk
tsk. Claro está que ausente o sol, baixa uma friaca. Uma boa descida conduz a
mais uma das tantas pontes metálicas que unem uma margem a outra do rio Dudh Koshi. Continuo
ladeira abaixo até Phunki Tenga, porque a vila se alça à modesta altitude de
3.250 metros, mais abaixo, portanto, de Kyangjuma, situada a 3.600
metros. Nir se dirige ao check point existente na vila onde aproveitamos também pra
almoçar. A partir de Phunki Tenga, dentro dum bosque de coníferas, ziguezagueando por encosta de montanha, começa a fudida duma subida tão íngreme é, demorando a
exaustiva pernada 1 hora e 45 minutos. Numa curva de trilha, as nuvens de tão baixas flutuam a poucos metros do solo. Encontramos Tengboche às 14:30 envolta em brumas.
Um pórtico com rodas de oração em seu interior marca a entrada na vila. Nossa
guest house com o sugestivo nome Tashi Delek (saudação em tibetano que significa boa sorte) fica a 50
passos do monastério onde assisto a breve cerimônia budista naquele
que é considerado o templo mais importante do Solukhumbu. Jovens da região são
enviados pra estudar budismo ali, devendo permanecer castos durante o curso.
Após a graduação, os casamentos não só são permitidos como incentivados. Durante a janta, no
aconchegante refeitório envidraçado, rememoro os impressionantes procedimentos
realizados, à tarde, na trilha por um jovem porter (95% têm entre 16 a 35 anos). Carregando um compensado de 2,50 m por 70 cm de largura, o rapaz usava
na lombar uma espécie de rolinho pendurado às costas de modo a amortecer o
impacto da madeira na coluna. Na testa, uma faixa de pano presa à carga firma e
equilibra melhor o fardo. Chego à
conclusão de que os verdadeiros super heróis são eles, os porters!!
27/03/2017 - Segunda-feira
– 10º Dia de Trek Everest BC – Phakding a Namche Bazaar
O
céu se revela sem rastro de nuvens que manchem de branco sua pura coloração azulada. Temperatura
amena pra quem está a 2.640 metros. O barulhento ruído de aviões e helicópteros indica que as aeronaves retomaram as atividades diárias, voando apressadas de sul a norte pra compensar o stop forçado causado pela envolvente cerração que teimou em reinar durante o dia anterior. Mais
britânicos na pontualidade impossível: são 8 e 15 quando deixamos Phakding. O
dia promete ser longo e árduo por causa do desnível de 830 metros entre
Phakding e Namche Bazaar. Porém a trilha nem se revela tão difícil quanto imaginei.
Embora íngremes, as subidas e descidas nem muito longas são. Na paisagem linda
demais, destaca-se Thamserku (6.623 metros), bela montanha nevada, em forma de
leque, além do Khumbila, pico com formato piramidal e
pouca neve nas encostas. O rio Dudh Koshi corre ora à
esquerda, ora à direita, dependendo tal posição da necessidade de se cruzar à margem oposta. Pra tanto, a travessia se faz sempre sobre as firmes e longas
pontes metálicas. Caminha-se geralmente a céu
aberto mas vez por outra adentramos florestas de pinheiros que exalam agradável
odor resinoso. Intensifica-se o número de turistas retornando de Gorak e isso
que nem estamos no auge da alta temporada. Um casal da Malásia, vindo de Khala Patar, com
quem converso rapidamente na trilha, conta que apesar da boa visibilidade do
lugar, o frio era congelante, em torno de -25ºC, a ponto de suas câmeras
digitais terem descarregado mega rápido, mal podendo fotografar Everest e
demais picos circundantes. Em Monjo, enquanto aguardo Nir cumprindo os
procedimentos burocráticos de carimbar nossos cartões Tim no check point, conheço
Richard, um holandês dotado das clássicas feições de homem bonitão: alto,
magro e de olhos azuis. Sem guia e porter, carrega solito seu mochilão. Até
aqui nada incomum em se tratando de trekkers. O que torna Richard
extraordinário é ser ele portador de esclerose múltipla. Tem 51 anos e foi
diagnosticado doente aos 45. Até agora, a manifestação mais grave da doença é a
evidente dificuldade na fala. Por isso carrega com ele um papel contendo alguns
dados pessoais e telefones em caso de emergência. Poxa, cara fora de série esse
Richard, sem quaisquer mimimis: libertou-se do medo de viver e do medo de
morrer! Viva Richard! Nova travessia sobre o Dudh Koshi, percorrendo agora ponte
beeem mais alta que as anteriores - em torno duns 40 metros de altura - que nos leva à margem direita do rio onde está
a encantadora vila de Jorsalle. E ali paramos pra almoçar. As
guest houses voltadas pro rio permitem assim que ocupantes de quartos e refeitórios desfrutem do lindo
visual de suas águas esverdeadas. O tempo até então ótimo ameaça
dar uma virada quando nuvens começam a dar o ar de sua desgraça no céu até
então límpido. Eu que estava sentada no terraço do restaurante, sou obrigada
a entrar porque um vento começa a soprar energicamente. Agora já se vêem menos
mulas e mais dzokios na trilha porque a pelagem basta destes animais os
protegem melhor do frio, conforme o ganho de altitude. Todavia, a partir de
Namche, são usados somente yaks, cujo pelo espessíssimo resiste a temperaturas
abaixo de zero e altitudes acima de 4 mil metros. De Jorsalle em diante, só
subida, mais exigente quando se caminha sobre terreno em degraus e menos dura em se tratando de chão batido. O bom é caminhar num cenário sombreado por bosques
de pinheiros. Se a ponte de 40 metros me pareceu alta a que cruzo agora é o
Everest das pontes. Medindo prováveis 100 metros de altura natural que oscile devido ao peso dos transeuntes e animais. Estranhamente, há outra ponte, 30 metros abaixo que deve conduzir a outras paragens.
Passamos por Top Danda onde, caso o tempo estiver claro, é possível vislumbrar Everest (8.8458 metros),
Nuptse (7.861 metros)
e Lhotse (8.516 metros). Infelizmente, o lugar, encoberto por nuvens, não permite que se veja
montanha alguma. Mulheres vendem maçãs e garrafas d’água enquanto turistas
descansam após a super ardida subidinha. E o resto da pernada até Namche transcorre
tranquila, numa larga estrada de chão batido, percorrendo-se ainda bosques de pinheiros. Outra
vez, coisa boa, terminamos cedo a pernada, entrando às 15 e 10 em Namche Bazar.
Pouca demora, a cerração envolve a vila que assim permanece até a noite. A
princípio não gosto muito de Namche pois parece uma moderna e limpa Thamel. No
dia seguinte, entretanto, já estou adorando, especialmente, por causa do
aconchegante Himalayan Java Café onde afora free wifi é possível carregar sem
pagar os dispositivos eletrônicos. Antes da janta, vamos eu e Nir pro Java Café
onde o gerente é amigão do guia. Nos esbaldamos na internet. Ele falando com
seu irmão que vive na Coréia do Sul e eu postando fotos no Face. À noite, em
meu quarto, quando olho pela janela luzem estrelas no céu.
28/03/2017 – Terça-feira – 11º
Dia de Trek Everest BC – Namche Bazaar
Hoje descansa-se em Namche. Mesmo assim, acordo às 6 da matina e o dia já está claro.
Da janela do quarto, sou presenteada com os gratos 6.187 metros do Kungde, vistos dos pés à
cabeça, opa, do sopé ao topo. O motivo de tal contentamento é porque tenho
entrevisto este pico desde o 8º dia, quando então me
dirigia de Bupsa a Surke, enfrentando aquele fétido e escorregadio mar de lama,
bosta e urina. Acontece que naquele trecho só era possível avistar seu topo
nevado e agora consigo enxergá-lo por inteiro, ulalá! Às 7 e 20 quando baixo ao
refeitório, Namche e adjacências estão envoltas em forte cerração. Não se distingue
um palmo adiante do nariz. Kungde e outras tantas montanhas como Thamserku,
Kusum Kangguru e Khumbila, destaques na paisagem, estão escondidas pela névoa. Estamos
esperando o tempo abrir para visitarmos o Sagarmatha National Park donde se pode
ver Everest, Nuptse, Lhotse e Ama Dablam. O sol espreita através das nuvens,
resistindo bravamente à cerração que obstinadamente tenta ofuscá-lo. Graças a
Buda, o bom tempo vence a parada e saímos a passeio. O Parque Sagarmatha tem modesto
e pequeno museu com exposição de fotos de animais e flora. Dois painéis resumem,
em breves pinceladas, o motivo de os sherpas terem se mandado do Tibete, donde são
originários. De acordo com a primeira versão, eles fugiram de lá pra escapar de
mudanças políticas que ocorriam no leste do país. Já a segunda, afirma que eles
podem ter vindo pro Nepal em busca de clima mais ameno. O certo é que os
sherpas ocupam terras nepalesas há somente 400 anos. Em homenagem, ergueram, no
interior dum pequeno anfiteatro de pedras, enorme estátua masculina
representando esta etnia. Ao norte, sobressairiam, se não houvesse tantas
nuvens, Everest, Nuptse e Lhotse. O pouco que consigo ver, antes que as nuvens
toldem por completo os picos, é a grande parede do Nuptse que parece se fundir ao
flanco oeste do Lhotse. Do Everest mal e mal se descortina a pontinha de seu cume. Terminada
a visita ao parque, empreendemos curta porém duríssima subida a Syangboche
(3.900 metros), considerando que o desnível desde Namche é 450 metros. Nessa vila,
foi construído pequeno aeroporto onde pousam helicópteros e as avionetas monomotor
Pilatus Porter. Domina a pista de pouso, a perfeita pirâmide dos 5.761 metros do Khumbila, outro
pico que avisto da base ao cume, quando ontem entrevira apenas seu topo. Após o
almoço, me toco pro Himalayan Java Café. Flavio resolve dar a graça de sua
companhia – coisa rara - e ali ficamos, durante o resto da tarde, batendo papo,
(quando quer, ele sabe ser sociável; na maioria das vezes, entretanto, prefere manter
distância, tanto que não foi uma nem duas vezes que escolheu sentar à mesa diferente
da minha pra fazer sozinho sua refeição), navegando na internet e folheando
livros sobre o Nepal ilustrados com fotografias de excelente qualidade.
Retornamos ao hotel somente à hora da janta e, no envidraçado refeitório, apenas 1/3 de seu amplo salão está ocupado por turistas, a maioria alemães. Antes de deitar,
dou da janela de meu quarto o último vistaço na noite de Namche: a vila devido à densa névoa
que a abraça exibe um excitante aspecto fantasmagórico, fortalecido pelo soar
periódico de badaladas vindas do monastério.
25/03/2017 - Sábado – 8º Dia de
Trek Everest BC – Bupsa a Surke
Céu de brigadeiro e termômetro
marcando algo em torno de 10ºC. Começo de dia perfeito pra caminhar. Antes de
partirmos pra Surke, onde pernoitaremos, subo até o monastério de Bupsa donde
se tem uma vista linda dos terraços de plantações de cereais espalhados nas
encostas das montanhas ao redor. Uma cadela e sua cria, ambas de pelagem preta,
brincam diante da stupa. Fico então sabendo que os dogues em nepali são
chamados de kukur e os gatos de suri beralo. No horário marcado, 8 e 15, iniciamos
nossa jornada diária, quando cruza por nós, decorridos 30 minutos de caminhada,
uma mulher carregando às costas, numa caixa retangular improvisada em berço, uma bela
nenê. A orgulhosa mãe pára quando escuta meus ohs e ahs de admiração e retira o
pano que protege do sol o rostinho da criança: o bebê está quietinho, de olhos
bem abertos. Após quase 3 horas de ininterrupta e íngreme subida paramos em
Thamdada, eu, Nir e Nurbu pro nosso já tradicional chazinho com biscoitos de
côco. Flavio, que prefere se manter apartado, caminhando sempre à frente, não participa,
assim, de nossos teas break. O céu continua azulão sem nuvens a toldá-lo. O
tráfego de aviões e helicópteros é intenso entre Kathmandu-Lukla-Kathmandu. Durante
a pernada, paro pra fotografar pessegueiros, rododendros e lótus floridos
exibindo suas delicadas flores rosadas, vermelhas e brancas. Lá embaixo, o rio
Dudh Koshi desfila suas águas verdes em sinuoso traçado. Quando vêm mulas em
sentido oposto ao nosso, o bom costume local ensina que a preferência de passagem pertence aos
animais. Assim, cada vez que avistamos um grupo de mulas ou dzos, paramos,
espremidinhos à margem da trilha, cedendo o passo aos bichos. Os líderes da
tropa levam pendurados nos pescoços badalos ou colares com pequenos sinos cujo agradável
tilintar metálico muitas vezes avisa sua iminente aproximação. Desde Thandada
só descida num mar de lama, bosta e urina deixadas pelos animais. Não sei o que
fede mais, se a urina ou a merda. Gordas moscas varejeiras voam ao meu redor tentando
fazer de meu rosto pista de aterrissagem...arghhh!! Pra se protegerem do fedor
e da poeira levantada pela passagem dos animais de carga tanto Nir quanto Nurbu
usam máscaras sobre os narizes. Nir pra me consolar diz que a partir de Namche Bazar
só yaks são usados e que seus excrementos não têm odor porque os bichos só
comem grama. Triste consolo esse, ainda faltam dois dias pra Namche. No meio da
profunda irritação que a maldita trilha provoca, dou de cara com o visual dos esbranquiçados
cumes nevados dos picos Numbur (5.500 metros) e Kungde (6.187 metros) e suas esvoaçantes caudas de neve formadas
pela ação dos fortes ventos soprados naquelas altitudes. Levamos quase 2 horas
pra chegar a Poyan, por causa da trilha fedorenta. Embora esteja a vila a 2.780
metros, está fazendo muito calor, tanto que almoço sentada a uma das mesas
dispostas ao ar livre no jardim do restaurante. Deixamos Poyan às 14 horas e continuamos
subindo e subindo até cruzar o passo Chutok donde se avista a imponência dos 6.367 metros do pico Kusum Kangguru. Hoje o dia está sendo
duro porque Nir pegou esse atalho que conduz a Surke de modo a evitar passar
por Lukla. E o tal atalho pra mim tá alongando mais a caminhada, não termina
nunca, puta merda. O fato é que mais que cansada estou irritadíssima o que me
leva a ser inclusive injusta com o coitado do Nir, admoestando-o durante o
caminho pela péssima escolha de itinerário. No dia seguinte, peço sinceras
desculpas pra ele que, generoso, não guardou mágoa alguma de meu mesquinho
comportamento. Antes de iniciarmos a descida até Surke, avista-se Lukla ao
longe situada numa crista de montanha. A visibilidade está excelente porque o
céu manteve-se limpo, sem vestígios de cerração durante o dia. Enfim, começamos
a descer e pouco antes de Surke os rastros duma grande avalanche materializam-se
nas ruínas duma casa destruída. Bueno, desmoronamentos são uma constante nestas
zonas montanhosas, sendo que este foi o segundo do dia visto por mim. Chegamos,
após 3 horas de caminhada desde que partimos de Poyan, a uma das 3 guest houses
existentes em Surke. Localizada dentro do canyon do Dudh Koshi, a 2.200 metros,
com casas espalhadas em ambas as margens do rio, o vilarejo é úmido porém super
fértil. Prova disso são verdejantes plantações de centeio, alho e cebola nos
terrenos ao lado das casas. A enraizada vocação agrícola não deixa ninguém
morrer de fome no país.
26/03/2017 - Domingo – 9º Dia de Trek Everest BC – Surke a Phakding
Saímos de Surke às 8:05 sob pesada névoa embora não esteja frio, acusando o termômetro confortáveis 14ºC. Uma longa mani wall de pedras escuras com mantras escritos em tinta branca sinaliza a rota que conduz a Lukla. O caminho é tranquilo inobstante em contínua ascensão. Como a cerração não dá arrego, aviões não conseguem pousar em Lukla e os poucos helicópteros que tentaram não lograram êxito, retornando a Kathmandu. Da ponte sobre afluente do rio Dudh Koshi, avista-se despencando paredão abaixo comprida cachoeira. Mais duas travessias são feitas nas fortíssimas e longas pontes metálicas construídas sobre o rio Dudh Koshi. Enormes painéis de madeira avisam como identificar sinais de enchente e as providências a serem tomadas nas inundações à entrada de Mushey. Nesta pitoresca vila, com boas e espaçosas residências edificadas em pedra, muros de taipa delimitam os terrenos das propriedades em ambos os lados da rua principal. Dezenas de coloridas rodas de oração estão espalhadas ao longo do vilarejo, além de 2 grandes stupas e um belo pórtico com rodas douradas de oração. O povoado, pelo visto, professa fervor budista mais intenso que nos outros pelos quais tenho passado. Nos trechos de subidas, estas seguem o cansativo estilo de serem calçadas com degraus de pedra. Colada à Mushey, segue-se a vila Cheplung com um belo monastério encravado no alto duma parede rochosa de montanha, lembrando um pouco o Tiger Nest no Butão. A umidade provocada pela cerração deixa fina película d’água em meu rosto. Pessegueiros floridos dão um toque rosa à paisagem. Numa parte da trilha, a cobertura vegetal da encosta da montanha foi arrancada por um grande desmoronamento obstruindo considerável trecho da estrada. Foi preciso, então, construir uma ponte metálica que se estende além do terreno intransitável de modo a manter a trafegabilidade entre os povoados. Meninas saindo do colégio usam deselegantes uniformes que consistem em folgadas calças brancas cobertas com uma sobreposição de paletó azul-marinho sobre bata vermelha. O ensino na escola primária dura 5 anos, prolongando-se por mais 10 anos na high school, conforme a condição econômica das famílias. O número de porters indo e vindo é contínuo, paleteando desde mesas, camas, fardos monumentais de lenhas e de caixas de víveres às mochilas dos turistas. Alguns deles, devido ao peso dos fardos, caminham com o torso dobrado em ângulo de 90º. Apoiando-se numa pequena bengala, mantêm preso aos dentes cordão envolvendo a carga de modo a firmá-la melhor. O trajeto até Gath, vila onde almoçamos, se dá ao longo da margem leste do rio Dudh Koshi. O povoado é bem grandote e o restaurante brilha de tão limpo. Escolho momo recheado com queijo e molho picante. Uma delícia! Às 13 já rumando pra Phakding, leio num cartaz, indicando distâncias e tempos entre vilas, que falta apenas uma hora pra alcançarmos nosso destino. Cada vez mais gente na trilha, tanto indo quanto voltando de Gorak Shep, o último vilarejo antes do acampamento-base do Everest. O caminho é tranquilito tanto nas subidas quanto nas descidas, tendo como bônus o belo e esverdeado visual do rio Dudh Koshi e suas agitadas corredeiras, à mão esquerda. Mais outra grande cicatriz provocada por avalanche de terra, na encosta da montanha situada na margem oposto do rio. Bom demais chegar em Phakding às 13 e 50 porque vou poder dar uma banda na movimentada vila onde há dezenas de lojas, alfaiatarias, bares, night clubs bakeries e guest houses pra todos os gostos e bolsos. Cartões de crédito de variadas bandeiras são aceitos em restaurantes e lodges. Do lado de lá do rio, na margem oeste, atravessando a comprida ponte metálica, descubro uma confeitaria Hermann e suas deliciosas tortas além de vários tipos de bebidas quentes. Escolho uma torta de maçã, deliciosa, e um capuccino. Uma pena que a cerração manteve-se firme e densa durante o dia inteiro, garoando na metade da tarde quando estava dando um rolê na vila. A quantidade de corvos nos telhados, fios elétricos e muros é espantosa. Contudo, não param muito tempo empoleirados, voando de lá pra cá, num veemente crocitar durante a irrequieta movimentação. O quarto tem banheiro mas o chuveiro acionado à base de energia solar não é quente o suficiente prum demorado banho que inclui lavagem de cabelo, motivo por que pago 300 rupias (3 doletas) pra tomar um banho de chuveiro a gás. Já tá na hora duma limpezinha corporal mais aprofundada, afinal, faz 9 dias desde o último banhão. E, aleluia, meu Sim Card NCell pegou, lento, mas pegou, não vou precisar comprar um cartão de wifi local, ebaaa!!
23/03/2017 - Quinta-feira – 6º
Dia de Trek Everest BC - Junbesi a Nuntala
Dia nublado e temperatura de 9ºC quando acordo às 6 da matina mas quando saímos de Junbesi às 8 e 20, o sol dá as caras com timidez num joguinho besta de esconde-esconde. Inicialmente, sobe-se, ou melhor, escalaminha-se (será
assim até o Eve BC?) degraus de pedra, pra mim demasiado altos, considerando minhas
curtas pernocas. Mas nem tudo são espinhos porque o sendero atravessa encantador
bosque de pinheiros. Após 1 hora de árdua subida, o terreno vira chão batido e o
sol brilha firme num céu despejado de nuvens, onde paramos num mirador e
avistamos atrás de nós Lamjura La. O passo, um côncavo coberto de neve, aninhado
entre duas encostas de montanhas, parece tão longínguo mas dista apenas 11 km. Saímos do aconchego do bosque e passamos a
caminhar a céu aberto numa trilha que percorre encostas de montanhas. No
2º mirador, sentada à comprida mesa, diante da guest house, provo o saboroso
queijo de vaca vendido pela dona do estabelecimento. A simpática anciã pergunta se tenho
filhos enquanto apalpa meu casaco e toca na minha blusa falando algo que não
entendo. Nir chamado a traduzir, explica que ela observou que estou com a
camiseta do avesso, hahahaha. Deste mirador já é possível se ter um vistaço do Everest,
Lhotse e Makalu. Muitas nuvens toldam as bandas do norte onde esses 8 mil se localizam, e
só consigo avistar a ponta do cume do Kusum Kanggaru (6.367 metros). Coisa boa que
a trilha agora passa a ser o bom e velho chão batido, enfeitado por prímulas azuladas. Lá embaixo, no vale,
serpenteia o rio Ringmu em cujas margens espalham-se diversos vilarejos. Novamente,
ingressamos num bosque com rododendros floridos. Nir chama minha atenção prum
bando de veados pastando numa encosta. Passamos ao largo de Phaplu, situada no
lado de lá do rio. Ele conta que muitos turistas vêm de bus de Kathmandu até essa
vila, (demora 13 horas a viagem!!), indo então até Lukla numa pernada de 3 dias,
dali seguindo pro Everest BC. Acrescenta que quando Lukla tem muito nevoeiro,
os helicópteros pousam em Phaplu, esperando o tempo melhorar pra retomar o vôo.
Passa-se por uma big avalanche de terra. A impressão que tenho é a de que a
qualquer momento vai despencar mais terra e rochas. Caminho em silêncio, porque
sei que podem as ondas sonoras emitidas pelo conversê provocar novo desmoronamento. Caladinha, então, eu, né!! A trilha
de chão batido tangencia a vila de Salung e segue, assim, com amáveis subidas até
uns 30 minutos antes de Ringmu. Tanta benesse estava durando muito, em se
tratando de zona montanhosa, porque pouca demora, tem início uma escadaria de
pedra que faria o pagador de promessas, se tivesse de percorrê-la, repensar sua
dívida com Deus. O pior é que nunca se vê o topo da maldita escada, tanto que começo
a me irritar e brigo com meus botões. O tempo nublou geral faz mais
duma hora. Trovões soam ao longe e fina cerração paira sobre o ambiente. Chego ao
restaurante em Ringmu com as roupas encharcadas de suor. Tiro-as e peço pra Nir
colocá-las diante do fogão à lenha na cozinha de modo que sequem durante o
tempo em que ficarmos aqui almoçando. Terminada a refeição, saímos de Ringmu debaixo
de vento e frio mas sem chuva, aleluia. Outra subida bem íngreme, calcorreando uma
estrada de pedras nos leva aos 3.071 metros de Trakshindu Pass. Coisa boa que, sempre
após um passo, vem a confortável (nem sempre) descida. Decorridos 20 minutos, estamos diante
do 3º monastério budista mais antigo do Nepal, de mesmo nome do passo. Atraída
pela música e mantras entoados pelosmonges, entro no recinto. Uma
beleza o som dos instrumentos de sopro e percussão seguido pelo cantochão dos mantras
pausados por precioso silêncio entre um e outro. Após, descida até Nunthala com
duração de pouco mais de 2 horas. Desde Trakshindu, venho observando somente o tráfego
incessante de mulas, porque desta vila em diante apenas trilhas e estradinhas impossíveis de serem trafegadas por
veículos automotores. Intenso o vai e vem dos animais porque alimentos e
materiais como botijões de gás são conduzidos a partir de Lukla até Gorak Shep,
retornando os animais de lombo vazio das zonas de altas montanhas. Segundo Nir,
o movimento chega a 200 animais por dia, daí porque as trilhas são atapetadas de
bosta fresca. Embora estejamos descendo uma íngreme ladeira, a coisa se complica porque grande parte da trilha está lamentavelmente coberta
dum misto de lama e merda de mula. O risco de escorregar e se estatelar nesta
mistura fedorenta é grande. Passados 40 minutos, atingimos terreno seco e chego
incólume às 17 e 16, salvo botas e barra da calça imundas, a Nunthala,
uma gracinha de vila. Em ambos os lados da rua principal, diversas guest houses
e armazéns com as tradicionais fachadas pintadas de branco e aberturas em azul.
Algumas das residências têm jardins na frente com rododendros floridos, outras
um páteo espaçoso com piso de pedra. Conheço durante a janta, uma jovem francesa
que conta ter trabalhado durante 2 anos em uma das aldeias mais severamente
atingidas pelos terremotos de 2015, onde vieram a perecer mais de 1000 pessoas.
Comenta que isso mudou sua vida e mais não fala sobre a catástrofe. Minha
curiosidade nem ousa perguntar o motivo!!
24/03/2017 - Sexta-feira – 7º
Dia de Trek Everest BC – Nuntala a Bupsa
Situado
no nordeste do Nepal, Solukhumbu, um dos 14 distritos que fazem parte da
província nº 1, criada pela nova constituição de 2015, é a região por onde
caminharemos durante os demais dias deste trek ao Eve BC. O país é uma sociedade
com pluralidade de culturas em que os sherpas são meramente a mais famosa
minoria num país onde não há maioria. São cerca de 30 etnias que nem sempre
conviveram de forma pacífica. Bueno, depois dessa pequena introdução, deixemos
o aspecto histórico e voltemos à Nunthala e sua manhã nublada, com temperatura em
torno de 11ºC. Partimos dos lugarejos, geralmente, às 8 e 15, horário fixado
por nosso dear guide Nir. Assim, pontualmente, deixamos pra trás este vilarejo encantador
e iniciamos a descida de mil metros que se estende até o rio Dudh Koshi. Começa
a esquentar bastante o que me obriga a guardar o agasalho na mochila e ficar de
manga curta, coisa boa!! A trilha percorre um largo trecho de floresta cujo terreno
é aquele característico pedrario que tanto “amo”. Vai à nossa frente um rebanho
de dzos (cruza de yak com boi) tangidos por três jovens. De repente, um dos
animais resvala na ribanceira e escorrega encosta abaixo. Um dos rapazes tenta
segurá-lo pelo rabo não logrando êxito devido ao peso do bicho. Nenhum mugido se escuta enquanto o
pobre dzo rola pela ribanceira. Cessada a queda, que dura uns 2 minutos, eis o dzo
de pé, sem qualquer ferimento aparente, sendo rebocado de volta à estrada. E nenhum
dos homens se atucanou ou se desesperou durante a queda do boi. Nas zonas abertas, chama atenção as
cicatrizes deixadas pelos deslizamentos de terra nas encostas das montanhas
situadas na margem oposta do rio Dudh Koshi. Cruzado o rio, começa a subida naqueles
degraus infamemente altos. O tempo continua nublado. Atravessamos Juving, vila grandota,
com dezenas de casas onde paramos numa tea house pra tomar chá e comer
biscoitinhos de côco. Como muitas casas, esta também têm antena Sky, exibindo a tv um programa sobre desperdício de água no país. Continuamos
a cansativa subida até Kharikhola onde fazemos uma boa pausa pro almoço. A vila
é grande com vários lodges, contando também com posto de saúde, o que denota sua
importância no distrito de Solukhumbu. Terminada a refeição, percorremos o
restante do povoado até a ponte metálica sobre o rio Khari. Do outro lado da
margem, começa outra subida no pedrario, dessa feita sem falsos planos, até
Bupsa, avistável no alto duma colina. O tempo se torna mais fechado e pingos
miúdos estão caindo quando chegamos às 15 e 50 na vila que conta com um pequeno
monastério. Bem menor que Kharikhola, Bupsa situa-se bem
acima do rio, empoleirada numa crista de montanha. A cerração baixou de vez tanto
que nem se pode avistar mais Karikhola do outro lado do rio. Descobri a razão
de as escadas dos lodges serem tão íngremes quanto as lombas. São feitas bem verticais pra não ocuparem
muito espaço no interior das residências. Na janta, resolvo provar a típica comida
nepalesa, o dal bhat, que vem a ser mutatis mutandis, arroz (bhat) com feijão, no
Nepal substituído por sopa de lentilha (dal). Acompanha, conforme a região, verduras
da estação, uma casquinha gostosíssima, bem fininha, feita de farinha de trigo,
batatas com curry ou picles. Só falta a farinha de mandioca pra eu me sentir no
Brasil hehe
21/03/2017 - Terça-feira – 4º
Dia de Trek Everest BC - Sete a Junbesi
Saímos
de Sete às 8 e 15 com céu de brigadeiro, dia mais perfeito impossível que nem
a baixa temperatura - 5ºC – macula. A trilha, linda, quase toda dentro dum
bosque de coníferas e floridos rododendros. Destacam-se algumas árvores de
lótus em cujos galhos pendem as alvas florescências. Reza a lenda que Buda já nasceu
taludinho - 8 aninhos, vejam só! -, parido desta flor. Vai ver por isso é tão formosa.
Passamos por Dagchu, no topo da crista duma montanha, onde 2 gurizinhos sentados
ao sol, comem arroz usando as mãos. Tanto aqui quanto no Butão o povo dispensa
talheres. Com mais ½ hora de caminhada, atinge-se a marca dos 3.000 metros de
altitude na comunidade de Bhakange, já em Goyem, onde paramos pra tomar chá acompanhado
por deliciosos biscoitos de côco, oferecidos pelo gentil Nir. Sentados ao ar
livre, o cenário é deslumbrante. Tudo ao redor está embranquecido da recente neve
que tem caído neste final de inverno. A coloração verde dos topos das montanhas
é encoberta pela branca cobertura das nevascas. A subida adquire certa dificuldade
mas nada que se compare à dos 2 dias anteriores. À medida que nós aproximamos
de Lamjura village, a trilha vai se sendo oculta pela neve até que não reste trecho
algum do terreno pedregoso. Decorrida 1 hora e 30 minutos chegamos ao vilarejo
de Lamjura localizado a menos duma hora do Lamjura Pass. Comemos num misto de
armazém e restaurante muito acolhedor. Na cozinha um bom fogo arde no fogão à
lenha. Quem prepara a refeição é a dona do estabelecimento. Peço um gostoso veg
fried rice e lemon tea que como na rua aquecida pelo sol das 13 horas. Tudo
branco, que cenário! Parece cena de filme do Dr. Jivago. O tempo continua magnífico: céu azuladíssimo
e sol brilhando sem nuvens a toldá-lo. Vários aviões passam naquele vai-e-vem
incessante entre Lukla-Kathmandu-Lukla. O céu até então livre de nuvens começa
a ser preenchido de mansinho por elas. Como num passe de mágica, em
questão de 10 minutos, baixa cerrada névoa toldando por completo a paisagem. Durante
o almoço, batendo papo com uma alemã, fico sabendo que a pobre mulher não pôde
continuar além de Namche Bazaar porque lá foi vencida pelo mal de altitude. E
olha que Namche está tão-somente a 3.440 metros! Terminado o almoço, retomamos
a caminhada subindo outra crista de montanha que conduz até Lamjura
Pass. A encosta apresenta espessa camada de neve. Atravesso durante 45 minutos um
manto de imaculada e ininterrupta brancura. Dificulta a pisada a fofura do
terreno nevado onde afundo algumas vezes até metade da anteperna. Nir, aflito, solta ohs de preocupação nas
três vezes que caio no solo macio. Ao alcançar os 3.600 metros do Lomjura Pass,
nada se pode avistar exceto as bandeirolas coloridas das preces budistas, típica
demarcação de altitudes significativas. A densa cerração esconde toda a região.
Logo após cruzarmos o passo, observo com espanto, vindo em sentido contrário, uma
moça vestindo camiseta de mangas curtas apesar do baita frio que faz. Elogio-a dizendo
que é uma super woman, o que lhe arranca risadinhas. Do passo até Junbesi, só
descida em outra linda floresta de coníferas e rododendros. O solo mantém-se ainda
firmemente encoberto por neve o que exige cuidado redobrado porque bobeou se
torce um pé ou joelho já que a chance de escorregar em tal tipo de terreno é
grande. À medida que se perde altura, a neve vai escasseando pra finalmente se
pisar em chão batido. Dentre as várias vilas existentes desde o passo,
destaca-se a de Tragobuk onde há um monastério. Chegamos a Junbesi, situada a
2.700 metros de altitude, às 18 e 30, quase noitinha. A vila fez parte da rota
traçada por Hillary e Norgay na expedição ao Everest em 1953. Foram 10 horas de
caminhada em que exigente não foi a subida e sim a descida! Mas valeu tão longa pernada porque o percurso
é muiiitoooo lindo!!. Com o sugestivo nome de Apple Garden Guest House, nossa
pousada tem sua fachada enfeitada com uma linda roda de orações. O amplo edifício tem 2 pisos e os quartos são de
bom tamanho, embora banheiros, por uma óbvia questão econômica, sejam compartilhados,
oferecendo-se, contudo, aos hóspedes os 2 modelos: ocidental
e buracão. Há eletricidade e plugs nos quartos de modo que posso carregar os
dispositivos eletrônicos sem custo algum. No refeitório, uma salamandra é acesa
ao final da tarde quando começa a esfriar. A dona da guest dispõe a comida nos
pratos com certo requinte, que beleza! O banho de chuveiro custa 250 rúpias, ou
seja, 2 dólares e meio, já o de balde custa bem menos. Resolvo não encarar nem um nem outro, porque estou há apenas 4 dias sem me lavar, afora o fato de não precisar dividir
cama com nenhum ser vivente. Dá pra resistir uns diazinhos mais. Como aqui
não pega NCell, uma das 2 operadoras nepalesas de telefonia celular e internete
(no segundo dia em Kathmandu, tratei de adquirir um Sim Card por 48 dólares, com
cobertura nacional, conforme apregoa a empresa. Triste engano, igualzinho ao Brasil, a propaganda é enganosa), compro
cartão de wifi de 500 Mb por 500 rupias (5 dólares) da outra operadora que dura
um dia. Pago o preço, não quero e não gosto de ficar alienada do noticiário. Liberdade pra
mim não significa renegar relógio ou manter-me desinformada, e, sim, exercer a opção
de me conectar ou não, tá ligado?
22/03/2017 - Quarta-feira – 5º
Dia de Trek Everest BC - Junbesi
O dia amanhece belo, céu azul de brigadeiro, temperatura amena. Resolvo em vez de
sair com Nir e Flavio pra conhecer o monastério de Thubten Chholing lavar umas
roupas e descansar porque hoje ficaremos nesta aprazível vila. Ademais, a
costela que trinquei há quase 2 meses está doendo um pouco, provavelmente de
carregar a mochila que, entre camel bag com 1,5 litro de água, e outras
bugigangas, deve pesar quase 4 kg. Pra mim é muito considerando que tenho dores
frequentes na lombar devido à artrose. O caminho é longo, tenho pela frente mais
19 dias de caminhada até Lukla, sem desconsiderar o segundo trek de 10 dias até
o Annapurna Base Camp quando acabar este. Daí por que prefiro me poupar. Aproveito a manhã ensolarada e lavo peças de
roupa num tanque cuja “torneira” é uma bela carranca feita em madeira. Em 2
horas as vestimentas estão secas. Respondo a alguns comentários no facebook e
publico novas fotos. Terminadas as “obrigações”, dou um rolê pela vila onde há
2 stupas, uma grandona de 300 anos, ainda em reconstrução após os terremotos de
2015 e outra menorzinha, poupada do embate entre as placas tectônicas. A
dona da pousada é bem moça, mãe dum casal de piás. Eventualmente perde a
paciência com as crias: não chega bem a gritar, levanta, porém, a voz num tom
irritadiço. Ocupadíssima, não consegue dar conta de tudo, é claro. Trabalhando
o dia inteiro, conta com ajuda na hora das refeições duma irmã e empregada. Um
guri duns 12 anos (não é parente) cuida um pouco das crianças e dá uma mão na
cozinha descascando batatas e legumes. Quando volto do tourzinho na vila, encontro-a
no páteo terminando de dar banho nas crianças as quais enrola em toalhas, pondo-as
sentadas em cadeiras uma diante da outra pra se aquecerem ao sol das 11 horas. À
tarde, visito um dos 2 monastérios existentes em Junbesi, fundado em 1639, onde
compro 2 lindas echarpes de seda amarela. O Lama além de me presentear com a
efígie gravada num broche dum notável sacerdote budista (esqueci de perguntar o nome)
ainda dá 2 sementinhas cuja função é proteger meus deslocamentos seja de carro,
moto, avião ou bicicleta. Pena que não poderei comparecer ao festival budista
que acontecerá em abril, aqui, no monastério, porque estarei me deslocando pro
norte, rumo ao Eve BC. Nir não é só um guia mas uma babá. Cuida de seus
turistas com dedicação genuína. Sua pronúncia de inglês é terrível, ele
distorce as palavras duma forma que ficam irreconhecíveis. Contudo sua boa
vontade em explicar - se for necessário ele repete n vezes a palavra - é
comovente. Prolixo, ele se perde em explicações que mais confundem que
clarificam naquele inglês, pra mim, pelo menos, muitas vezes ininteligível. Nurbu, o porter, magro que nem graveto, está carregando além dos 30
kg permitidos. Tudo porque Flavio não respeitou os 15 kg convencionados pra
cada um de nós. Chocólatra, o cara pôs na mochila uns 10 kg em barras de
chocolate! Sentindo-se culpado, resolve contratar outro porter de modo a aliviar
Nurbu de paletear peso extra. Mas nem Nir tampouco Nurbu querem isso. Sempre de
olho nas gorjetas, sabem que se houver mais um no staff o dinheiro terá de ser
dividido não entre 2 mas entre 3. Consigo dissuadir Flavio da inconveniência de
tal decisão, enfim, aceita pelo “piedoso” carioca. Nurbu, quando entra em meu
quarto, vasculha, sem qualquer pudor, com seus pequenos olhos escuros, meus pertences espalhados sobre a cama. No início, até desconfiei dele, injustamente, percebendo depois que o pobre rapaz era movido apenas por curiosidade. Chega na guest house um grupo de gurias pedalando mountain bikes, terminando de lotar a pousada. No grupo, há europeias e nepalesas. Como a pousada tem duas salas de refeição, me mudo pra da frente porque a do lado da cozinha está cheia de gente falando alto e gosto de silêncio quando escrevo. Às 16 o tempo vira: o sol desaparece por completo e, agora, 17 e 30, a cerração espalha-se sobre a vila, não se enxergando além de 20 metros. Interessante como os estrangeiros percebem nosso idioma. Associam a uma língua latina, não atinando se é francês, italiano ou espanhol, nem cogitam em arriscar o português, pode? Pelo visto Portugal não representa muito pro resto da Europa!