sexta-feira, 31 de março de 2017

Everest, um nanico entre gigantes

30/03/2017 – Quinta-feira – 13º dia de Trek Everest BC – Tengboche a Dingboche
Às 5 e 30 quando acordo está um baita dia o que não me espanta porque quando levantei durante a madrugada para fazer xixi o céu estava todo estrelado. Às 8 e 15, nos despedimos de Tengboche, donde se tem uma visão espetacular do Nuptse, Lhotse e Ama Dablam. Ah, do Everest mal e mal se vê a miniponta de seu cume, motivo por que nem merece minha atenção, é um anão diante dos outros hahahaha!! O movimento de helicópteros está animado, inclusive um deles pousa aqui na frente do hotel pra deixar alimentos e pegar turistas que retornam a Kathmandu. Nem sei se é o caso desses, mas muitos turistas não conseguem completar o circuito Everest BC por causa do mal de altitude. A trilha, inicialmente, é uma descidinha no bosque de rododendros. Depois só encosta de montanha a céu aberto. Do Nuptse, Lhotse e do minúsculo e escuro ponto que é o Everest pouco se vê porque há sempre uma parede de nuvens escondendo-os. O Ama Dablam, contudo, não deixa barato pras nuvens, e impõe sua branca nudez sobre a região. O dia continua lindaço. Kungde, pico do qual gosto muito, fica pra trás, mas ainda se vê à direita o leque de rochas que forma a parede oeste do Thamserku. Não é uma trilha exigente embora continuemos a ganhar altitude gradualmente. Passamos por Pangboche encarapitada a 3.985 metros. A vila tem boas guest houses, feitas de pedras, material usado na construção de 90% das residências do Solukhumbu. Muitos currais de yaks, todos eles vazios, já que o transporte de cargas nesta época do ano não permite que os bichos esquentem lugar. Daqui pra frente mulas e dzos não têm mais vez nas trilhas. Pangboche é porta de entrada pra quem quer escalar Ama Dablam. Pra tanto, deve se cruzar o rio Dudh Koshi e pegar a trilha que conduz àquele acampamento-base. Uma estradinha bem estreita, num terreno escarpado onde lá embaixo se encontra o Dudh Koshi, desce até Shomare onde paramos prum lunch break. Aqui já está almoçando o simpático casal de alemães que conheci em Junbesi e que ocasionalmente encontro. A partir de Shomare, a paisagem sofre dramática alteração: salvo a presença de pequenos arbustos espinhentos inexiste qualquer outro tipo de vegetação. Caminhamos por 2 horas no árido vale banhado agora pelo Imja Khola. Cercado por montanhas sem grande expressão, apenas Ama Dablam é digno de nota. Conforme nos deslocamos, novas faces Ama desfila de seu mesmerizante e esquizofrênico perfil. Quando próxima de Dingboche, se agiganta, à esquerda, Taboche. No fundão da vila, destaca-se, ao lado do Lhotse, Island Peak, montanha muito procurada por turistas devido ao seu status de “facinha”, também é escalada pra aclimatar antes de os montanhistas se lançarem em busca do cume do Everest. Às 14:00 estamos entrando em Dingboche cuja rua principal, demarcada por muros de pedras, tem em ambos os lados lodges, padaria e até um salão de sinuca. Várias lojinhas vendem desde toucas de lã a papel higiênico. O tempo muda a partir das 16 e 30, baixando aquela cerração e sensível queda de temperatura. Após conversar com Silvia, jovem italiana de 20 anos, que viaja sozinha, carregando pesada mochila, vou pro quarto onde descanso até a hora da janta. Os 4.500 metros de altitude - não é pouca coisa, não é mesmo? - estão cobrando seu preço, na forma duma dorzinha de cabeça e um pouco de sono. Agora 18 e 20, vejo pela janela envidraçada do refeitório que a cerração se dissipou restando apenas pequenas caudas de nuvens nas partes mais baixas das encostas das montanhas ao redor da vila. Island Peak, até então obnubilado, ressurge lindo tal qual bolo polvilhado com açúcar de confeiteiro.
31/03/2017 – Sexta-feira – 14º dia de Trek Everest BC – Dingboche
Desperta às 5 da manhã porque, como não gosto de fechar cortinas pra escurecer o quarto, a claridade é o melhor despertador já inventado. O dia promete ser deliciosamente comportado. Agora 7 e 30, o bom tempo dá alô exibindo impecável céu de brigadeiro. Dentro do hotel a sensação térmica é mais baixa que a da rua onde o termômetro marca 5ºC. Hoje é dia de “descanso” em Dingboche. Descanso, em treks que envolvem alta montanha, nem sempre significa ficar de barriga pra cima, sem nada a fazer. Pra nos fortalecer, já que daqui em diante, só há ganho de altitude, vamos aclimatizar subindo o Nagarjun, um pico de 5.040 metros. O ascenso é suuuuperrrr puxado. Nem consigo curtir o visual enquanto calcorreio a puta rampa que conduz ao cume porque só concentro em harmonizar a respiração a cada passo dado. Meu foco é respirar com calma e caminhar sem pressa de chegar. Descanso algumas vezes pra recuperar o fôlego sem sequer pensar em fotografar ou filmar os arredores. A energia dirige-se apenas pro cobiçado cume. Que alívio quando alcanço o amontoado de rochas escuras ao final da duríssima, e bota dura nisso, ascensão ao cume do Nagarjun!! O cenário é recompensador: à leste Ama Dablam, Kangtega (6.782 metros) e Thamserku, ao sul, nas bandas de Namche, Kungde e, a sudoeste, Taboche (6.542 metros) e Cholatse (6.440 metros) voltados pro vale que leva a Lobuche. Dá pra ver ainda Island Peak, também conhecido como Imja Tse (6.160 metros) bem como a perfeita forma piramidal do Cho Polu (6.735 metros). E pra completar tanta belezura e grandeza, avisto, de inhapa, boa parte do flanco nordeste do Makalu (8.463 metros)!! Sorte nossa de o tempo estar tão legal, proporcionando alta visibilidade da região. Durante nossa permanência no pequeno cume do Nagarjum, vão chegando mais turistas, alguns com ar abatido, outros bem serelepes. À margem direita do rio Tsola, se vê a vila de Periche, segundo Nir bem mais fria e ventosa que Dingboche embora situada a mesma altitude. O tempo, pouca demora, mostra seus maus bofes e rapidinho a cerração encobre a paisagem, motivo pelo qual iniciamos o descenso pelo bem demarcado sendero. Não tão cansativa, é claro, quanto a subida, exige ainda assim bastante cuidado porque coberta de areia fina. Percebo quão bom é o uso dos bastões nesse tipo de terreno, evitando escorregões à toa. Além da cerração, o frio ventinho que sopra aumenta o desconforto durante a descida. Chego exausta em Dingboche e, após o almoço, venho pro quarto descansar. Aquecida embaixo do edredom, entremeio leitura de contos de Katherine Mansfield com deliciosas cochiladas. Tenho de fazer certo esforço pra levantar, porque se não tivesse de jantar permaneceria deitada. Não só a altitude quanto o tempo colabora pra que eu me sinta preguiçosa. Sinto que o esforço despendido na descida do Nagarjun deixou marcas dolorosas em minhas coxas. O número de turistas aumenta a cada dia que passa, tanto que hoje a Guest House Yak, onde me hospedo, se encontra com lotação esgotada ao contrário de ontem, parcialmente ocupada. Observo que as pousadas, por questão econômica, não utilizam em seu interior isolamento acústico. Assim, as paredes que separam os dormitórios não passam de finas divisórias de compensado, razão por que deixam vazar o mais insignificante dos ruídos. Em meio à vulgaridade dos sons emitidos pelos vizinhos de quarto, observo que o céu noturno, até então envolto em brumas, ostenta em meio a oceanos de estrelas uma lua crescente.

quarta-feira, 29 de março de 2017

Super heróis na trilha

29/03/2017 – Quarta-feira – 12º dia de Trek Everest BC – Namche Bazaar a Tengboche
Com céu de brigadeiro, às 6 da manhã, faz frio, coisa de 5º C. Avisto, enfim, os generosos flancos cobertos de neve do Kungde. Saímos de Namche às 8 e 15, rumo a Tengboche, onde pernoitaremos. A trilha de chão batido, aberta em encosta de montanha, é limitada à direita por penhascos que formam o paredão oeste do canyon onde desfila o rio Dudh Koshi. Segue nessa moleza até Phunki Tenga, salvo curtos trechos de subidas ou descidas mais ardidas devido à presença dos famigerados degraus de pedra. É um mar de montanhas e gargantas que se sucedem vertiginosamente. A cada curva de estrada desponta, ao norte, o quase imperceptível cume do Everest, escondido pela escura cimeira sul do Nuptse e pela grandiosidade dos paredões do Lhotse. À leste, as duas cristas, tais asas angelicais encravadas em cada lado da pirâmide principal do Ama Dablam, parecem abençoar a região. Apesar de ser um 6 mil (mais exatamente 6.812 metros) e o terceiro mais procurado pico do Himalaia, isso não quer dizer que seja uma montanha facilmente escalável. Pelo contrário, exige alto nível de conhecimento técnico em sua ascensão. Nos dois mirantes, onde há stupas caiadas de branco, os turistas param pra curtir e fotografar Everest, Nuptse, Lhotse e Ama Dablam, os mais emblemáticos da região. O motivo pro crescente afluxo de turistas na trilha se deve, a um, porque a maioria são jovens com pouco dias de férias, e, a dois, porque partindo de Lukla o bate e volta do trek ao Everest BC dura 15 dias. Como a alta temporada da primavera está em seu início, o número de turistas indo pra Gorak Shep é bem mais superior ao que retornam de lá. Paramos prum chá em Kyangjuma, donde desfruto, sentada a uma mesa ao ar livre, as nunca cansativas presenças de Ama Dablam, Lhotse e Taboche destacando-se contra o fundo azul do céu. O cenário magnífico, a aconchegante vila e a simpatia de seus moradores faz com que eu lamente não poder pousar aqui. Ao sair de Kyangjuma, percorro uma alameda de rododendros, pena que ainda não floriram. O tempo muda, assim, num estalar de dedos. Quando me dou conta, o céu nublou geral e nem bem 11 e 30 são....tsk tsk tsk. Claro está que ausente o sol, baixa uma friaca. Uma boa descida conduz a mais uma das tantas pontes metálicas que unem uma margem a outra do rio Dudh Koshi. Continuo ladeira abaixo até Phunki Tenga, porque a vila se alça à modesta altitude de 3.250 metros, mais abaixo, portanto, de Kyangjuma, situada a 3.600 metros. Nir se dirige ao check point existente na vila onde aproveitamos também pra almoçar. A partir de Phunki Tenga, dentro dum bosque de coníferas, ziguezagueando por encosta de montanha, começa a fudida duma subida tão íngreme é, demorando a exaustiva pernada 1 hora e 45 minutos. Numa curva de trilha, as nuvens de tão baixas flutuam a poucos metros do solo. Encontramos Tengboche às 14:30 envolta em brumas. Um pórtico com rodas de oração em seu interior marca a entrada na vila. Nossa guest house com o sugestivo nome Tashi Delek (saudação em tibetano que significa boa sorte) fica a 50 passos do monastério onde assisto a breve cerimônia budista naquele que é considerado o templo mais importante do Solukhumbu. Jovens da região são enviados pra estudar budismo ali, devendo permanecer castos durante o curso. Após a graduação, os casamentos não só são permitidos como incentivados. Durante a janta, no aconchegante refeitório envidraçado, rememoro os impressionantes procedimentos realizados, à tarde, na trilha por um jovem porter (95% têm entre 16 a 35 anos). Carregando um compensado de 2,50 m por 70 cm de largura, o rapaz usava na lombar uma espécie de rolinho pendurado às costas de modo a amortecer o impacto da madeira na coluna. Na testa, uma faixa de pano presa à carga firma e equilibra melhor o fardo. Chego à conclusão de que os verdadeiros super heróis são eles, os porters!!

segunda-feira, 27 de março de 2017

Um homem exemplar

27/03/2017 - Segunda-feira – 10º Dia de Trek Everest BC – Phakding a Namche Bazaar
O céu se revela sem rastro de nuvens que manchem de branco sua pura coloração azulada. Temperatura amena pra quem está a 2.640 metros. O barulhento ruído de aviões e helicópteros indica que as aeronaves retomaram as atividades diárias, voando apressadas de sul a norte pra compensar o stop forçado causado pela envolvente cerração que teimou em reinar durante o dia anterior. Mais britânicos na pontualidade impossível: são 8 e 15 quando deixamos Phakding. O dia promete ser longo e árduo por causa do desnível de 830 metros entre Phakding e Namche Bazaar. Porém a trilha nem se revela tão difícil quanto imaginei. Embora íngremes, as subidas e descidas nem muito longas são. Na paisagem linda demais, destaca-se Thamserku (6.623 metros), bela montanha nevada, em forma de leque, além do Khumbila, pico com formato piramidal e pouca neve nas encostas. O rio Dudh Koshi corre ora à esquerda, ora à direita, dependendo tal posição da necessidade de se cruzar à margem oposta. Pra tanto, a travessia se faz sempre sobre as firmes e longas pontes metálicas. Caminha-se geralmente a céu aberto mas vez por outra adentramos florestas de pinheiros que exalam agradável odor resinoso. Intensifica-se o número de turistas retornando de Gorak e isso que nem estamos no auge da alta temporada. Um casal da Malásia, vindo de Khala Patar, com quem converso rapidamente na trilha, conta que apesar da boa visibilidade do lugar, o frio era congelante, em torno de -25ºC, a ponto de suas câmeras digitais terem descarregado mega rápido, mal podendo fotografar Everest e demais picos circundantes. Em Monjo, enquanto aguardo Nir cumprindo os procedimentos burocráticos de carimbar nossos cartões Tim no check point, conheço Richard, um holandês dotado das clássicas feições de homem bonitão: alto, magro e de olhos azuis. Sem guia e porter, carrega solito seu mochilão. Até aqui nada incomum em se tratando de trekkers. O que torna Richard extraordinário é ser ele portador de esclerose múltipla. Tem 51 anos e foi diagnosticado doente aos 45. Até agora, a manifestação mais grave da doença é a evidente dificuldade na fala. Por isso carrega com ele um papel contendo alguns dados pessoais e telefones em caso de emergência. Poxa, cara fora de série esse Richard, sem quaisquer mimimis: libertou-se do medo de viver e do medo de morrer! Viva Richard! Nova travessia sobre o Dudh Koshi, percorrendo agora ponte beeem mais alta que as anteriores - em torno duns 40 metros de altura - que nos leva à margem direita do rio onde está a encantadora vila de Jorsalle. E ali paramos pra almoçar. As guest houses voltadas pro rio permitem assim que ocupantes de quartos e refeitórios desfrutem do lindo visual de suas águas esverdeadas. O tempo até então ótimo ameaça dar uma virada quando nuvens começam a dar o ar de sua desgraça no céu até então límpido. Eu que estava sentada no terraço do restaurante, sou obrigada a entrar porque um vento começa a soprar energicamente. Agora já se vêem menos mulas e mais dzokios na trilha porque a pelagem basta destes animais os protegem melhor do frio, conforme o ganho de altitude. Todavia, a partir de Namche, são usados somente yaks, cujo pelo espessíssimo resiste a temperaturas abaixo de zero e altitudes acima de 4 mil metros. De Jorsalle em diante, só subida, mais exigente quando se caminha sobre terreno em degraus e menos dura em se tratando de chão batido. O bom é caminhar num cenário sombreado por bosques de pinheiros. Se a ponte de 40 metros me pareceu alta a que cruzo agora é o Everest das pontes. Medindo prováveis 100 metros de altura natural que oscile devido ao peso dos transeuntes e animais. Estranhamente, há outra ponte, 30 metros abaixo que deve conduzir a outras paragens. Passamos por Top Danda onde, caso o tempo estiver claro, é possível vislumbrar Everest (8.8458 metros), Nuptse (7.861 metros) e Lhotse (8.516 metros). Infelizmente, o lugar, encoberto por nuvens, não permite que se veja montanha alguma. Mulheres vendem maçãs e garrafas d’água enquanto turistas descansam após a super ardida subidinha. E o resto da pernada até Namche transcorre tranquila, numa larga estrada de chão batido, percorrendo-se ainda bosques de pinheiros. Outra vez, coisa boa, terminamos cedo a pernada, entrando às 15 e 10 em Namche Bazar. Pouca demora, a cerração envolve a vila que assim permanece até a noite. A princípio não gosto muito de Namche pois parece uma moderna e limpa Thamel. No dia seguinte, entretanto, já estou adorando, especialmente, por causa do aconchegante Himalayan Java Café onde afora free wifi é possível carregar sem pagar os dispositivos eletrônicos. Antes da janta, vamos eu e Nir pro Java Café onde o gerente é amigão do guia. Nos esbaldamos na internet. Ele falando com seu irmão que vive na Coréia do Sul e eu postando fotos no Face. À noite, em meu quarto, quando olho pela janela luzem estrelas no céu.

 
28/03/2017 – Terça-feira – 11º Dia de Trek Everest BC – Namche Bazaar
Hoje descansa-se em Namche. Mesmo assim, acordo às 6 da matina e o dia já está claro. Da janela do quarto, sou presenteada com os gratos 6.187 metros do Kungde, vistos dos pés à cabeça, opa, do sopé ao topo. O motivo de tal contentamento é porque tenho entrevisto este pico desde o 8º dia, quando então me dirigia de Bupsa a Surke, enfrentando aquele fétido e escorregadio mar de lama, bosta e urina. Acontece que naquele trecho só era possível avistar seu topo nevado e agora consigo enxergá-lo por inteiro, ulalá! Às 7 e 20 quando baixo ao refeitório, Namche e adjacências estão envoltas em forte cerração. Não se distingue um palmo adiante do nariz. Kungde e outras tantas montanhas como Thamserku, Kusum Kangguru e Khumbila, destaques na paisagem, estão escondidas pela névoa. Estamos esperando o tempo abrir para visitarmos o Sagarmatha National Park donde se pode ver Everest, Nuptse, Lhotse e Ama Dablam. O sol espreita através das nuvens, resistindo bravamente à cerração que obstinadamente tenta ofuscá-lo. Graças a Buda, o bom tempo vence a parada e saímos a passeio. O Parque Sagarmatha tem modesto e pequeno museu com exposição de fotos de animais e flora. Dois painéis resumem, em breves pinceladas, o motivo de os sherpas terem se mandado do Tibete, donde são originários. De acordo com a primeira versão, eles fugiram de lá pra escapar de mudanças políticas que  ocorriam no leste do país. Já a segunda, afirma que eles podem ter vindo pro Nepal em busca de clima mais ameno. O certo é que os sherpas ocupam terras nepalesas há somente 400 anos. Em homenagem, ergueram, no interior dum pequeno anfiteatro de pedras, enorme estátua masculina representando esta etnia. Ao norte, sobressairiam, se não houvesse tantas nuvens, Everest, Nuptse e Lhotse. O pouco que consigo ver, antes que as nuvens toldem por completo os picos, é a grande parede do Nuptse que parece se fundir ao flanco oeste do Lhotse. Do Everest mal e mal se descortina a pontinha de seu cume. Terminada a visita ao parque, empreendemos curta porém duríssima subida a Syangboche (3.900 metros), considerando que o desnível desde Namche é 450 metros. Nessa vila, foi construído pequeno aeroporto onde pousam helicópteros e as avionetas monomotor Pilatus Porter. Domina a pista de pouso, a perfeita pirâmide dos 5.761 metros do Khumbila, outro pico que avisto da base ao cume, quando ontem entrevira apenas seu topo. Após o almoço, me toco pro Himalayan Java Café. Flavio resolve dar a graça de sua companhia – coisa rara - e ali ficamos, durante o resto da tarde, batendo papo, (quando quer, ele sabe ser sociável; na maioria das vezes, entretanto, prefere manter distância, tanto que não foi uma nem duas vezes que escolheu sentar à mesa diferente da minha pra fazer sozinho sua refeição), navegando na internet e folheando livros sobre o Nepal ilustrados com fotografias de excelente qualidade. Retornamos ao hotel somente à hora da janta e, no envidraçado refeitório, apenas 1/3 de seu amplo salão está ocupado por turistas, a maioria alemães. Antes de deitar, dou da janela de meu quarto o último vistaço na noite de Namche: a vila devido à densa névoa que a abraça exibe um excitante aspecto fantasmagórico, fortalecido pelo soar periódico de badaladas vindas do monastério.

sábado, 25 de março de 2017

Perdendo o fair play

25/03/2017 - Sábado – 8º Dia de Trek Everest BC – Bupsa a Surke
Céu de brigadeiro e termômetro marcando algo em torno de 10ºC. Começo de dia perfeito pra caminhar. Antes de partirmos pra Surke, onde pernoitaremos, subo até o monastério de Bupsa donde se tem uma vista linda dos terraços de plantações de cereais espalhados nas encostas das montanhas ao redor. Uma cadela e sua cria, ambas de pelagem preta, brincam diante da stupa. Fico então sabendo que os dogues em nepali são chamados de kukur e os gatos de suri beralo. No horário marcado, 8 e 15, iniciamos nossa jornada diária, quando cruza por nós, decorridos 30 minutos de caminhada, uma mulher carregando às costas, numa caixa retangular improvisada em berço, uma bela nenê. A orgulhosa mãe pára quando escuta meus ohs e ahs de admiração e retira o pano que protege do sol o rostinho da criança: o bebê está quietinho, de olhos bem abertos. Após quase 3 horas de ininterrupta e íngreme subida paramos em Thamdada, eu, Nir e Nurbu pro nosso já tradicional chazinho com biscoitos de côco. Flavio, que prefere se manter apartado, caminhando sempre à frente, não participa, assim, de nossos teas break. O céu continua azulão sem nuvens a toldá-lo. O tráfego de aviões e helicópteros é intenso entre Kathmandu-Lukla-Kathmandu. Durante a pernada, paro pra fotografar pessegueiros, rododendros e lótus floridos exibindo suas delicadas flores rosadas, vermelhas e brancas. Lá embaixo, o rio Dudh Koshi desfila suas águas verdes em sinuoso traçado. Quando vêm mulas em sentido oposto ao nosso, o bom costume local ensina que a preferência de passagem pertence aos animais. Assim, cada vez que avistamos um grupo de mulas ou dzos, paramos, espremidinhos à margem da trilha, cedendo o passo aos bichos. Os líderes da tropa levam pendurados nos pescoços badalos ou colares com pequenos sinos cujo agradável tilintar metálico muitas vezes avisa sua iminente aproximação. Desde Thandada só descida num mar de lama, bosta e urina deixadas pelos animais. Não sei o que fede mais, se a urina ou a merda. Gordas moscas varejeiras voam ao meu redor tentando fazer de meu rosto pista de aterrissagem...arghhh!! Pra se protegerem do fedor e da poeira levantada pela passagem dos animais de carga tanto Nir quanto Nurbu usam máscaras sobre os narizes. Nir pra me consolar diz que a partir de Namche Bazar só yaks são usados e que seus excrementos não têm odor porque os bichos só comem grama. Triste consolo esse, ainda faltam dois dias pra Namche. No meio da profunda irritação que a maldita trilha provoca, dou de cara com o visual dos esbranquiçados cumes nevados dos picos Numbur (5.500 metros) e Kungde (6.187 metros) e suas esvoaçantes caudas de neve formadas pela ação dos fortes ventos soprados naquelas altitudes. Levamos quase 2 horas pra chegar a Poyan, por causa da trilha fedorenta. Embora esteja a vila a 2.780 metros, está fazendo muito calor, tanto que almoço sentada a uma das mesas dispostas ao ar livre no jardim do restaurante. Deixamos Poyan às 14 horas e continuamos subindo e subindo até cruzar o passo Chutok donde se avista a imponência dos 6.367 metros do pico Kusum Kangguru. Hoje o dia está sendo duro porque Nir pegou esse atalho que conduz a Surke de modo a evitar passar por Lukla. E o tal atalho pra mim tá alongando mais a caminhada, não termina nunca, puta merda. O fato é que mais que cansada estou irritadíssima o que me leva a ser inclusive injusta com o coitado do Nir, admoestando-o durante o caminho pela péssima escolha de itinerário. No dia seguinte, peço sinceras desculpas pra ele que, generoso, não guardou mágoa alguma de meu mesquinho comportamento. Antes de iniciarmos a descida até Surke, avista-se Lukla ao longe situada numa crista de montanha. A visibilidade está excelente porque o céu manteve-se limpo, sem vestígios de cerração durante o dia. Enfim, começamos a descer e pouco antes de Surke os rastros duma grande avalanche materializam-se nas ruínas duma casa destruída. Bueno, desmoronamentos são uma constante nestas zonas montanhosas, sendo que este foi o segundo do dia visto por mim. Chegamos, após 3 horas de caminhada desde que partimos de Poyan, a uma das 3 guest houses existentes em Surke. Localizada dentro do canyon do Dudh Koshi, a 2.200 metros, com casas espalhadas em ambas as margens do rio, o vilarejo é úmido porém super fértil. Prova disso são verdejantes plantações de centeio, alho e cebola nos terrenos ao lado das casas. A enraizada vocação agrícola não deixa ninguém morrer de fome no país. 

 

26/03/2017 - Domingo – 9º Dia de Trek Everest BC – Surke a Phakding
Saímos de Surke às 8:05 sob pesada névoa embora não esteja frio, acusando o termômetro confortáveis 14ºC. Uma longa mani wall de pedras escuras com mantras escritos em tinta branca sinaliza a rota que conduz a Lukla. O caminho é tranquilo inobstante em contínua ascensão. Como a cerração não dá arrego, aviões não conseguem pousar em Lukla e os poucos helicópteros que tentaram não lograram êxito, retornando a Kathmandu. Da ponte sobre afluente do rio Dudh Koshi, avista-se despencando paredão abaixo comprida cachoeira. Mais duas travessias são feitas nas fortíssimas e longas pontes metálicas construídas sobre o rio Dudh Koshi. Enormes painéis de madeira avisam como identificar sinais de enchente e as providências a serem tomadas nas inundações à entrada de Mushey. Nesta pitoresca vila, com boas e espaçosas residências edificadas em pedra, muros de taipa delimitam os terrenos das propriedades em ambos os lados da rua principal. Dezenas de coloridas rodas de oração estão espalhadas ao longo do vilarejo, além de 2 grandes stupas e um belo pórtico com rodas douradas de oração. O povoado, pelo visto, professa fervor budista mais intenso que nos outros pelos quais tenho passado. Nos trechos de subidas, estas seguem o cansativo estilo de serem calçadas com degraus de pedra. Colada à Mushey, segue-se a vila Cheplung com um belo monastério encravado no alto duma parede rochosa de montanha, lembrando um pouco o Tiger Nest no Butão. A umidade provocada pela cerração deixa fina película d’água em meu rosto. Pessegueiros floridos dão um toque rosa à paisagem. Numa parte da trilha, a cobertura vegetal da encosta da montanha foi arrancada por um grande desmoronamento obstruindo considerável trecho da estrada. Foi preciso, então, construir uma ponte metálica que se estende além do terreno intransitável de modo a manter a trafegabilidade entre os povoados. Meninas saindo do colégio usam deselegantes uniformes que consistem em folgadas calças brancas cobertas com uma sobreposição de paletó azul-marinho sobre bata vermelha. O ensino na escola primária dura 5 anos, prolongando-se por mais 10 anos na high school, conforme a condição econômica das famílias. O número de porters indo e vindo é contínuo, paleteando desde mesas, camas, fardos monumentais de lenhas e de caixas de víveres às mochilas dos turistas. Alguns deles, devido ao peso dos fardos, caminham com o torso dobrado em ângulo de 90º. Apoiando-se numa pequena bengala, mantêm preso aos dentes cordão envolvendo a carga de modo a firmá-la melhor. O trajeto até Gath, vila onde almoçamos, se dá ao longo da margem leste do rio Dudh Koshi. O povoado é bem grandote e o restaurante brilha de tão limpo. Escolho momo recheado com queijo e molho picante. Uma delícia! Às 13 já rumando pra Phakding, leio num cartaz, indicando distâncias e tempos entre vilas, que falta apenas uma hora pra alcançarmos nosso destino. Cada vez mais gente na trilha, tanto indo quanto voltando de Gorak Shep, o último vilarejo antes do acampamento-base do Everest. O caminho é tranquilito tanto nas subidas quanto nas descidas, tendo como bônus o belo e esverdeado visual do rio Dudh Koshi e suas agitadas corredeiras, à mão esquerda. Mais outra grande cicatriz provocada por avalanche de terra, na encosta da montanha situada na margem oposto do rio. Bom demais chegar em Phakding às 13 e 50 porque vou poder dar uma banda na movimentada vila onde há dezenas de lojas, alfaiatarias, bares, night clubs bakeries e guest houses pra todos os gostos e bolsos. Cartões de crédito de variadas bandeiras são aceitos em restaurantes e lodges. Do lado de lá do rio, na margem oeste, atravessando a comprida ponte metálica, descubro uma confeitaria Hermann e suas deliciosas tortas além de vários tipos de bebidas quentes. Escolho uma torta de maçã, deliciosa, e um capuccino. Uma pena que a cerração manteve-se firme e densa durante o dia inteiro, garoando na metade da tarde quando estava dando um rolê na vila. A quantidade de corvos nos telhados, fios elétricos e muros é espantosa. Contudo, não param muito tempo empoleirados, voando de lá pra cá, num veemente crocitar durante a irrequieta movimentação. O quarto tem banheiro mas o chuveiro acionado à base de energia solar não é quente o suficiente prum demorado banho que inclui lavagem de cabelo, motivo por que pago 300 rupias (3 doletas) pra tomar um banho de chuveiro a gás. Já tá na hora duma limpezinha corporal mais aprofundada, afinal, faz 9 dias desde o último banhão. E, aleluia, meu Sim Card NCell pegou, lento, mas pegou, não vou precisar comprar um cartão de wifi local, ebaaa!!

quinta-feira, 23 de março de 2017

Mulas e Dzos na Trilha

23/03/2017 - Quinta-feira – 6º Dia de Trek Everest BC - Junbesi a Nuntala
Dia nublado e temperatura de 9ºC quando acordo às 6 da matina mas quando saímos de Junbesi às 8 e 20, o sol dá as caras com timidez num joguinho besta de esconde-esconde. Inicialmente, sobe-se, ou melhor, escalaminha-se (será assim até o Eve BC?) degraus de pedra, pra mim demasiado altos, considerando minhas curtas pernocas. Mas nem tudo são espinhos porque o sendero atravessa encantador bosque de pinheiros. Após 1 hora de árdua subida, o terreno vira chão batido e o sol brilha firme num céu despejado de nuvens, onde paramos num mirador e avistamos atrás de nós Lamjura La. O passo, um côncavo coberto de neve, aninhado entre duas encostas de montanhas, parece tão longínguo mas dista apenas 11 km. Saímos do aconchego do bosque e passamos a caminhar a céu aberto numa trilha que percorre encostas de montanhas. No 2º mirador, sentada à comprida mesa, diante da guest house, provo o saboroso queijo de vaca vendido pela dona do estabelecimento. A simpática anciã pergunta se tenho filhos enquanto apalpa meu casaco e toca na minha blusa falando algo que não entendo. Nir chamado a traduzir, explica que ela observou que estou com a camiseta do avesso, hahahaha. Deste mirador já é possível se ter um vistaço do Everest, Lhotse e Makalu. Muitas nuvens toldam as bandas do norte onde esses 8 mil se localizam, e só consigo avistar a ponta do cume do Kusum Kanggaru (6.367 metros). Coisa boa que a trilha agora passa a ser o bom e velho chão batido, enfeitado por prímulas azuladas. Lá embaixo, no vale, serpenteia o rio Ringmu em cujas margens espalham-se diversos vilarejos. Novamente, ingressamos num bosque com rododendros floridos. Nir chama minha atenção prum bando de veados pastando numa encosta. Passamos ao largo de Phaplu, situada no lado de lá do rio. Ele conta que muitos turistas vêm de bus de Kathmandu até essa vila, (demora 13 horas a viagem!!), indo então até Lukla numa pernada de 3 dias, dali seguindo pro Everest BC. Acrescenta que quando Lukla tem muito nevoeiro, os helicópteros pousam em Phaplu, esperando o tempo melhorar pra retomar o vôo. Passa-se por uma big avalanche de terra. A impressão que tenho é a de que a qualquer momento vai despencar mais terra e rochas. Caminho em silêncio, porque sei que podem as ondas sonoras emitidas pelo conversê provocar novo desmoronamento. Caladinha, então, eu, né!! A trilha de chão batido tangencia a vila de Salung e segue, assim, com amáveis subidas até uns 30 minutos antes de Ringmu. Tanta benesse estava durando muito, em se tratando de zona montanhosa, porque pouca demora, tem início uma escadaria de pedra que faria o pagador de promessas, se tivesse de percorrê-la, repensar sua dívida com Deus. O pior é que nunca se vê o topo da maldita escada, tanto que começo a me irritar e brigo com meus botões. O tempo nublou geral faz mais duma hora. Trovões soam ao longe e fina cerração paira sobre o ambiente. Chego ao restaurante em Ringmu com as roupas encharcadas de suor. Tiro-as e peço pra Nir colocá-las diante do fogão à lenha na cozinha de modo que sequem durante o tempo em que ficarmos aqui almoçando. Terminada a refeição, saímos de Ringmu debaixo de vento e frio mas sem chuva, aleluia. Outra subida bem íngreme, calcorreando uma estrada de pedras nos leva aos 3.071 metros de Trakshindu Pass. Coisa boa que, sempre após um passo, vem a confortável (nem sempre) descida. Decorridos 20 minutos, estamos diante do 3º monastério budista mais antigo do Nepal, de mesmo nome do passo. Atraída pela música e mantras entoados pelos monges, entro no recinto. Uma beleza o som dos instrumentos de sopro e percussão seguido pelo cantochão dos mantras pausados por precioso silêncio entre um e outro. Após, descida até Nunthala com duração de pouco mais de 2 horas. Desde Trakshindu, venho observando somente o tráfego incessante de mulas, porque desta vila em diante apenas trilhas e estradinhas impossíveis de serem trafegadas por veículos automotores. Intenso o vai e vem dos animais porque alimentos e materiais como botijões de gás são conduzidos a partir de Lukla até Gorak Shep, retornando os animais de lombo vazio das zonas de altas montanhas. Segundo Nir, o movimento chega a 200 animais por dia, daí porque as trilhas são atapetadas de bosta fresca. Embora estejamos descendo uma íngreme ladeira, a coisa se complica porque grande parte da trilha está lamentavelmente coberta dum misto de lama e merda de mula. O risco de escorregar e se estatelar nesta mistura fedorenta é grande. Passados 40 minutos, atingimos terreno seco e chego incólume às 17 e 16, salvo botas e barra da calça imundas, a Nunthala, uma gracinha de vila. Em ambos os lados da rua principal, diversas guest houses e armazéns com as tradicionais fachadas pintadas de branco e aberturas em azul. Algumas das residências têm jardins na frente com rododendros floridos, outras um páteo espaçoso com piso de pedra. Conheço durante a janta, uma jovem francesa que conta ter trabalhado durante 2 anos em uma das aldeias mais severamente atingidas pelos terremotos de 2015, onde vieram a perecer mais de 1000 pessoas. Comenta que isso mudou sua vida e mais não fala sobre a catástrofe. Minha curiosidade nem ousa perguntar o motivo!!


24/03/2017 - Sexta-feira – 7º Dia de Trek Everest BC – Nuntala a Bupsa
Situado no nordeste do Nepal, Solukhumbu, um dos 14 distritos que fazem parte da província nº 1, criada pela nova constituição de 2015, é a região por onde caminharemos durante os demais dias deste trek ao Eve BC. O país é uma sociedade com pluralidade de culturas em que os sherpas são meramente a mais famosa minoria num país onde não há maioria. São cerca de 30 etnias que nem sempre conviveram de forma pacífica. Bueno, depois dessa pequena introdução, deixemos o aspecto histórico e voltemos à Nunthala e sua manhã nublada, com temperatura em torno de 11ºC. Partimos dos lugarejos, geralmente, às 8 e 15, horário fixado por nosso dear guide Nir. Assim, pontualmente, deixamos pra trás este vilarejo encantador e iniciamos a descida de mil metros que se estende até o rio Dudh Koshi. Começa a esquentar bastante o que me obriga a guardar o agasalho na mochila e ficar de manga curta, coisa boa!! A trilha percorre um largo trecho de floresta cujo terreno é aquele característico pedrario que tanto “amo”. Vai à nossa frente um rebanho de dzos (cruza de yak com boi) tangidos por três jovens. De repente, um dos animais resvala na ribanceira e escorrega encosta abaixo. Um dos rapazes tenta segurá-lo pelo rabo não logrando êxito devido ao peso do bicho. Nenhum mugido se escuta enquanto o pobre dzo rola pela ribanceira. Cessada a queda, que dura uns 2 minutos, eis o dzo de pé, sem qualquer ferimento aparente, sendo rebocado de volta à estrada. E nenhum dos homens se atucanou ou se desesperou durante a queda do boi. Nas zonas abertas, chama atenção as cicatrizes deixadas pelos deslizamentos de terra nas encostas das montanhas situadas na margem oposta do rio Dudh Koshi. Cruzado o rio, começa a subida naqueles degraus infamemente altos. O tempo continua nublado. Atravessamos Juving, vila grandota, com dezenas de casas onde paramos numa tea house pra tomar chá e comer biscoitinhos de côco. Como muitas casas, esta também têm antena Sky, exibindo a tv um programa sobre desperdício de água no país. Continuamos a cansativa subida até Kharikhola onde fazemos uma boa pausa pro almoço. A vila é grande com vários lodges, contando também com posto de saúde, o que denota sua importância no distrito de Solukhumbu. Terminada a refeição, percorremos o restante do povoado até a ponte metálica sobre o rio Khari. Do outro lado da margem, começa outra subida no pedrario, dessa feita sem falsos planos, até Bupsa, avistável no alto duma colina. O tempo se torna mais fechado e pingos miúdos estão caindo quando chegamos às 15 e 50 na vila que conta com um pequeno monastério. Bem menor que Kharikhola, Bupsa situa-se bem acima do rio, empoleirada numa crista de montanha. A cerração baixou de vez tanto que nem se pode avistar mais Karikhola do outro lado do rio. Descobri a razão de as escadas dos lodges serem tão íngremes quanto as lombas. São feitas bem verticais pra não ocuparem muito espaço no interior das residências. Na janta, resolvo provar a típica comida nepalesa, o dal bhat, que vem a ser mutatis mutandis, arroz (bhat) com feijão, no Nepal substituído por sopa de lentilha (dal). Acompanha, conforme a região, verduras da estação, uma casquinha gostosíssima, bem fininha, feita de farinha de trigo, batatas com curry ou picles. Só falta a farinha de mandioca pra eu me sentir no Brasil hehe

terça-feira, 21 de março de 2017

Atolada em neve

21/03/2017 - Terça-feira – 4º Dia de Trek Everest BC - Sete a Junbesi
Saímos de Sete às 8 e 15 com céu de brigadeiro, dia mais perfeito impossível que nem a baixa temperatura - 5ºC – macula. A trilha, linda, quase toda dentro dum bosque de coníferas e floridos rododendros. Destacam-se algumas árvores de lótus em cujos galhos pendem as alvas florescências. Reza a lenda que Buda já nasceu taludinho - 8 aninhos, vejam só! -, parido desta flor. Vai ver por isso é tão formosa. Passamos por Dagchu, no topo da crista duma montanha, onde 2 gurizinhos sentados ao sol, comem arroz usando as mãos. Tanto aqui quanto no Butão o povo dispensa talheres. Com mais ½ hora de caminhada, atinge-se a marca dos 3.000 metros de altitude na comunidade de Bhakange, já em Goyem, onde paramos pra tomar chá acompanhado por deliciosos biscoitos de côco, oferecidos pelo gentil Nir. Sentados ao ar livre, o cenário é deslumbrante. Tudo ao redor está embranquecido da recente neve que tem caído neste final de inverno. A coloração verde dos topos das montanhas é encoberta pela branca cobertura das nevascas. A subida adquire certa dificuldade mas nada que se compare à dos 2 dias anteriores. À medida que nós aproximamos de Lamjura village, a trilha vai se sendo oculta pela neve até que não reste trecho algum do terreno pedregoso. Decorrida 1 hora e 30 minutos chegamos ao vilarejo de Lamjura localizado a menos duma hora do Lamjura Pass. Comemos num misto de armazém e restaurante muito acolhedor. Na cozinha um bom fogo arde no fogão à lenha. Quem prepara a refeição é a dona do estabelecimento. Peço um gostoso veg fried rice e lemon tea que como na rua aquecida pelo sol das 13 horas. Tudo branco, que cenário! Parece cena de filme do Dr. Jivago. O tempo continua magnífico: céu azuladíssimo e sol brilhando sem nuvens a toldá-lo. Vários aviões passam naquele vai-e-vem incessante entre Lukla-Kathmandu-Lukla. O céu até então livre de nuvens começa a ser preenchido de mansinho por elas. Como num passe de mágica, em questão de 10 minutos, baixa cerrada névoa toldando por completo a paisagem. Durante o almoço, batendo papo com uma alemã, fico sabendo que a pobre mulher não pôde continuar além de Namche Bazaar porque lá foi vencida pelo mal de altitude. E olha que Namche está tão-somente a 3.440 metros! Terminado o almoço, retomamos a caminhada subindo outra crista de montanha que conduz até Lamjura Pass. A encosta apresenta espessa camada de neve. Atravesso durante 45 minutos um manto de imaculada e ininterrupta brancura. Dificulta a pisada a fofura do terreno nevado onde afundo algumas vezes até metade da anteperna. Nir, aflito, solta ohs de preocupação nas três vezes que caio no solo macio. Ao alcançar os 3.600 metros do Lomjura Pass, nada se pode avistar exceto as bandeirolas coloridas das preces budistas, típica demarcação de altitudes significativas. A densa cerração esconde toda a região. Logo após cruzarmos o passo, observo com espanto, vindo em sentido contrário, uma moça vestindo camiseta de mangas curtas apesar do baita frio que faz. Elogio-a dizendo que é uma super woman, o que lhe arranca risadinhas. Do passo até Junbesi, só descida em outra linda floresta de coníferas e rododendros. O solo mantém-se ainda firmemente encoberto por neve o que exige cuidado redobrado porque bobeou se torce um pé ou joelho já que a chance de escorregar em tal tipo de terreno é grande. À medida que se perde altura, a neve vai escasseando pra finalmente se pisar em chão batido. Dentre as várias vilas existentes desde o passo, destaca-se a de Tragobuk onde há um monastério. Chegamos a Junbesi, situada a 2.700 metros de altitude, às 18 e 30, quase noitinha. A vila fez parte da rota traçada por Hillary e Norgay na expedição ao Everest em 1953. Foram 10 horas de caminhada em que exigente não foi a subida e sim a descida! Mas valeu tão longa pernada porque o percurso é muiiitoooo lindo!!. Com o sugestivo nome de Apple Garden Guest House, nossa pousada tem sua fachada enfeitada com uma linda roda de orações. O amplo edifício tem 2 pisos e os quartos são de bom tamanho, embora banheiros, por uma óbvia questão econômica, sejam compartilhados, oferecendo-se, contudo, aos hóspedes os 2 modelos: ocidental e buracão. Há eletricidade e plugs nos quartos de modo que posso carregar os dispositivos eletrônicos sem custo algum. No refeitório, uma salamandra é acesa ao final da tarde quando começa a esfriar. A dona da guest dispõe a comida nos pratos com certo requinte, que beleza! O banho de chuveiro custa 250 rúpias, ou seja, 2 dólares e meio, já o de balde custa bem menos. Resolvo não encarar nem um nem outro, porque estou há apenas 4 dias sem me lavar, afora o fato de não precisar dividir cama com nenhum ser vivente. Dá pra resistir uns diazinhos mais. Como aqui não pega NCell, uma das 2 operadoras nepalesas de telefonia celular e internete (no segundo dia em Kathmandu, tratei de adquirir um Sim Card por 48 dólares, com cobertura nacional, conforme apregoa a empresa. Triste engano, igualzinho ao Brasil, a propaganda é enganosa), compro cartão de wifi de 500 Mb por 500 rupias (5 dólares) da outra operadora que dura um dia. Pago o preço, não quero e não gosto de ficar alienada do noticiário. Liberdade pra mim não significa renegar relógio ou manter-me desinformada, e, sim, exercer a opção de me conectar ou não, tá ligado? 
22/03/2017 - Quarta-feira – 5º Dia de Trek Everest BC - Junbesi
O dia amanhece belo, céu azul de brigadeiro, temperatura amena. Resolvo em vez de sair com Nir e Flavio pra conhecer o monastério de Thubten Chholing lavar umas roupas e descansar porque hoje ficaremos nesta aprazível vila. Ademais, a costela que trinquei há quase 2 meses está doendo um pouco, provavelmente de carregar a mochila que, entre camel bag com 1,5 litro de água, e outras bugigangas, deve pesar quase 4 kg. Pra mim é muito considerando que tenho dores frequentes na lombar devido à artrose. O caminho é longo, tenho pela frente mais 19 dias de caminhada até Lukla, sem desconsiderar o segundo trek de 10 dias até o Annapurna Base Camp quando acabar este. Daí por que prefiro me poupar. Aproveito a manhã ensolarada e lavo peças de roupa num tanque cuja “torneira” é uma bela carranca feita em madeira. Em 2 horas as vestimentas estão secas. Respondo a alguns comentários no facebook e publico novas fotos. Terminadas as “obrigações”, dou um rolê pela vila onde há 2 stupas, uma grandona de 300 anos, ainda em reconstrução após os terremotos de 2015 e outra menorzinha, poupada do embate entre as placas tectônicas. A dona da pousada é bem moça, mãe dum casal de piás. Eventualmente perde a paciência com as crias: não chega bem a gritar, levanta, porém, a voz num tom irritadiço. Ocupadíssima, não consegue dar conta de tudo, é claro. Trabalhando o dia inteiro, conta com ajuda na hora das refeições duma irmã e empregada. Um guri duns 12 anos (não é parente) cuida um pouco das crianças e dá uma mão na cozinha descascando batatas e legumes. Quando volto do tourzinho na vila, encontro-a no páteo terminando de dar banho nas crianças as quais enrola em toalhas, pondo-as sentadas em cadeiras uma diante da outra pra se aquecerem ao sol das 11 horas. À tarde, visito um dos 2 monastérios existentes em Junbesi, fundado em 1639, onde compro 2 lindas echarpes de seda amarela. O Lama além de me presentear com a efígie gravada num broche dum notável sacerdote budista (esqueci de perguntar o nome) ainda dá 2 sementinhas cuja função é proteger meus deslocamentos seja de carro, moto, avião ou bicicleta. Pena que não poderei comparecer ao festival budista que acontecerá em abril, aqui, no monastério, porque estarei me deslocando pro norte, rumo ao Eve BC. Nir não é só um guia mas uma babá. Cuida de seus turistas com dedicação genuína. Sua pronúncia de inglês é terrível, ele distorce as palavras duma forma que ficam irreconhecíveis. Contudo sua boa vontade em explicar - se for necessário ele repete n vezes a palavra - é comovente. Prolixo, ele se perde em explicações que mais confundem que clarificam naquele inglês, pra mim, pelo menos, muitas vezes ininteligível. Nurbu, o porter, magro que nem graveto, está carregando além dos 30 kg permitidos. Tudo porque Flavio não respeitou os 15 kg convencionados pra cada um de nós. Chocólatra, o cara pôs na mochila uns 10 kg em barras de chocolate! Sentindo-se culpado, resolve contratar outro porter de modo a aliviar Nurbu de paletear peso extra. Mas nem Nir tampouco Nurbu querem isso. Sempre de olho nas gorjetas, sabem que se houver mais um no staff o dinheiro terá de ser dividido não entre 2 mas entre 3. Consigo dissuadir Flavio da inconveniência de tal decisão, enfim, aceita pelo “piedoso” carioca. Nurbu, quando entra em meu quarto, vasculha, sem qualquer pudor, com seus pequenos olhos escuros, meus pertences espalhados sobre a cama. No início, até desconfiei dele, injustamente, percebendo depois que o pobre rapaz era movido apenas por curiosidade. Chega na guest house um grupo de gurias pedalando mountain bikes, terminando de lotar a pousada. No grupo, há europeias e nepalesas. Como a pousada tem duas salas de refeição, me mudo pra da frente porque a do lado da cozinha está cheia de gente falando alto e gosto de silêncio quando escrevo. Às 16 o tempo vira: o sol desaparece por completo e, agora, 17 e 30, a cerração espalha-se sobre a vila, não se enxergando além de 20 metros. Interessante como os estrangeiros percebem nosso idioma. Associam a uma língua latina, não atinando se é francês, italiano ou espanhol, nem cogitam em arriscar o português, pode? Pelo visto Portugal não representa muito pro resto da Europa!