terça-feira, 24 de julho de 2012

Esqueceram de mim!

Embora tenha saído relativamente cedo do pub, durmo pouco, tanto que às 4 da madrugada já estou de olho bem aberto. Sei lá se por causa da altitude ou porque estou sempre ligada nos 220! Aproveito e transfiro as imagens das tarjetas pro netbook, já as nomeando. Dessa forma, menos trabalho quando chegar ao Brasil. Entretida em responder emails e mensagens no facebook, constato que já são 9 da manhã. Como o tempo voa! Cansada de tanto estar sentada, saio pra esticar um pouco as pernas. Compro duas camisetas de times de futebol bolivianos pro meu filho e umas coisinhas pra mim na Tatoo. Retorno ao hotel e continuo o chatésimo trabalho de nomear fotos e organizar as sequências de vídeos. Lá pelas tantas, me dou conta de que estou brocada de fome. Pudera, já passa do meio-dia! E nada do pessoal chegar pra me pegar, conforme combináramos ontem à noite. Dou um desconto porque a farra deve ter sido grossa. Como não aparecem, desisto de esperá-los e trato de sair pra almoçar. Terminado o sofrível prato típico servido no La Casona, escuto, enquanto estou escrevendo, “Bea...Bea”: é Marski que se encontra com o restante do pessoal no mezanino.Fico de cara ao perceber, rapidamente, que, se eles já se encontravam no restaurante quando eu lá chegara, fora porque não tinham ido ao hotel me buscar....caro Watson! Mas que coisa, igual ao filme “Esqueceram de mim”. Marski tenta me enrolar explicando que estivera no hotel cedo mas eu não atendera ao telefone. Tsk tsk....muito babaca a desculpa. Marquitus, mais sincero, admite que, sim, se esqueceram de mim. Os outros, indiferentes, estão nem aí. Confesso que fico chocada com o descaso do grupo. Reclamo, então, pros meus botões: “putz grila, que tipo de parceria fudida é essa? A tal camaradagem, durante os 5 dias de acampamento, virou pó de traque assim que a gente chegou na civilização, é? Ou o ‘esquecimento’ é porque sou uma senhorinha de ½ idade e não uma jovem gostosinha que nem Sabrine?”. Chego à dura conclusão que, fosse eu uma gatinha e não uma gastinha (legal esse jogo de palavras, né?), o macharedo, com certeza, estaria batendo entusiasmadíssimo à minha porta. Embora disfarce (sou metida a durona), tô deveras magoada. E com raiva! Por isso trato de me despedir deles. Necessito ficar sozinha pra digerir o sucedido. Aos poucos, o ressentimento vai sendo distraído pelo burburinho de La Paz. Tão envolvente essa cidade com seu efervescente comércio! Me pego comparando-o com os bazares de Kathmandu. Uma loja atrás da outra vendendo não só todo tipo de bugiganga que se possa imaginar como produtos essenciais ao dia-a-dia. Os trajes típicos, a sujeira, o aparente caos no trânsito, os produtos falsificados, tudo isso lembra um pouco os bazares de algumas cidades asiáticas que conheço. A calle Santa Cruz, por exemplo, é dum ecletismo que desafia qualquer demanda. Começa com tendinhas de artesanato, depois passa para lojas de artigos desportivos que dão espaço a uma ativa mercancia de ferragens. Lojas de tecidos coloridos são sucedidas por lojas de produtos eletrônicos. Já na calle Garzon, confeitarias especializadas na confecção de bolos de noivas estão convenientemente instaladas ao lado de butiques onde são vendidos trajes nupciais pra lá de bregas. Nas ruas apinhadas de gente, o tráfego incessante de veículos, a maioria, velhos e mal cuidados, resulta numa poluição tal que, ao final do dia, teu nariz está igual a uma chaminé: preto de craca. Subir as íngremes ladeiras desta cidade, por si só, já se constitui num treinamento para ascender às montanhas, hehe. Uma hora de caminhada aqui cansa o equivalente a 3 horas de pernada ao nível do mar, ala putcha! Ao anoitecer, as chollas preparam, em bancas dispostas nas calçadas, bifes, batatas e ovos fritos. Ao lado, em copos de vidro transparente, chás onde boiam rodelas de laranja e limão. Suponho que seja para facilitar a digestão. Mais adiante, estão expostas grossas fatias de abacaxi, enquanto, na banca vizinha, sacos de amendoins, de rodelas de bananas fritas, de abas e de castanhas constituem ardilosos chamarizes à gula. O sujeito tem a sua disposição uma refeição completa: do aperitivo à sobremesa! E, assim, com todo esse caleidoscópio de imagens girando na minha cabeça, recolho-me ao hotel para pôr no papel minhas impressões. Meu isolamento é quebrado pelo toque do telefone. É Bruno. Desço e encontro também Marquitus. Veio me chamar pra jantar com o grupo. E tudo acaba em pizza, literalmente, porque vamos a uma pizzaria celebrar nossos últimos momentos juntos. Retorno ao Brasil, no voo que parte de La Paz bem cedinho na quarta-feira,  ao passo que alguns deles ainda permanecem por aqui. Vão tentar novos cumes. Consigo dormir um pouco antes de partir pro aeroporto, já que tenho de estar lá às 5 horas. Enquanto o táxi roda, o que vejo é uma cidade diferente daquela que curtira durante o dia. Estranhamente silenciosa e vazia. As escadarias e o largo da igreja de São Francisco, que há um par de horas se mostravam apinhados de nativos e turistas, se encontram sem viva alma. Assim também a avenida Santa Cruz e a calle Sagarnaga. Sem a algazarra e o bulício diurno, parece uma cidade fantasma. Interessantíssima essa faceta paceña! Quando estou em El Alto, a última imagem que tenho de La Paz é a visão dum fiapo branco de nuvem pairando sobre a cidade. Como um véu de noiva.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Acabou-se o que era doce!

Embora já sejam 8 horas e a manhã esteja lindamente azulada, a gélida temperatura castiga meu corpo. Tanto que, quando vou escovar os dentes na bica, congelo rapidamente os dedos e uma puta dor açoita minhas mãos durante 20 minutos. Yola serve um desaiuno à boliviana: api, beberagem obtida da fermentação do milho escuro, temperada com limão e canela, e buñuelos, massinha doce frita (equivalente às cuecas viradas). Em todas as viagens, rola sempre o mesmo sentimento de desolação quando vejo a movimentação dos guias e arrieros desarmando as barracas e colocando as bagagens nos lombos das mulas. Não é nada muito profundo, apenas uma sensação desprazerosa. Quem gosta, hein, de finais de festas, ainda mais quando o farrancho foi de arromba, não é mesmo? E expedições, no meu entender, significam exatamente isso: uma festa em movimento! Daí sentir-me macambúzia quando terminam. Voltamos pela mesma trilha percorrida quando aqui cheguei há 7 dias atrás, a de Rincón. Posso assim curtir o cenário cuja visão me  fora furtada porque na vinda caminhara à noite. Durante a descida, surge, no fundo do vale, a pequena laguna Jankokota em cuja margem algumas lhamas pastam. Menos de 1 km adiante, jaz a laguna Kallankota que exibe, em seu espelho d’água, o branco reflexo invertido da Cabeza del Condor. Em alguns trechos da trilha, as águas do rio Condoriri ainda se encontram congeladas. Tudo porque durante as madrugadas a regra é a temperatura despencar alguns graus abaixo de zero. A duração da caminhada não chega a 1 hora, terminando na comunidade de Rincóncito. Vivem no lugar 4 ou 5 famílias de pastores de lhamas. Essa atividade pecuária é a principal fonte de sobrevivência dos índios do altiplano boliviano, embora, a cada ano que passe, o trabalho de arrieros (feitos majoritariamente pelas mulheres) engrosse substancialmente o magro orçamento familiar. A nossa espera, um ônibus amarelo lembra aqueles school buses de filmes americanos. Um bando de lhamas tangido por duas índias passa diante de nós. Pouca demora, os índios colocam uma corda à volta do rebanho, improvisando um cercado, enquanto gritam em aimará palavras de ordens entre eles e pros bichos. Nem as mulheres, carregando às costas seus bebês, enrolados em panos coloridos, se furtam da função. Embarcamos no velho ônibus cujos assentos duros tornam mais desconfortável a sacolejante viagem ao longo do esburacado trecho de chão batido. Antes de chegarmos a La Paz, uma parada em El Alto, a convite de Jenaro. Tudo porque o amável boliviano quer obsequiar seus clientes. E, pra isso, oferece, embora singelo, um delicioso almoço. Galinha e batatas assadas além de saladas são servidas num terraço. Esparramado a nossa frente, desfrutamos a visão luxuosíssima do Illimani. Que beleza! Davi, vegetariano de carteirinha, cisca no prato dos outros o tomate, a alface e a batata, renegados, sem qualquer pudor. Muito irado esse Marski, hehe.... À noite, celebramos nossas conquistas num pub bem maneiro que fabrica sua própria cerva, o Heineke Fuks. Servida em canecões  de 1/2 a 3 litros, o cardápio oferece uma original caneca em formato de bota! Como não sou chegada nesta beberagem, vou de vinho. Peço um Cabernet Sauvignon, da Campos de Solana, vinícola boliviana que produz buenaços vinhotes feitos na província de Tarija! Harmoniza as mis maravilhas com o prato que pedi: um estrogonofe de carne de lhama com massa. Rafael lá pelas tantas surge todo pimpão escoltando duas belas gurias. Rola um certo alvoroço entre os rapazes e não demora muito para que Renato se desloque até a ponta da mesa onde o grupinho se encontra. O que não é de se estranhar! Afinal, na nossa expedição, as únicas duas mulheres são inalcançáveis. Uma não atrai – euzinha - porque é uma senhorinha de ½ idade, a outra – Sabrine -, embora atraente e jovem, está comprometida. O conversê torna-se mais animado à medida que mais canecas de cerva são depositadas sobre a mesa. Porém o estado de euforia não se deve exclusivamente ao álcool. A bebida apenas estimula o lado fanfarrão que, dependendo do temperamento de cada um, se manifesta com mais ou menos ímpeto. Pensando bem, nem se cuida tanto de fanfarronice e sim de vaidade por praticar um esporte que apenas uma minoria, no planeta do futebol, se dedica. Acontece às vezes de os perrengues sofrerem um engrandecimento significativo, em especial quando o sujeito usa poderosa lente zoom ao narrar suas façanhas, como já tive oportunidade de constatar. Claro que deve ser considerado o lado subjetivo de cada situação. O que é difícil pra mim, não é pro Joãozinho e vice-versa. Enfim, não sem razão, todos nós estamos prosas. Caramba, cada um de nós papou de um a três cumes em 7 dias, oigalê!!

domingo, 22 de julho de 2012

Merda....queria tanto esse cume!

Acordo tarde no sabadão, com uma baita preguiça. Tenho, por motivo óbvios, uma bela justificativa. Não só a altitude deixa a gente molengona, como ontem culminei um 5 mil. Mereço, portanto, um dia de dolce far niente, ou num bom português, de ficar só na vadiagem. Dum azul imaculado, gostaria de riscá-lo não fosse tão inalcançável esse mata-borrão conhecido como céu. Na hora de meu sagrado alongamento, Sabrine, Marquitus e Davi resolvem me acompanhar. Claro está que Davi, como não podia deixar de ser, se queixa da insolente flatulência que o vem azucrinado desde que pisou em solo boliviano. Os demais fotografam e tiram sarro de Marquitus (porque é o mais jovem integrante da ala masculina, os demais, um bando de prevalecidos, se arriam no gurizinho) por causa de certas posições - digamos assim - um tanto quanto ginecológicas que resultam de alguns exercícios. O rapaz, cabra macho, sim senhor, nem se abala com tais picuinhas. O vento, até então uma simples aragem, se intensifica. E a leve brisa se transforma em rajadas curtas e fortes. No almoço, trutas (recém pescadas na laguna Chiarkota, estão fresquitas) servidas com fartas porções de batatas fritas fazem a galera delirar de prazer. Dos deuses esse prato! Como é usual, dale conversa fiada, terminada a refeição, embora a temperatura na tenda-refeitório seja saariana, atingindo a marca dos 37º C! E olha que estamos a 4.700 m! Resisto até certo ponto, porque, afora o calor, nada a ver prolongar ainda mais minha permanência, sentada nestes desconfortáveis banquinhos de campanha. Não há coluna vertebral que lhes resista! De pancinha cheia, tomo o rumo de minha tenda. Melhor posição que a horizontal pra fazer a digestão está pra ser inventada. Avanço mais um pouco na leitura em espanhol de Corta Fuegos, escrito por Henning Mankell, um sueco a quem considero um dos grandes mestres da atual literatura policial, quando escuto “baterem” à porta. É o bom Marquitus, convidando-me a ir até a laguna com eles. Próximo à margem, num barco, um casal de paulistas mais o guia se preparam pra pescar trutas. Fico sabendo depois que a guria é a Belle Duarte, escaladora paulista, que dois dias depois fez cume no Cabeça do Condor. E conheço outro escalador, o Bruno, que fornece dados interessantes sobre umas montanhas pouco frequentadas nas cercanias do Illampu. Na noite estrelada, desponta o fino crescente lunar entre a Cabeça do Condor e sua Asa Esquerda. Pena que não vou vê-la cheia. Deve ser uma beleza ela bem redonda refletindo aquela brancura fulgurante nas águas escuras da laguna. Cesso minha divagação, meio que a contragosto, e trato de dormir. Amanhã tem atividade...ebaaa!!!
Embora sejam 3 da manhã, estou na ponta dos cascos, tanto que saio do saco de dormir, rapidinho. Não há melhor estímulo pra curtir este domingo faceiro que escalar uma montanha. A bola da vez é o Pirâmide Blanca, outro 5 mil. Sinto-me forte e muito afinzona de fazer este cume. Dessa vez, do grupo, sou a mais fraca, motivo por que Davi decide que irei solita com Marco Antonio, ao passo que Jamil, Patucci, Tato, Renato e Rafael serão guiados por Fred, Davi e Mario. Saímos do acampamento 4 horas, já que o Pirâmide, situado antes do Tarija, demanda menos tempo. Demora pouco, o dia clareia, e o sol começa a dar pinta bem a nossa frente. Já durante a caminhada entre o acampamento e o glaciar, eu voltara a sentir o mesmo incômodo no peito do pé esquerdo que me aperreara na sexta-feira enquanto descia do Tarija. Tsk tsk tsk....nada bom isso! Calçados os crampones, subimos a íngreme rampa de gelo onde tem início o glaciar. O caminho já me é familiar. Afinal, é a minha terceira investida nestas paragens! Delimitado o glaciar a oeste pelo cerro Huallomen e a leste pelos cerros Aguja Negra, Ullusion e Illusioncita, avisto 400 m adiante, o pontinho escuro conhecido como cerro Diente. À sua direita, sobressai a imponente Pirâmide que de Blanca só no nome. Em tempos de aquecimento global, suas rochas escuras encontram-se pouco escondidas pela neve. E a merda da bota insiste em continuar machucando meu pé. Marco Antonio, atencioso, desaperta os cadarços dos botinões. De nada adianta. A porra da bota não dá refresco. É penoso caminhar assim, desse jeito. Após consultar meus botões, me dou conta de que pra fazer cume não basta apenas subir, há que se descer, cabrón! Jogo a toalha, ou melhor, dou meia-volta volver, após já ter palmilhado 1/3 do percurso. Se já é difícil caminhar num terreno acidentado como o de alta montanha, imagina fazer isso calçando equipamento fodido. Magoa o pé e também o ânimo! Chego à conclusão que se a desistência do Alpa não me abateu foi porque houve uma aceitação legal de minha limitação física. Mas ser obrigada a deixar pra lá o Pirâmide, por causa dumas botas de merda, ah, isso não! E dói mais porque eu estava imprimindo um ritmo forte de caminhada. Nem iria ficar muito atrás dos guris! Enfim, vivendo e aprendendo. Na próxima vez, não serei pão-dura, cuidarei, isso sim, de alugar um bom equipamento! Encontro na descida Fred e Davi que recém estão subindo, tudo porque estavam tendo problemas com os crampones. Perguntam o que há, explico e desejo-lhes bom cume. Enquanto se distanciam, escuto o conversê animado dos dois diante da perspectiva de mais uma aventura. Sinto, então, uma ponta de inveja do que eles enfrentarão e eu não...droga!! Durante o descenso, Marco Antonio conta que, ano passado, um dos instrutores do CAP (Clube Alpino Paulista) desistiu do Pirâmide devido ao cansaço. Fico super reconfortada com tal informação, porque essa galera do CAP é bem casca grossa. Seu treinamento tem uma levada estilo militar. Tanto que, este ano, um deles luxou feio um ombro e teve de antecipar seu retorno ao Brasil. Quando chego ao acampamento, Oliver, Marquitos e Sabrine, que decidiram deixar pra lá o Pirâmide devido ao cansaço dos cumes conquistados na sexta, curtem uma caracará expulsar a bicadas o filhote do ninho. Ele, insistente, bem que tenta voltar. Ela não arrega, emite uns pios e barra-lhe, em definitivo, a entrada no ninho doce ninho. Cá entre nós, mas como o bicho homem é cheio de dedos em relação à prole, não é mesmo? Muitas vezes sua tolerância é tanta que as crias saem de casa já quase idosos. No mundo animal, inexiste esse sentimento deletério conhecido como culpa! Por isso, na próxima encarnação, por Buda, quero retornar nem que seja na pele duma ameba. Sentados ao sol, ficamos jogando conversa fora até que um vento frio nos empurra pra dentro da barraca-refeitório. Pouca demora, lá vem Yolita trazendo um panelão – ebaaa – de sopa de legumes bem quentinha. À tarde, pela primeira vez nestes 6 dias em que estou no Condoriri, surgem nuvens cinzentas no céu. Cogita-se inclusive a possibilidade de queda de neve, caso a quantidade de nuvens teime em aumentar. Qual o quê, tudo falso alarme, porque, tão logo escurece, se vê o céu coalhadim de estrelas e uma lua crescente, já bem mais taludinha, brilhando lindaça sobre o Condoriri. Vidinha mais ou menos essa, né?

sexta-feira, 20 de julho de 2012

...dos cumes!

Acordo às 02 da madruga com céu estrelado e - 6ºC. Em se tratando de alta montanha, tal temperatura é ameníssima! Uma merda andar com bota dupla de plástico em terreno irregular e pedregoso, tanto que durante a caminhada até o sopé do glaciar Tarija, pareço um robô devido à perda de flexibilidade na região dos tornozelos. Em lá chegando, calçamos os crampones e nos encordamos ao guia Marco Antonio que segue à frente de nosso pequeno grupo. Decidem que eu por ser a mais lenta vou atrás do guia dando o ritmo da caminhada. Nem discuto, deixo quieto, embora internamente, reine a firme convicção de que Sabrine é a mais lenta de nós três. Há algum tempo atrás eu me incomodaria, e muito! Atualmente, o que importa é subir bem, ou como diz o Marski, caminhar como um velho pra chegar como um jovem ao cume, hehe. Duas vezes paramos devido a problemas nos crampones de Marquitos. Meus pés, até então quentinhos da caminhada, esfriam durante a espera....merda! Após três horas de subida constante, começa a clarear e consigo visualizar, emoldurado por duas montanhas, o Huayna Potosi. Abaixo, no vale, a laguna Chiarkhota destaca-se entre os cerros que a cercam. No mais, impera a brancura ofuscante do glaciar refletindo a jovem luz matutina. Coberta de pequenos penitentes, o cenário do glaciar está distinto do ano passado, dificultando mais ainda o ascenso à íngreme rampa que conduz ao platô, situado a 50 m do cume do Tarija. Justo neste local, Sabrine tem um acesso de choro. Arriada no gelo, é a própria imagem do desconsolo, declarando que não quer mais continuar. Marquitos, inconformado com a decisão da namorada, tenta dissuadi-la, o que gera um pequeno entrevero entre o casal, com ele insistindo e ela negando-se em prosseguir. Se Marco Antonio não intervém, o bate-boca iria se estender sabe-se lá até quando. Graças a deus, ou melhor, a Marco Antonio, a rusga é interrompida. O guia toma as rédeas da situação e convence Sabrine, com seu jeito manso e tranqüilo, em continuar a jornada. Usa para tanto o manjado argumento “é logo ali”. Só que o “logo ali” demorou bem uns 40 minutos, hehe. Vou fazer um pit stop na narrativa pra tecer algumas considerações sobre as causas prevalecentes dos sucessos ou fracassos em alta montanha. Até ano passado, eu concordava com a “corrente do fator psicológico” cuja tese defende que, se o cara “amarelou”, foi o emocional que o impediu e blá, blá, blá. Este ano, contudo, revejo meu ponto de vista e tenho pra mim que se atribui exagerada importância ao emocional em detrimento do condicionamento físico. Ora, ora, se neguinho tá fora de forma, não há força de vontade que o leve ao cume. Equilíbrio mental não se adquire enquanto se está na montanha! Ou se tem ou não! Com esta afirmação, longe de mim, passar a impressão que menosprezo o aspecto psicológico, só não! Apenas quero destacar também o lado - digamos, assim, mais material da questão - físico. Ah...e aproveitando o ensejo, ponho na roda uma qualidade moral meio fora de moda, ou melhor, totalmente “out”, chamada estoicismo, sem a qual atletas ou aventureiros chegam a lugar nenhum, tá ligado? Bueno, o caso de Sabrine é emblemático. O estresse emocional foi resultado de seu esgotamento fisico, tanto que posteriormente admitiu, que necessitava de mais preparo físico. Se não fosse a atitude de Marco Antonio, incentivando-a com as palavras certas, ela teria retornado ao acampamento sem fazer cume. Ciente de que este assunto rende muita polêmica, trato rapidinho de retornar aos 5.300 m do platô que antecede os cumes do Tarija e do Pequeno Alpamaio. Daqui a visão da Cordilheira Real é, sem sombra de dúvida, considerada unanimemente bela. Não só dezenas e dezenas de cerros localizados ao sul, quanto as espalhadas encostas do Huayna Potosí, ao norte, são avistadas. Se a visibilidade estiver 100%, e o sujeito for dotado de olho de águia, periga enxergar inclusive o Illimani. Depois duma curta pausa, de modo a recuperarmos o fôlego, continuamos a ascensão. Agora já pertíssimo da estreita crista (o crux da via) que me separa em 10 m do cume do Tarija, escuto risadas e percebo acenos daqueles que já lá estão. A travessia exige cuidadosas passadas com os crampones: uma após outra, sem pressa, de modo a evitar que as pontas se cruzem. Se isso acontecer, periga você tropeçar e cair. Claro está que uma queda no vazio é bem improvável porque, afora a gente se encontrar sempre encordada ao guia, os caras são super treinados e dotados de muuucha força física. Qualquer resbalão, eles te seguram forte, impedindo conseqüências mortíferas. O mínimo que pode acontecer, afora o cagaço, é sofrer alguns hematomas. O mais grave? Algum(s) membro(s) quebrado(s). Como ainda tenho bastante medo de altura, me atrapalho um pouco com os crampones mas logo venço o último degrau e, ulálá, estou enfim encarapitada no topo do Tarija. Pela primeira vez, dá pra acreditar? Ano passado, ledo engano, quando eu pensara tê-lo conquistado, alcançara apenas o seu antecume, o tal platô onde estivera há pouco. Sinto uma puta raiva quando me dou conta do baita equívoco. E põe baita nisso. Tudo resultado da “boa” - arghhhh!!! - comunicação entre mim e o baixinho do meu guia, aquele nanico ignorante, aquele ser praticamente analfabeto que mal sabia falar espanhol, quanto mais entender meu “castiço” portunhol!!! E eu que ainda tive a soberba de proclamar em alto e bom som que achara o Tarija sem graça...pode?! Ai meu deus, que vergonha...puta merda, meu, que horror! Fico de cara comigo mesma. Totalmente desavisada e desorientada eu. Nunca vi igual. O que esperar duma criatura que consegue se perder dentro dum shopping hein?! Dura pouco meu desgosto até porque agora tenho real motivo pra comemorar. Sem grandes espalhafatos já que sobrou pouca energia devido ao super desgaste físico. Acho ótimo quando verifico que apenas nosso grupo se encontra no cume. Caso houvesse mais gente, ia ser uma muvuqueira das mais apertadas, porque nós 13 estamos quase o ocupando por inteiro. O cume, de fato, não passa dum corredor estreitíssimo com pouco mais de 10 m de comprimento, coberto quase totalmente por neve firmemente compactada, salvo em alguns trechos onde afloram rochas graníticas. No lado que leva ao Alpamaio, um brete rochoso, ao passo que, no lado oposto, um precipício branco escancara um vazio duns 60 m. O contentamento circula entre nós, tanto pra quem fez cume pela primeira vez (e não é que Oliver conseguiu apesar das apostas em contrário?!) como pra quem já é macaco velho como Marski e Fred. Sempre bate uma emoção quando se está encarapitado num pico andino de mais de 5.000 m! Marski pergunta quem vai fazer o Alpa. Quando olho a super íngreme ladeira que leva àquele cume, desisto, após breve reflexão. Sem chance de eu encarar. Não vale a pena tanto sacrifício. Aqui, começo a traçar, não sem um quezinho de frustração, meus novos limites. Do grupo, Patucci, Tato, Marcus, Rafael e Renato encaram o desafio de subir essa jóia da Cordilheira Real. Os dois últimos, contudo, dão conta apenas da desescalada de 2º grau ao longo do corredor rochoso que sai do topo do Tarija e termina numa rampa de gelo. Seria moleza, caso não estivessem a mais de 5.000 m e ainda por cima, calçando crampones! Conscientes da debilidade de seus corpos, os dois guris retornam ao Tarija. Mais tarde, no acampamento, Patucci me dá uma ideia do que foi a escalada ao cocuruto do Alpa. Após o tal brete de pedras que desemboca numa rampa de gelo, segue-se outra desescalada, curtíssima, novamente sobre terreno rochoso, iniciando uma curta ascensão ao longo duma rampa de gelo que desemboca num terreno relativamente plano coberto de neve. Aí então inicia o perrengão dos 200 m de subida na rampa totalmente nevada cuja inclinação varia de 45º a 75º. Lindo ver Tato, Patucci e Marquitos mais os guias Mario e Marco Antonio enfrentando a penosa ladeira tão linda quanto técnica. Os guris não levam mais que uma hora entre subida e descida (rapelando), exceto Marquitos, o menos forte dos três. E fico de boca aberta, quando vejo Mario encaminhando-se lépido e fagueiro em direção ao cume, indiferente aos efeitos dos 5.000 metros acima do nível do mar! Chego ao acampamento às 14 horas, tão cansada que nem tento alongar. Também pudera! Na trilha, desde as 2 da manhã, após caminhar durante 9 horas, sobra pouca energia. Yola traz água e eu sedenta, bebo, avidamente, 3 copos um atrás do outro. Quero mais, mais e mais!! Cumbres, por supuesto, hehe !!

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Só na espera....


Se Davi não tivesse me emprestado um saco de dormir extra, eu continuaria passando um baita frio à noite. Pela segunda vez, acordo com dor de cabeça durante a madrugada. Nem hesito, tomo uma pílula anti-soroche e vinte minutos depois a dor já era. Entretanto, tudo tem um preço: acordo pra fazer xixi 2 vezes!! Numa temperatura abaixo de zero não é nada agradável, podem crer! Meu consolo, ao sair do quentinho do saco de dormir, é olhar pra cima e curtir o sensacional espetáculo dos zilhões de estrelas cintilando no firmamento. Quando acordo em definitivo, me dou conta de que o final da semana está chegando....puxa, o tempo voa! A barraca, agradavelmente, iluminada pelos raios de sol, é um convite pra que eu fique mais um pouco deitada embora já sejam 8 da matina. Entretanto, aquele céu dum azul impecável me chama, me chaaama. E quando saio, sinto quão fria a manhã está, tanto que a água, que pinga da bica próxima ao nosso acampamento, se encontra congelada. E Patucci anuncia que seu GPS, durante a noite, marcou - 9ºC, no interior da barraca. Olha só como são as coisas na Bolívia. Marco Antonio, embora seja arquiteto, ganha mais trabalhando como guia. Até então eu que sempre pegara guias sem nenhuma instrução formal, salvo o conhecimento técnico de escalada, sinto prazer em poder bater papo de igual pra igual com um cara instruído que não te vê como mais uma turista assanhada afinzona duma trepada com um índio. Sim, há que se ter bastante cuidado em tratá-los porque de modo geral os guias são maliciosos e machistas. Marco Antonio - aleluia!! - por fim, desvenda a confusão nos nomes das montanhas do Condoriri. A discrepância existe em razão de nem sempre os cartógrafos seguirem a nomenclatura dada pelos nativos, que perpetuam informações ancestrais. Adverte o guia que, em caso de resgate, eles se orientam pela denominação dos moradores da região. Como amanhã é dia de cume, o treino de hoje será leve. Assim, nos dedicamos ao aprendizado sobre diversos tipos de nós que devem ser aplicados em situações que exijaam auto-resgate. A pausa pro almoço enche a galera de alegria! E não é pra menos! Afora sopa e salada, hamburgers de soja com batatas fritas! Feita a digestão, tratamos de pôr em prática os ensinamentos adquiridos na parte da manhã e vamos até um monolito rochoso, perto do acampamento, usar o prussik pra ascender pela corda, simulando que havíamos caído numa greta. A ancoragem, numa pedra, feita por Davi pra montar o top rope, é um milagre que só a física explica. Não à-toa, a formação acadêmica do cara é Física. Putz grila, esta minha cabeça de vento me deixa de cara. Não só os bastões eu esquecera no Brasil, também minhas calças isolantes. Portanto, dentre os itens alugados em La Paz, um deles fora um macacão. Acontece que o macacão veio bichado! Minha sorte, entretanto, foi que resolvi vesti-lo, ontem, quando fui treinar no glaciar. Assim, pude constatar dois defeitinhos nem tão básicos assim na vestimenta: o zíper da perna esquerda espanado (termo paulista que significa, trocando em miúdos, fodido) do tornozelo à metade da coxa e a ruptura dum dente da presilha que prende a alça direita. Desajeitada que sou, apelo ao infatigável Marski. Os guias são, por força da profissão, assaz habilidosos como venho constando. E Marski não me desaponta. Munido de agulha e linha, enjambra rapidinho uma gambiarra especial de boa na presilha arrebentada. Quanto à perna do macacão, envolve-a com fita adesiva prateada. Fica estilosíssima minha roupa! Pareço uma versão feminina anã do Robocop. Davi, por causa de suas habilidades na costura, é objeto de várias chacotas. Jamil, maliciosamente, anuncia cuecas rasgadas que necessitam duma costurinha. Pura inveja das prendas domésticas do Davizinho. Terminada a refeição, servida geralmente quando a escuridão se instala lá pelas 18 e 30, me recolho aos meus “aposentos”. Será uma noite curta já que acordaremos de madrugada pra fazermos o Alpamaio Chico. Numa barraca-refeitório próxima, a animação é grande: palmas vibrantes acompanham cantorias em alemão. Contudo, as 21 horas, reina o mais absoluto silêncio no acampamento-base. Nem o silvar das estrelas cadentes se escuta. É véspera de cume, gente!!

quarta-feira, 18 de julho de 2012

E vengan las montanhas!

Até então o soroche não havia dado pinta. Eis que, durante a madrugada, acordo com dor de cabeça e leve náusea. Sem falar do puta frio (a sensação é de ter não 2 pés e sim 2 barras de gelo nas extremidades inferiores) que sinto já que a droga de meu saco de dormir não me agasalha o suficiente. Nem sei o que é pior: se a gélida temperatura ou os incômodos provocados pela altitude. Juro que não me entendo. Faz tempo que venho pras montanhas e não tomo tento: insisto em usar o mesmo saco vagabundo adquirido uns pares de anos atrás. Por quê, meu bom deus, tu ainda não comprou um saco decente feito com plumas de ganso, hein, senhorinha de ½ idade? Dá pra explicar ou será um jeito mesquinho de expiar teus pecados hein criatura? Vá lá saber....vixeee!! Bueno, quando acordo me sinto bem melhor. Paira tão-somente uma leve pressão na cabeça, o que já é lucro. Em se tratando de dor de cabeça, mulher é casca grossa porque a maioria sofre desse desconforto desde quando - guriazinha - começa a menstruar. Assim, o organismo vai se blindando estoicamente à dor. Quando olho pro céu, azul, sem qualquer vestígio de nuvem, me dou conta de que sou uma privilegiada por estar rodeada de tanta belezura. Cintia, Bruna e o namorado estão partindo pro Peru. Lastimo que o convívio com a mulher de Marski tenha sido tão breve. Instrutora de Pilates, atividade que pratico há 8 anos, adoraria ter trocado idéias com essa profe sobre o assunto. Terminado o desaiuno nos tocamos até o Tarija onde faremos treino sobre o glaciar. Considerando que os Andes têm 8.000 km de extensão e, em certos trechos, 160 km de largura, a Cordilheira Real tem medidas modestíssimas: 125 km de comprimento em 20 de largura. Compreendida entre o lago Titicaca e La Paz, os nevados que a delimitam são o Illampu, ao norte, e o Illimani, ao sul. O maciço Condoriri, distante 60 km de La Paz, situa-se justo na metade dessa subcordilheira andina. Deve esse nome porque, dentre os 13 picos que o formam, todos na cota dos 5 mil, um deles exibe formato semelhante a de um condor de asas abertas. Depois do Huayna Potosí, o Condoriri vem a ser a região mais procurada por quem está iniciando ou já tem algum conhecimento de montanhismo. Europeus e americanos são figurinhas fáceis de serem encontrados aqui, pois o grau de dificuldade pra fazer cume é médio, mesmo quando se trata de picos mais técnicos como Cabeza de Condor ou Alpamaio Chico. Após atravessar uma zona coberta de douradas tsampas (espécie de tundra altoandina), drenada pelo fino caudal do rio Condoriri, ingressamos no árido terreno irregular coberto de cascalho até a base do glaciar. No meio do caminho, paramos pra observar a estreita canaleta Wayoming que conduz à Asa Direita do Condoriri. Um dos rapazes, muito gentil, oferece-me um de seus bastões, o que aceito, aliviada. Cabeça de vento que sou, esqueci os meus em Porto Alegre. Meu relógio Garmin registrou, do acampamento aos pés do glaciar, uma distância de 2,5 km feitos em 2 h 15 min. Tão cansativa foi a pernada – agora, sim, tô sentindo à beça os efeitos da altitude - que quando chego duvido se vou dar conta de treinar. Ainda mais tendo de usar botas duplas de plástico com crampones. A preguiça é incomum. Maledeta altitude....arghhh!! Sacudo a preguicite e, com certo esforço, faço os exercícios que consistem em subir e descer a rampa inicial do glaciar cuja inclinação gira em torno de 30 a 40º. Cansada, dou por encerrado meu treino e passo, então, a prestar atenção na turma. Como sempre sói acontecer em esportes de aventura, a ala feminina é minoria: apenas eu, outra cliente e a cozinheira. Já o macharedo é presença acachapante. Evidente que meu olhar bate inicialmente em Davi Marski. Com sua presença carismática, o líder da expedição se impõe de imediato. Esse paulista, que trocou sua bem sucedida carreira de profissional da informática pela incerta atividade de guia de montanha, tem uma bizarra fixação por seu estado de permanente flatulência (na altitude, tal fenômeno intestinal se potencializa de forma constrangedora). Assim, faz questão de propagandear cada lançamento de seus petardos fétidos. Que são vários e diversos por dia. O contraponto do escatológico Davizinho é o discreto Fred, seu lugar tenente. O fleumático carioca nem tenta fazer sombra ao seu esfuziante amigo. Como em todo grupo, há a turma dos quietinhos e a dos salientes. Claro está que Marski ocupa o primeiríssimo lugar no ranking dos exibidos, seguido de Marcus, o Marquitos, um pernambucano de 23 anos, cujo temperamento levemente arretado, não o impede de revelar um que de ingênuo. Marquitos, vez por outra, é alvo da zombaria elegante de sua namorada, a adorável Sabrine. Dona de lindos olhos verdes e um corpitcho delgado que nem vara de bambu, esta guria, na flor de seus 21 aninhos, torna-se musa da rapaziada. Já Tato, embora pertença à tribo dos que entra mudo e sai calado, ostenta, mesmo de manhã cedinho, um sorriso legal no rosto. Renato e Rafael, muito focados, dão a impressão que irão detonar todos os cumes que encontrarem pela frente. Este último, não só pelo físico, desmilinguido, como pela risadinha, lembra um daqueles personagens de desenho animado, Beavis e Butt-Head. O fortão da turma é Patucci, nosso consultor sobre problemas de saúde, graças ao seu diploma de veterinário. Ele e Marski são os nossos paramédicos, hahaha!! Oliver, venezuelano, cursando pós-graduação em engenharia aeronáutica no Brasil, tá penando pra se aclimatar tanto que, durante a pernada, o cara não caminhou, se arrastou igual lesma. Enquanto esperamos ele chegar ao glaciar, fofocamos que talvez ele não dê conta de cume algum amanhã. Por fim, os guias bolivianos, Mario e Marco Antonio, completam a trupe. E claro, não dá pra deixar passar em brancas nuvens a peça fundamental em qualquer expedição que se preze: a cozinheira! Com suas tranças quase alcançando o bumbum, Yola, como é conhecida a índia Yolanda, exala cordialidade e bom humor invariáveis, esparramados num corpo generosamente carnudo. Considerando as condições precárias duma cozinha de acampamento, os cozinheiros fazem milagres. Yola não foge à regra: prepara pratos deveras saborosos. Apesar do bom jantar, estou sem fome alguma. Esforço-me pra provar a sopa e o macarrão. Na sobremesa, banana frita, mal toco. Quando me retiro pra barraca, sou brindada com um cenário deslumbrante: o céu furadinho de estrelas. Vidinha mais ou menos, né?

terça-feira, 17 de julho de 2012

Dale Condoriri!

Acordo bem disposta apesar da considerável altitude de La Paz: 3.800 m. Como tenho pressa, preciso comprar uma máquina digital antes de partir pro Condoriri, deixo a água do chuveiro esquentando enquanto organizo a bagagem. Chuveiros aquecidos a junker, dependendo do hotel, podem demorar um tantão pra aquecer. E por causa disso acontece algo inusitado. A dona do hotel, cujas atitudes eu já achara meio estranhas ontem à noite quando chegara ao estabelecimento, irrompe à janela do banheiro, que se comunica com uma área interna, e manda, vejam bem, manda que eu desligue a torneira. E eu que nem estava ainda no banho, atônita, nem reajo. Limito-me apenas em obedecer (ah....Freud explica, se explica!). Finalizo, bem atucanada, a arrumação de minha mochila e trato de entrar rapidinho no box com receio de que a louca criatura possa ou cortar a água ou desligar o aquecimento central do junker. Pois não é que novamente a bruxa abre a tal janela? Aí sim reajo e grito pra odiosa mulher fechar a janela. Dessa vez quem obedece é ela, hahaha!!! Quando faço o check out, a doida cobra um extra de 30 bolivianos por conta do tanto de água que eu gastara à-toa....pode?! E mais! Ainda quer cobrar pela luz!! Seu pai, um velho caquético, percebendo que estou quase me pegando a pau com a maluca de sua filha, apazigua a tensa situação e decreta somente a cobrança da água. A máxima “o fruto não cai muito longe da árvore” se aplica como uma luva a essa dupla de salafrários! Minha irritação dura pouco, entretanto, porque tenho muita coisa pra agitar. Assim, procuro a Elma Tours, agência responsável por meu traslado até o acampamento-base do Condoriri onde alugo botas duplas de plástico, crampones, piolet, capacete e arnês, equipamentos essenciais a quem quer se aventurar em montanhas cobertas por glaciares. Terminados esses tediosos trâmites, parto em busca da loja onde ano passado eu vira uma Nikon parecida com a que me fora furtada por uma ex-faxineira ano retrasado. Caminhando na muvucada avenida Sta Cruz, vez por outra, consigo vislumbrar lampejos do onipresente Illimani, montanha cartão-postal na paisagem boliviana. Compro a máquina e só então me dou conta – já são mais de 11 horas - que ainda não desaiunei, entrando no Banais. Restaurante e cafeteria, seus lustres, super originais, são feitos com as saias coloridas das cholitas. Dotado dum bom wifi, fico ali fazendo hora até partir pro Condoriri, o que acontece somente às 3 da tarde. Ao invés de irmos por Tuni, Jenaro, proprietário da Elma Tours, escolhe outra trilha, a que parte de Rincón, porque bem mais perto do acampamento-base. O trajeto não ultrapassa 3 km. Enquanto o carro percorre a estrada poeirenta de chão batido, curto o sol poente banhar com uma cálida coloração amarelada o Huayna Potosi, a segunda montanha boliviana mais emblemática. Chegamos a Rincón - nem vilarejo é, tem, se tanto, três casas pertencentes a pastores de lhamas - às 18 horas, ainda com vestígios de claridade. Quarenta minutos depois, estaria eu caminhando em completa escuridão, se já não estivesse, previdentemente, usando uma lanterna de testa. Considerando que estou há 2 dias no país, me felicito pela razoável aclimatação, embora lá pelas tantas, sinta ganas de jogar longe os bastões do tanto que eles pesam em minhas mãos. Efeitos deletérios da altitude. Transcorrida pouco mais duma hora, chego, enfim, ao acampamento onde se desenrola aquele festerê. É o niver de Cintia e Bruna, mulher e filha de Marski. Jenaro trouxe duas tortas deliciosas de morango, serpentinas, confetes, chapéus e foguetes, tudo encomendado por Marski!!! Sou recebida nada mais nada menos com uma taça de tinto chileno. Não tenho do que me queixar, não é mesmo?

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Findi em Sampa

Na segunda-feira, enquanto a maioria das pessoas pega no batente, estou eu aqui em Guarulhos esperando meu voo para La Paz. Este é o terceiro ano que volto ao país. Tudo por conta da curta distância, preços convidativos e, mais importante, pencas de montanhas acessíveis a montanhistas medianas como eu. Embora o avião só parta às 13 e 30, temerosa do trânsito empata-foda paulistano, aproveito a ida de Cassandra ao aeroporto pra pegar Dib que retorna da Bolívia, e me mando junto com ela até Guarulhos na madrugada. Nem o conhecimento de Cassandra sobre o trânsito, evitou que ela se perdesse na tal marginal Pinheiros. Ala putcha, como são mal sinalizadas essas cidades brasileiras! Tu fica rodando, rodando, igual a cachorro perseguindo o próprio rabo, terminando em lugar algum, puta que os pariu! Como a espera será longa até eu embarcar (cheguei as 4 da manhã), deixo as duas malas no depósito de bagagens e fico zanzando de seca pra meca até as 8 da manhã, quando, então, exausta de sono, me dou por vencida e estendo meu corpitcho sobre duas mesinhas laterais às poltronas, caindo instantaneamente numa profunda e reparadora sonequinha. Apesar da curta duração - justo uma hora - bastou pra recarregar minhas baterias. Enquanto o boeing da BOA, companhia estatal boliviana, sobrevoa os céus, saboreio as lembranças de meu findi em Sampa onde revi amigos queridos, com direito inclusive a um pedal, organizado por uma de minhas anfitriãs, Vivi Mar, aguerrida esportista e aventureira. A querida menina convocou as amigas do peito e assim percorremos alegremente algumas das diversas trilhas que rasgam a serra da Cantareira naquela ensolarada tarde de sábado. Até então nutria pouca simpatia pela cidade. Dessa vez Sampa (devem ter sido os bons programas proporcionados pelas boas companhias) me pegou dum jeito que passei a vê-la com novos olhos, curtindo legal a tal de “dura poesia concreta de suas esquinas”, como tão bem definiu Caetano naqueles versos memoráveis sobre esta nem tão assim desvairada Paulicéia. A caminho da casa de Fabio, namorado de Vivi, de onde o pedal iniciou, assisti a um grandioso evento evangélico, animado por carros de som semelhantes àqueles usados pelos trios elétricos. Congregando milhares e milhares de pessoas que se moviam ao longo de uma das pistas da avenida 9 de Julho, o encontro religioso se estendeu até a noite. De olhos fechados, sentada no desconfortável assento da classe econômica, meu coração se aquece quando lembro a hospedagem generosa de Rosa, o sorriso largo de Cassandra e a agradável tarde domingueira que desfrutei na companhia de Barbara. Ah, graças às agulhinhas mágicas da acupuntura, aplicadas por esta gentil amiga no meu joelho, contundido durante o pedal do dia anterior, fiquei inteiraça e pronta pras montanhas bolivianas. Dá pra esquecer a sopa preparada pela hospitaleira Sandra, sogra de Vivi, e o tragoleu de vinho do Fabio, cuja língua ficou tal qual à de um chow chow? Bem capaz! Delicioso repassar bons momentos!! E foram tantos! Sem preço a carga de vibrações positivas que esses amigos me transmitiram. Na atual fase de minha vida, sofrendo em ver a derrocada mental de minha mãe, acometida pelo Mal de Alzheimer, foi um refrigério compartilhar momentos tão descontraídos junto a pessoas tão especiais. Quem tem amigos, de fato, não morre pagã! Já em El Alto, pego um táxi cujo motora, quando sabe que sou brasileira, entabola um conversê animado durante o trajeto até La Paz. Conta que, há 20 anos atrás, morou 2 anos em São Paulo, se exibindo com um conjunto de música folclórica boliviana. Confidencia que noivou com "una brasileña....muy distinta, muy distinta aquella señorita”, enfatiza com voz suave. E as confissões prosseguem. Revela, sem que eu tenha indagado, não ter sido essa a dama que se tornou sua “señora”. Aí sim, curiosa, disparo um "por quê?", permitindo, com essa oportuna deixa, que ele dê continuidade ao seu relato (acredito que mesmo que eu não houvesse perguntado, ele teria contado!). Esclarece que, em visita a La Paz, decidiu que seria incapaz de deixar pra trás sua mamacita, uma solitária viúva. Sua voz torna-se compungida quando relembra que, durante um tempo, enrolou a noiva brasileira, sem coragem de contar que não “volveria’. Um dia, encheu-se de coragem e, com o coração partido, falou a verdade. Que baita 171 emocional esse taxista de olhar pidão e voz de veludo!! A brasileira nem sabe do que se livrou, embora o sujeito fosse muito simpático e envolvente. Mas todos os safados o são, hehe. Por indicação de Davi Marski, líder da expedição a que vou me juntar no Condoriri, hospedo-me na Casa de Huespedes Montañes, ubicada em la calle Sagarnaga, zona de intenso comércio paceño. Ao contrário do ano passado, peço apenas uma sopinha com fatias de pão durante a janta. Não pretendo repetir a mancada do ano anterior  quando inventei, no primeiro dia na cidade, de mandar ver num restaurante chinês. O resultado? Puta dor de cabeça como se tivesse sido escoiceada não por uma mas por dezenas de mulas. Sem falar nas náuseas e vômitos durante um dia inteiro. Suo frio só de lembrar.