sábado, 12 de julho de 2008

De volta a Islamabad

A noite foi insuportavelmente quente. Como tenho ojeriza a ar condicionado, desliguei o aparelho e, não contente, ainda, o ventilador de teto porque muito barulhento. Sexta-feira amanhece linda e o céu exibe uma uma tonalidade clara de azul. Estamos saindo de Chilas às 7:30. Uma longa viagem nos aguarda. Embora a distância entre Chillas e Islamabad seja de apenas 483 km, a viagem de carro dura 14 horas! Isso se não houver nenhum deslizamento de areia e pedras porque, conforme a quantidade de detritos caídos sobre a rodovia, a demora pode variar de 2 horas a dias! O grande perigo aqui no Paquistão são estes desmoronamentos. Enormes blocos de rochas, precariamente, equilibrados uns sobre os outros debruçam-se sobre a rodovia. A própria trepidação dos veículos ou um vento forte pode provocar, em fração de segundos, a queda desse material. No nordeste do país, há dois aeroportos: o de Gilgit e o de Skardu, e a viagem entre eles e o da capital se faz em pouco mais de 1 hora. Contudo, voar de Islamabad até uma dessas duas cidades, ou delas pra capital, sujeita-se às imprevisíveis condições meteorológicas da região, devido às altas montanhas e a formação de espessas nuvens, o que dificulta em muito a visibilidade. Já saimos dos territórios do norte do país (Northern Áreas) e estamos, agora, percorrendo a NWFP (North-West Frontier Province). A paisagem começa a se transformar: a aridez do terreno, despojado de qualquer vegetação, cede lugar, pouco a pouco, a uma luxuriante cobertura vegetal que colore de verde escuro as encostas das montanhas. Chegamos em Besham, às 13:15. Esta cidade é um importante centro comercial da NWFP onde o comércio funciona 24 horas por dia. Enquanto estou almoçando, sou objeto de curiosos olhinhos infantis que me espiam através da janela do restaurante. Lá pelas tantas, faço uma careta. É o que basta pro bandinho de crianças espalhar-se alvoroçado pelo jardim. Vem me surpreendendo o tratamento paciente e carinhoso dispensado pelos homens aos seus filhos. Aos mais moços pegam no colo com frequência. Minha curiosidade sobre os nomes das vestimentas típicas é satisfeita por Siddique: as mulheres quando vestem shalwar e qameez (túnica e calça) cobrem a cabeça com uma echarpe, a dupata ou chadar. Às fiéis seguidoras dos rígidos preceitos islâmicos está reservado o uso do burqa, o amplo e disforme camisolão (vi apenas em duas cores: azul anilina e preto) que as cobre dos pés à cabeça, não deixando escapar nem os olhos. Àquelas que não se resguardam tanto dos olhares masculinos, há uma variante um pouco “mais” light que deixa visíveis os olhos por entre a máscara de pano. Sou fascinada por essas roupas. Há um não sei quê de mistério em tudo isso. Longe de mim vesti-las, contudo, me atrai a sensação de “invisibilidade” que tais vestes proporcionam. Os chapéus masculinos são o topi (quepe) ou paghrhi (turbante). Saída de Besham às 14:45. À medida que vamos nos aproximando de Islamabad, o verde das matas vira regra. Siddique, durante a nossa infindável viagem, conta que perto de Karachi há uma praia muito linda com mar azul e águas mornas, Gowadar. Muitos túmulos à beira da estrada onde mulheres, ajoelhadas, pranteiam seus mortos, ao passo que os homens, acocorados, conversam entre si. Siddique já tem uma opinião diversa à de Ali no que se refere a relação afetuosa entre os homens, assegurando inexistir envolvimento sexual, apenas amizade. Humm....quem terá razão? Na minha peregrinação ao longo da KKH (e olha que eu andei, hein! fui de Islamabad até a fronteira com a China), apenas num pequeno trecho entre Abbotabad e a capital, foi construída pista dupla. Lá pelas 17 horas, cai uma chuva grossa. O movimento na rodovia é intenso em ambos os sentidos. Chegamos, finalmente, a Islamabad, por volta das 21 horas, já noite cerrada. Minha prima fez uma comida especial pra mim: bife à parmegiana, salada de alface e cenoura, arroz branco bem soltinho e macio. Percebo com tristeza, ao acordar, que hoje, sábado, é meu último dia no Paqui....putzgrila, passou tudo tão rápido. Vou pela manhã fazer o debriefing no Alpine Club of Pakistan. As perguntas são as de praxe: o tratamento que me foi dispensado pela agência e pelos guias durante a viagem, e minha opinião sobre o trek. Encerrados os trâmites burocráticos, vou a Panoramic Pakistan me despedir de Tahir e agradecer pelos seus bons préstimos no lamentável episódio do passaporte. Também tenho de acertar minhas contas já que eles pagaram despesas minhas de Skardu em diante porque “muito previdente” deixara a maioria de meu dinheiro e cartão de crédito aqui em Islamabad. Reencontro Niaz que fica muito contente ao me rever. Despedidas feitas, me trazem pra casa onde eu e Renata comemos um bom almoço preparado por ela: salada de alface, cenoura ralada e pepino acompanhando uma torta de camarão. Vamos então às compras. Adquiro um monte de bugigangas pra presentear amigos e parentes. Exausta de tanto bater pé nas lojas – cansa mais que trek....ufa! – e de gastar, retornamos pra casa conduzidas pelo simpático motorista, Mr. Beak. Aí a ingrata tarefa de arrumar malas, arrrghhh!! Às 20:30, chega um casal de cariocas, Jader e Teresinha, ele oficial da FAB, cedido como treinador à equipe de futebol das Forças Aéreas paquistanesas; ela, dona de casa. Vamos ao Hot Spot jantar. Muito agradável a companhia deles. Contam fatos interessantes presenciados durante o 1 ano e 7 meses de permanência no país. Como dois casamentos a que foram convidados. Duram as bodas 6 dias; pra cada dia há uma atividade diferente: num dia, comem, noutro, a noiva se pinta, no terceiro, os parentes dos noivos vendem doces para os convidados e no penúltimo dia, o noivo e a noiva transam, sendo que antes a sogra examina a moça para confirmar sua virgindade. Conta Teresinha que só neste dia é permitido ao noivo ver o corpo nu da moça. Depois, as relações sexuais acontecem com ambos vestidos. Eles ainda estão na Idade Média nesse aspecto, gente! Somos deixadas em casa, e ficamos, eu e Renata batendo papo até 1 e 30 da madrugada, hora em que Mr. Beak me traz ao aeroporto. Como o Paquistão é rota de narcotráfico da heroína produzida no Afeganistão, a polícia antinarcóticos não só revista as malas dos passageiros na saída do país como num cubículo uma guarda feminina procede a uma revista pessoal, manuseando as mãos de cima a baixo do meu corpo. Só após esses procedimentos, é permitido realizar o check in. Entro na ala internacional e o free shop revela-se duma pobreza franciscana. Pouquíssimos os produtos importados: algumas marcas de perfumes, chocolates e só. Se não fossem as inevitáveis lojinhas vendendo souvenirs de produtos típicos do país, poucos seriam os atrativos pra  ocupar o tempo antes do vôo. Antes de entrar na sala de embarque nova revista pessoal (deve ser pra evitar que alguém, sei lá, um funcionário do aeroporto possa passar alguma droga nesse meio tempo). Já 3 da madruga -, ainda aguardando a hora de embarcar para Dubai, observo as sandálias dos fiéis alinhadas do lado de fora da sala de orações. Curiosíssimo país este. Sentada um pouco além de mim, uma jovem mulher segura um nenê que dorme em seu colo. Usa burqa preto, seu véu, contudo, deixa visíveis os olhos: entre eles há uma tira fina de pano que desce da testa até a ponta do nariz. A barra de sua túnica é bordada com linha dourada. Por baixo, uma pantalona rosa. Várias pulseiras douradas tilintam em ambos os pulsos. As pontas dos dedos, tanto dos pés quanto das mãos assim como os do bebê, estão pintados de laranja. Há que me distrair porque senão tenho um xilique: quatro horas de vôo até Dubai, mais quatro de espera naquele aeroporto, pra então embarcar rumo a Sampa, cuja distância de 12.669 km se faz em 14 horas. Meu coração já geme de saudades. Shukurya Paquistão! Inshala possa eu retornar a este lindo e acolhedor país!

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Convivendo, enfim, com as paquistanesas!

Eu sabia, tinha certeza de que o tempo aqui em Karimabad se comportaria igual ao de certos veraneios azarados na praia em que os dias se mostram casmurros, exceto o último quando pára de ventar, o sol se mostra em todo seu vigor e o mar vira um espelho de tão límpido e tranqüilo. De pé no terraço do hotel, enquanto espero seja minha bagagem transportada até o carro, o dia, esplêndido, enfim, me dá uma chance de ver a magnificência do Rakaposhi Peak. Observo que em sua face leste há dois largos e extensos contrafortes: o da direita menos nevado, já o da esquerda apresenta-se coberto de neve por inteiro. Abaixo, no vale, as águas beges do Khunjerab e Nagar mal disfarçam a junção destes dois afluentes do Hunza, tributário do Indo, considerado o maior rio do país, cuja foz situa-se a mais de 1.700 km, no mar Arábico. Olho pro relógio colocado numa parede do restaurante onde estou comendo meu desjejum e constato, atônita, que são 6:30. Estranho porque acordei às 7:30! Meu espanto dura pouco, logo me dou conta de que os relógios, via de regra, não são acertados pro horário de verão, permanecendo no horário antigo. Coisas do Paquistão! Justo, hoje, fico sabendo que Karimabad é o único lugar do país onde é fabricado um certo tipo de vinho cujo teor alcoólico é bastante forte, segundo me conta Siddique. Peninha, gostaria de tê-lo provado. Às 8:20, partimos de Karimabad e, durante o trajeto, a presença constante do Rakaposhi se faz presente sempre do lado esquerdo da KKH. Fazemos um stop no mesmo restaurante onde estivéramos na segunda-feira quando íamos rumo a Karimabad. Do estabelecimento, estrategicamente situado no sopé da montanha, tem-se uma vista muito atraente da montanha, de cujo glaciar desce um riozinho cascateante por entre as pedras de seu leito. A parada inclui, é claro, um chazinho. Peço verde sem leite. Retomamos a viagem e Siddique pede a Aqbar que pare e pergunte a uns homens sentados à beira da rodovia se conhecem uma alternativa à KKH que conduza também a Gilgit. Eles indicam onde dobrar e lá vamos nós por uma via paralela à grande rodovia, que inicia ao norte de Islamabad e percorre o restante do país, adentrando, inclusive, o território chinês. Fico sabendo um pouco mais sobre o verdadeiro interesse do governo chinês em cooperar no alargamento da KKH. Se os chineses utilizassem seus portos, situados ao norte, pra escoar os produtos e matérias primas produzidos no sul do país, o transporte resultaria muito mais demorado e caro, motivo por que preferem despachá-los via Karachi. Dessa forma, as mercadorias são transportados em imensas carretas containers até o porto seco de Sost, não muito longe da fronteira chinesa, e lá distribuídas em caminhões menores que as conduzem até o porto da antiga capital paquistanesa. Às 11:20, chegamos em Gilgit, a principal cidade da Northern Areas (esta região não é província e tampouco faz parte do Paquistão, tudo muito confuso, só eles pra entenderem tal divisão política). Sem grandes atrativos turísticos, é cortada pelo rio de mesmo nome. Seu centro comercial demonstra, de fato, a importância administrativa do lugar: no bazaar há talvez mais de uma centena de lojas ocupando diversos quarteirões. Mesmo assim, o despojamento que observara nos vilarejos, também, aqui predomina: ao lado de uma joalheria, um aviário, na frente de uma loja de finas roupas femininas, cabras e vacas pastam, sem ser incomodadas ou enxotadas. A tradição rural do país é mais forte do que qualquer verniz de sofisticação que as cidades reivindiquem. Gilgit foi o único lugar onde um homem, fabricante de calçados, se recusou a ser fotografado, consentindo apenas que eu fotografasse os sapatos. Ficamos menos de uma hora (calor, insuportável) e saímos às 12:10 para Chillas. Transcorrida uma hora de viagem, já é possível se avistar Ferumidu ou Rakhiot, a face norte do Nanga Parbat, a mais bela de todas devido à generosa vegetação e florações em seu entorno. Não à-toa, o lugar recebe o apelido de Fairy Meadows. Entretanto, é a mais perigosa pra escalar em razão dos constantes deslizamentos de neve e gelo que ocorrem em suas encostas. Das três faces, Diamir, situada a oeste, é a de paisagem mais árida porém a menos difícil de ascender. Já a cara oeste, Rupall, é pura rocha, uma autêntica big wall. Chegamos em Chillas às 15:15. O calor está em torno de 40º C, e eu, agora, sentada nos jardins, tenho à minha frente as águas lamacentas do rio Indo. Passarinhos trinam sem parar e besouros tiram fininho de minha orelha. O farfalhar das árvores e o conversê em urdu dos empregados do hotel são minha trilha sonora, quebrada vez por outra pelos roncos e buzinas abafados dos veículos que trafegam na KKH, à beira de onde o hotel foi construído. Venho observando a diferença – sei lá por quê – no estilo de sedução entre chineses e paquistaneses: os primeiros dardejam olhares firmes, evidente a lascívia que deles brota. Já os paquistaneses lançam olhares langorosos, há um não sei que de démodé em tal manifestação. Talvez porque a religião muçulmana funcione como um freio à lubricidade dessa gente. Fecho os olhos e vejo ainda a paisagem vista de dentro do carro se desenrolar a minha frente: um mar de areia e rochas cuja tonalidade varia apenas do cinza-escuro pro cinza-claro. País mágico e encantador este! Pretendo retornar tão logo possa e fazer o trek no Biafo Glaciar cuja melhor época é julho quando, então, as fendas se abrem e são, facilmente, visíveis. Peço café. Trazem nescafé e água quente num bule.....pode? Coisas do Paquistão! Os garçons nem sempre entendem meu inglês mas são tão solícitos e gentis que dá vontade de beijá-los. Aliás, eu por mim beijava homens, mulheres, crianças, cabras e galinhas. Continuo sentada no jardim......tão bom aqui! Uma leve brisa agita os ramos das árvores carregadinhas de flores. Olha que eu gosto de calor, porém o de hoje está demais. Noto uma mocinha muito bonita, de seus quinze anos, vestindo um elegante shalwar e qameez amarelo e preto, tagarelando ao celular. Lança-me um olhar meigo. Eu retribuo sem qualquer esperança que ela se aproxime, afinal, as mulheres são tão arredias! Pois não é que a guria se aproxima? Estamos nós em animado bate papo quando surgem a mãe e a irmã caçula. Ficamos amicíssimas. Tiramos mis fotos (Mehr, não só pede pra eu fotografá-la como me fotografa também!). São de Rawalpindi (abreviam pra Pindi). A mãe, apesar de bem acima do peso, conserva, ainda, vestígios de beleza. Seus olhos embaçam-se depois que pergunto se só tem as duas meninas (numa cultura tão machista quanto a paquistanesa, não gerar um macho deve lançar uma mácula sobre as mulheres, com certeza). Pinta vasos e borda. A mais moça, de uns 12 anos é espevitada, muito engraçadinha. Indagada sobre meu estado civil, exclamam ohs consternados quando respondo que sou divorciada, logo substituídos por ahs de alívio ao saber que não sou infeliz por estar sozinha. São as únicas mulheres, ao longo destes 28 dias de viagem, que não vejo cobrindo os cabelos com dupata, usam-no como echarpe ao redor do pescoço. Estou eu me preparando pra dormir e ouço um toc toc à porta. Abro e me deparo com Mehr, parada na soleira. Vem se despedir. Não dá nem dois minutos, surge o pai. Sou então a ele apresentada. É arquiteto. Pergunta se a filha está incomodando. Eu respondo com o esperado não. Elogio-a, ele fica todo orgulhoso. Não se passam três minutos, e eis a mãe com a caçula pendurada em seu braço. Sem ser convidados, entram todos no quarto. Eu já estou sorrindo amarelo, na verdade, desejaria ser deixada em paz, solita, com meus pensamentos. Mehr deseja tirar mais fotos de mim, agora com o pai junto. Diz que é para eu não esquecer deles. E dá pra ficar aborrecida?

quarta-feira, 9 de julho de 2008

A adorável Karimabad

Acordo, não dá outra, cedíssimo, embora não vá fazer nenhum passeio longo. Hoje o dia está reservado pra conhecer Karimabad (abad significa população). Enquanto espero Siddique no restaurante, saboreando um desjejum sem grandes atrativos gastronômicos, curto, através das amplas janelas, o cenário a minha volta. Rodeada de montanhas com mais de 7.000 metros, Karimabad, conhecida também como Baltit, é a capital do Hunza Valley. Domina a paisagem, bem à minha frente, dois destaques da região: Diran Peak e Rakaposhi Peak. Mas a coisa não fica só nestas duas montanhas. À esquerda, quase todo encoberto, mal percebo o Golden Peak e, à direita, debruçando-se sobre o Baltit Fort, o Ultar Peak. Bem mais distante, aponta tal qual um estilete, o pontiagudo cume rochoso sem neve do Lady Finger Peak. Contemplando toda essa belezura, divago. Traço um paralelo entre as montanhas e a anatomia masculina e a feminina, comparando as áridas montanhas e suas abruptas arestas à primeira, enquanto as cobertas de vegetação à segunda, em que o verde da grama representa os trajes e adereços coloridos usados pelas mulheres (sei que é uma comparação babaca mas, enfim, foi a que me veio à cabeça no momento). Conversando com Siddique, que se junta a mim no refeitório do hotel, mais informações sobre a travessia do Ghondogoro me são fornecidas. Eu poderia tê-lo cruzado embora esteja fechado. Para tanto teria de pagar mais e a operação far-se-ia da seguinte maneira: os porters retornariam de Concórdia e eu seguiria apenas com o guia e o cozinheiro. Da vila de Hushe, outros porters se deslocariam até Ali Camp, o primeiro acampamento após a travessia do Ghondoghoro La, com mantimentos e equipamentos necessários aos demais dias de trekking, que findariam justo em Hushe. Pena eu saber disso logo agora! Enquanto subimos as ladeiras, Siddique comenta que o povo de Karimabad tem a cabeça mais aberta e as mulheres, ao contrário das de outras vilas, permitem, às vezes, as fotografias. Pergunto a ele se há divórcio e Siddique confirma tal possibilidade. Caso o marido recuse, o casal vai ao tribunal, decidindo por eles o juiz. Entretanto, a incidência de divórcio é baixa porque, segundo ele, os preceitos islâmicos ensinam que um homem e uma mulher não devem viver sós. O lugar é encantador. Arcadas atravessam os passeios de um lado a outro, casas feitas de pedra, com balcões de madeira, debruçam-se sobre ruelas estreitas e sinuosas. Nossa caminhada termina no alto de uma empinada colina onde se ergue altaneiro o Baltit Fort. Agora transformado em museu, este edifício, de mais de 700 anos, foi, até 1945, moradia dos antigos reis do Hunza Valley. Em 1975, a região, até então um estado independente, governada pela dinastia real dos Khan, foi anexada ao Paquistão. Rebaixada, assim, à condição de distrito, compõe o que se conhece, atualmente, como área Nordeste do país. Entramos na vetusta moradia toda feita de grandes blocos de pedra, e a primeira peça visitada são os calobouços (será uma advertência?). Subimos uma escadinha que conduz a uma peça de teto baixo com janelas pequenas, escura à beça. O guia do museu vai nos conduzindo de peça em peça até a única sala realmente clara de todo o prédio. Tem as paredes pintadas de branco e uma graciosa sacada de madeira, ricamente entalhada, de onde se descortinam as barrancas esbranquiçadas do rio Hunza. Da cozinha, próxima peça a ser visitada, o único vestígio de claridade advém de uma pequena clarabóia, e o teto, coberto de picumã, revela a falta de ventilação do ambiente. Tudo muito rústico. Embora fossem reis, não gozavam lá de muito conforto, não! No terraço, uma larga cadeira de madeira fazia de trono onde o monarca recebia seus súditos. À frente, um estradinho de madeira – o palco - para apresentações artísticas que serviam para entreter a corte. E pendurada em uma das paredes, uma cabeça de bode, considerada símbolo de boa sorte. O panorama que se tem daqui de cima é formidável, compensando a modéstia do interior do palácio. A vista de 360º abrange não só todas as montanhas adjacentes quanto a vila, situada mais abaixo. Uma paz este lugar. Entro em lojinhas onde estão expostos tapetes feitos a mão, finamente, bordados, colares de rubi, turquesa e lápis lázuli de dar água na boca, mais uma penca de produtos típicos, tudo muito, muito colorido. Por sorte, deixara a maior parte de meu dinheiro e cartão de crédito em Islamabad. Senão teria me enchido de badulaques mis. Abordada na rua por um homem, simpaticíssimo, que me convida pra visitar sua casa, lá vou eu conhecer sua humilde moradia. E tiro fotos com alguns de seus filhos, adoráveis e sujos! Ele faz isso esperando em troca um dinheirinho para aumentar a renda familiar...triste miséria que obriga as criaturas a revelarem sua intimidade. Já de volta ao hotel, quem encontro? Anwar e Mustafá. Encantados com o encontro, convidam-me pra jantar com eles no hotel onde estão hospedados juntamente com o grupo de tchecos. Quando estou saindo da lan house, um pouco mais tarde, volto a encontrá-los e, pra minha surpresa, oferecem-me, de presente, uma camiseta com uma estampa do K2! Estou gamada por esse povo, mais bacana impossível! Já no hotel, escuto da varanda o rumorejar do rio Hunza competindo com os gritinhos de crianças que brincam nos pátios de suas casas e com o crou crou das gralhas pousadas nos galhos das árvores. Fantasio, nesta hora morta do entardecer (apesar dos meus 55 aninhos, sou, reconheço, convencionalmente romântica), quão bom seria se Ali, de repente, surgisse pra me levar pra Islamabad. Não num cavalo branco e sim numa van climatizada. Minha versão moderna do príncipe encantado.....huuummm.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Khunjerab National Park

Embora não chova, o dia amanhece, parcialmente, nublado. Vou conhecer o Passo Khunjerab e por isso saímos às 8:20 de Karimabad. A viagem segue pela onipresente KKH e durante um bom trecho do percurso colorem a paisagem os verdejantes terraços onde brotam plantações de cereais e verduras. À beira do rio Hunza, sucede-se um vilarejo após outro com suas rústicas casinhas de pedra ou adobe. Após duas horas de viagem, do outro lado do rio, destaca-se um impressionante conjunto de montanhas, denominado Passu Cathedral, cuja forma assemelha-se à de uma gigantesca igreja em estilo gótico. Conforme avançamos rumo ao norte, este colossal maciço rochoso ora posiciona-se bem à nossa frente ora à direita. À esquerda, passamos pelo glaciar Batura que, qual uma gigantesca impressão digital, borra de branco o cinza do terreno pedregoso. Entramos no Khunjerab National Park às 11 horas. Este parque, o terceiro maior do país, cujo trecho pertence à rota da seda, foi, no século XIII, percorrido pelo mercador veneziano Marco Polo em suas peripécias pelo continente asiático. Trata-se de um desfiladeiro de escarpadas montanhas acinzentadas por onde flui o estreito rio Khunjerab. À medida que nos aproximamos da China, o relevo suaviza-se, e ainda que ganhemos altitude, as montanhas não são tão empinadas quanto as de Hunza Valley. Já não é mais aquela paisagem áspera quando se entra no parque. Seus topos e encostas, quando não encobertos de neve, apresentam-se atapetados por uma veludosa camada de grama. Lembram, por mais absurda que seja a comparação, as coxilhas gaúchas. Agora, estou na fronteira com a China, numa altitude de 4.700m. Um marco escrito em caracteres chineses assinala o limite entre os dois países. Distante uns 400 metros, há um edifício de concreto (deve ser a aduana) onde no topo a bandeira vermelha, com suas cinco estrelas amarelas, tremula ao vento. O céu, cinzento de nuvens, não deixa entrever qualquer rasgo de azul. Um frio horroroso. Chove e neva. Meus dedos sem luvas ressentem-se doloridos. A coloração do rio Khunjerab de bege passou a verde clara. Um grupo de jovens estudantes paquistaneses, também em visita ao lugar, pede pra tirar fotos comigo, um de cada vez: são três. Siddique, sorridente, nos clica pacientemente. Eles, não contentes, exigem nova foto, dessa feita, nós quatro juntos. Na volta, peço para pararmos (estou apertada pra fazer xixi) e descubro, observando Aqbar acocorado, um pouco mais além, que os homens, quando vestem as roupas típicas, fazem xixi igual às mulheres! Hahahahaha.....essa é boa! Meio cochilando, me dou conta de que o carro abandonou a KKH e sobe por uma estradinha de terra. Siddique avisa que vamos conhecer o lago Borith onde há um restaurante às suas margens. Pedimos chá com leite e ficamos, por uns 45 minutos, curtindo a paisagem, já totalmente desanuviada, revelando um céu azul claro. Já na van, rumo a Karimabad, Siddique ordena a Aqbar que estacione junto à beira da estrada onde um homem vende damascos secos. O guia oferece-me e eu provo: são uma delícia. Chegamos em Karimabad às 18 horas e minhas pernas doloridas - também pudera, um tempão paradas - exigem, urgentemente, exercício. Assim, me toco pra lan house. Nem dez minutos lá, checando meus emails, e, ploft, apagam-se os computadores. O atendente, um magrinho de fala melíflua, corre esbaforido de seca pra meca, tentando resolver a situação. Solícito, vem até minha mesa e avisa que em 5 minutos tudo se solucionará (dessa vez não foi corte de energia, garante, mas o gerador que pifou, acrescenta, fazendo um ar condoído). Após o retorno da luz, ele encosta-se à minha mesa e, juntando as mãozinhas em prece, suplica, revirando os olhinhos, que eu escreva, sei lá prá quem - às autoridades (?) (continuo não entendendo lá muito bem o inglês dos paquistaneses) - para que invistam mais no setor energético ao invés de nas bombas atômicas. Ontem, ele já protagonizara uma cena meio bufonesca (tive de me controlar pra não cair na risada) quando, pra reforçar que sesteara após o almoço, teatralizou a cena (!), juntando as palmas das mãos e colocando-as, ato contínuo, delicadamente, sob uma das orelhas. Uma figuraça ele!! Desisti de continuar escrevendo meus emails porque novo corte se impôs 10 minutos após o primeiro. Como o atencioso homenzinho não tinha troco, avisou que eu poderia pagar amanhã quando retornasse à loja. O gentil homuncúlo é despreocupadamente confiante...que gracinha!

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Hunza Valley

O dia amanhece bonito e quente como todos os de minha estadia em Skardu. Eu sinto-me triste porque o melhor da viagem terminou: o maravilhoso trek e a convivência com os porters, admiráveis na árdua labuta de transportar, em suas costas, 25 kg de carga ao longo dos 12 dias de caminhada. Embora rudes e pobres, são gentis, alegres e respeitosos. Lamento, ainda, abandonar a boa relação que se criou entre mim e meu guia. Uma pena Ali não poder ir pra Karimabad, infelizmente, ele terá de coordenar três expedições, duas a Concórdia e uma ao Biafo e Hispar Glaciares, motivo pelo qual deve permanecer em Skardu. Ali, um homem inteligente e sensível, super atento, procurou dar o melhor de si pra tornar minha viagem a mais agradável possível. Ontem à noite ele deu-me uma linda echarpe de lã, bordada com pequenas aplicações de pedrinhas brilhantes. E convidou-me para jantar no melhor restaurante da cidade! Nós disfarçamos nosso desânimo diante da separação e tentamos criar um clima alegre, o que não colou: soou forçada a tentativa. Eu sentia algo mais que um sentimento de camaradagem entre nós mas não sabia precisar exatamente o quê. Então falamos banalidades aguardando que o outro tomasse a iniciativa de dizer......sei lá o quê! Às 8:20, o ronronar do motor da van, no páteo do hotel, anuncia a iminente partida. Pespego um forte abraço em Ali e sopro-lhe um beijo de dentro do carro. Adeus....Ali.Tenho agora um novo guia, Siddique. O motorista, Aqbar, é o mesmo que me trouxera a Skardu há 16 dias atrás. O trajeto, na mesma perigosa estrada Skardu-KKH, dá a impressão de ser pior do que na vinda. Talvez porque meu estado de espírito não seja tão alegre. O tempo também não colabora: nublado e chuvoso. Abricós secam em cima de largas pedras bem como nos telhados de barro das casas. Siddique é simpático e bem educado, seu inglês é mais inteligível do que o de Ali mas...não é Ali. Umas duas horas antes de chegarmos a Karimabad, somos forçados a parar: um deslizamento de areia e pedras interrompe a estrada. Siddique informa que talvez demore cerca de uma hora. Tratores removem os entulhos, alguns engenheiros chineses, atarefados, passam de lá pra cá. Por falar em chineses, Siddique explica que a China é um grande parceiro do Paquistão. Segundo ele, o verdadeiro motivo de os Estados Unidos insistirem em procurar Osama no Paquistão, não passa de desculpa. Na real, os gringos querem mesmo é instalar uma base militar perto de Skardu a fim de monitorar aquele país. Em relação à Índia - comenta com um risinho -, o problema não são os indianos e sim seus governantes. Quanto ao Irã, acrescenta serem boas as relações entre as duas nações. Já com o Afeganistão, a dificuldade é administrar os milhões de refugiados que se instalaram junto à fronteira oeste de seu país. Nossa conversa ocorre, de pé, à beira da estrada, sob uma ligeira garoa, enquanto o trabalho de remoção dos detritos se processa mais adiante. Enfim, somos liberados a prosseguir e a longa fila de veículos começa a se mover. Paramos pra almoçar num restaurante situado em frente à magnífica Rakaposhi, uma linda montanha de 7.700 metros de altura, toda nevada. São agora 17 horas e já estou em Karimabad, capital de Hunza Valley, região situada à margem esquerda do rio Hunza. Do outro lado do rio, em sua margem direita, o vale é chamado de Nagar. Karimabad é uma encantadora vila verdejante abraçada por altíssimas montanhas cobertas de glaciares. Pertinho do hotel, descubro uma lan house a que se chega após subir uma inclinada ladeira. Estou eu lá batucando nas teclas do computador quando vejo adentrando a sala o grupo de tchecos conduzidos por Anwar e Mustafá. Dou beijocas em todos. Embora os europeus se mostrem divertidos com a recepção calorosa, retribuem, meio sem jeito, porém alegres, à minha efusiva saudação. Já os dois paquistaneses, encantados, demonstram toda sua satisfação e abraçam-me afetuosamente. Estão deveras felizes em me rever. Ao retornar ao hotel, a chuva recente que caíra, avivando os odores das abundantes plantas e flores que crescem ao longo das ruas, deixa no ar um cheiro de mato molhado. Gostoso demais esse cheirinho. O hotel está construído sobre uma colina e o cenário que tenho da varanda, onde há mesas e cadeiras confortáveis, é espetacular: as montanhas Rakaposhi e Diran, dignas de cartão postal. Infelizmente, não é possível visualizá-las com nitidez: algumas nuvens encobrem-nas parcialmente. Oxalá consiga vê-las em seu esplendor nem que seja no último dia de minha estada nesta encantadora vila.

domingo, 6 de julho de 2008

Lago Upper Kachura: o autêntico Shangrila

Ali, hoje, abandonou suas roupas de ocidental e veste shalwar qameez branco. O roteiro inclui visita a dois lagos: o Satpara e o Lower Kachura Lake, mais conhecido como Shangrila pois foi construído em seu entorno um complexo turístico chamado Shangrila Resort. Ali pergunta se Niaz pode ir conosco. Faço sinal para que ele se junte a nós dentro do jeep. O trajeto, curto, não dura além de uma hora. À entrada, cobram 200 rúpias (não dá 5 reais). Não entendo por quê, talvez pra impedir o ingresso dos paquistaneses pobres, já que esta quantia é significativa pra eles. Numa das pontas do lago, destaca-se um edifício de estilo pagode, nítida influência chinesa: é o restaurante e pode ser freqüentado também pelos não-hóspedes. O local é bem cuidado, gramado impecavelmente aparado, variedade de flores colore os canteiros, destacando-se rechonchudas rosas. Amplos chalés com varandas. Arrisco uma espiada pro interior de um deles, decorado com móveis de madeira escura, pesadões, sóbrios. A decoração de interiores aqui no Paquistão não é lá das mais atraentes, tudo de gosto....hummmm....meio duvidoso, vá lá, cafona mesmo! Shangrila é point no verão e os paquistaneses abastados adoram vir pra cá. Um bote singra as águas calmas do lago, conduzindo os remos um homem, vestido à ocidental; na popa, uma mulher e duas adolescentes, envergando as três shalwar qameez, conversam entre si. Uma elevação rochosa à borda do lago projeta sua sombra nas águas. Assemelha-se à figura duma colossal baleia. Caminhando nos jardins, um homem e duas mulheres, ambas vestidas de burkha preto. Elas lançam em minha direção olhares severos. Será porque não uso sutiã e tenho os braços desnudos? Só pode! Apesar de calmo, o lugar não me atrai. Já vi hotéis bem mais atraentes encravados em lugares mais belos. Contudo, pros paquistaneses, este lugar é considerado um deus nos acuda em termos de conforto e beleza.....enfim, cada um com seus gostos. Prefiro mil vezes o desconforto da barraca durante o trekking no Baltoro glaciar. Ali descobre, conversando com um segurança, o caminho pra outro lago, e lá vamos nós pro Upper Kachura Lake. Atravessamos uma ponte cujo rio, onde afloram enormes blocos de rocha, lambidos por céleres corredeiras, exibe esverdeadas e límpidas águas. À volta, montanhas e mais montanhas. Chegando à vila de Kachura, o jeep pára, e observo a conversa animada entre o motorista e alguns aldeães. Intuo que estão falando de mim. Não dá outra. Ali, meio constrangido, explica que tenho de cobrir os braços, não os permitem desnudos (olha só: e estou com camiseta de manga curta!). Prevenidamente, carrego sempre na mochila uma camiseta de manga comprida caso esfrie. Visto-a e somos liberados. Passam por nós algumas vans onde no tejadilho vão aboletados alegres passageiros. O 4x4 segue através duma estradinha de chão batido muito safada. Sacolejos inevitáveis durante o trajeto que se desenrola entre plantações de trigo já maduro pincelando de dourado a paisagem. Secam, sobre enormes pedras, damascos recém colhidos. O jeep pára e descemos. Enveredamos por uma estreita senda cercada em ambos os lados por altos muros de pedra. Adiante, algumas casas toscas, também feitas do mesmo material. Pra mim tudo é pitoresco, mesmo a pobreza das construções. Árvores e mais árvores de damasco vergam ao peso dos frutos cuja coloração alaranjada empresta um ar alegre ao dia cinzento. Desce-se por uma trilha íngreme em meio a uma luxuriante vegetação, árvores verdíssimas, flores silvestres de delicadas pétalas, e lá embaixo, esplendorosas, as águas azul turquesa do lago fazem com que eu solte exclamações deliciadas diante de tanta beleza. Esse lugar, sim, é um genuíno Shangrila! O gerente do lugar, muito gentil, informa que é permitido o banho. Sentados os três, lado a lado, cada um perdido em seus pensamentos, lá nos quedamos durante um tempo a contemplar a tranqüila e sedosa superfície azul-esverdeada do lago Upper Kachura. Não muito distante, à beira de um pequeno cais, curto a animação de um bando de garotos mergulhando e chapinhando dentro d’água. Seus gritinhos de prazer chegam até mim abafados. Tão bucólico tudo isso! Subimos de volta ao restaurante de onde se descortina o lago. Simples, o recinto é triacolhedor com cadeiras e mesas de vime cobertas com toalhas vermelhas. Uma agradável surpresa no cardápio: trutas. São trazidas cruas para que eu escolha a quantidade e tamanho. Ali sugere encomendar apenas dois pedaços. Uns vinte minutos de espera, e eis os peixes inteiros e grelhados soltando fumacinha. Mal espero esfriar, dou uma assoprada e mastigo, faminta, tal pitéu. Ali, ao ver que eu deixara de lado a cabeça, nem hesita, devora-a com olhos e tudo, fazendo cara de satisfação.....uiiii!!! Niaz, envergonhado, quase não come nada. Dá como desculpa uma dor de cabeça. Eu tenho cá com meus botões que o coitado, percebendo a pouca quantidade de comida, inventou a tal enxaqueca de modo a que não faltasse peixe pra nós. Eu não deveria ter ido atrás de Ali e ordenado dois ou três pedaços a mais de peixe. Para acompanhar, sabem o quê? O nosso indefectível chazito com leite (foi a única vez que senti falta de beber um vinhozito branco bem geladinho. No mais, a proibição de ingerir bebidas alcoólicas nem tem deixado saudades. E olha que curto uma birita!). De sobremesa, abricós colhidos do pé da árvore. Terminada a refeição, vamos conhecer o lago Satpara. O balneário não se mostra tão atraente quanto o de Upper Kachura. No jardim, à beira de suas águas, igualmente, azul-turquesa, há mesas e cadeiras onde o povo curte o domingão. Lamento, ao ser informada, que a construção de uma colossal represa, já em adiantados trabalhos, determinará a extinção desse atrativo turístico. A finalidade é sanar o precário sistema de energia elétrica da região onde ocorrem freqüentes cortes de luz quando menos se espera. O tempo continua nublado e agora venta bastante. Bate uma fome e peço chá com leite e biscoitos. Três homens, sentados à mesa ao lado, pedem licença e sentam-se à nossa. Um deles é professor. Está curioso e deseja conversar comigo sobre a Amazônia, as cobras, América do Sul, qual língua é falada no Brasil. Questiona, lá pelas tantas, se as cobras andam soltas nas ruas, hahahahaha. Essa é boa!! De volta a Skardu, após Ali me levar numa loja para eu comprar cd de música balti, vou numa lan house checar meus emails. Fico lá durante duas horas escrevendo pros amigos rodeada de....moscas.....arghhh!! E de quebra, uma trilha sonora animal: o mugido de uma vaca, alojada no estábulo, situado bem ao lado da loja onde estou. Com vontade de urinar, pergunto ao atendente se há toalete. Ele indica um a 50 metros, no piso superior de uma casa mais adiante. Acho tudo muito estranho mas vou lá. Estou eu arrumando minha mochila, já me preparando para descer quando vejo Ali e Mussa ao pé da escada me procurando. Ele havia ido à loja da internete me buscar porque está chovendo. E de carro! Tudo pra eu não me molhar! Não é um amor este homem?

sábado, 5 de julho de 2008

Jogo de pólo em Skardu

Quando acordo, já há movimento no camping. E olha que são 5:45. Assim acontece porque, como nós, os tchecos, também, retornam a Skardu a fim de curtirem os lagos Shangrila e Satpara. Aquela azáfama típica de desarmar acampamento toma conta do lugar. Cada porter cumpre sua função: alguns dobram as tendas, uns lavam louça e outros ajeitam toda tralha nos tonéis....enfim, uma excitação agradável de fim de festa, e de uma festa que foi boa. Os tchecos estão, eles próprios, desmontando suas barracas. Seu esquema de viagem, bem independente, reduz em muito as despesas. Contratam guia porque é obrigatório, prescindindo, porém, dos serviços dos porters pra carregarem mochilas, barracas e comida. Eles levaram e carregaram todo o equipamento em suas mochilas cargueiras durante o trekking de 12 dias. Acabaram se revelando pessoas muito agradáveis. Ainda há pouco, o mais velho do grupo protagonizou um strip tease relâmpago e revelou, de quebra, detalhes curiosos de sua indumentária ou falta dela: enquanto trocava o pijama (usou, pijama, sim, pra dormir!) pela calça, mostrou, de relance, sua bunda branca porque não usa cueca...... hahahaha. Foi muito hilária a cena! A essas alturas Anwar e Mustafa ficaram muito meus amigos. Anwar, inclusive, deu-me seu cartão pra desgosto de Ali, que não gostou de ver o outro guia me oferecendo seus serviços. Despedimo-nos, dando bye bye, alegremente, e embarcamos em nossos respectivos jipes. Ali, no início da viagem, não conseguia pronunciar meu nome corretamente, chamando-me de Bitriz. Nem tentei corrigir. No decorrer do trekking, comentei do meu apelido, Bia. Foi o que bastou pra eu ser chamada de Biá, de pronúncia mais fácil. Partimos de Askole às 8:15. A viagem pela estrada cheia de curvas, beirando os alcantilados acima do rio Braldu, embora eu já a conhecesse, continua a me provocar calafrios de medo. A carroceria do jipe, além da bagagem, transporta bem mais de 10 porters. Todos suportam, bravamente, a poeira e o calor que se torna mais intenso à medida que a manhã avança. Depois de duas horas de viagem, somos forçados a descer do jeep: novo desmoronamento de terra bloqueia a estrada. A travessia é qualquer coisa de perigosa. Temos de caminhar por uma empinada encosta de morro que mal comporta um pé. Ali segura minha mão e só diz "no problem...no problem" enquanto ergue a cabeça pra se certificar da firmeza do terreno acima de nossas cabeças. Deduzo que pode, a qualquer momento, ocorrer novo deslizamento.....ai meu Jesus! Caso houvesse acontecido, iríamos todos ser soterrados, despencando naquele rio repleto de pedras enormes e correnteza fortíssima, situado 40 metros abaixo. A essa altura, arrisco só um olhar, rápido, em direção ao rio e percebo suas águas turbulentas e vorazes me espiando guloso. Fico assustada mesmo. Graças a Alá, deu tudo certo, e chegamos sãos e salvos ao outro lado da estrada. Embarcamos num novo jeep e lá vamos nós estrada afora, viajando durante uma hora até que fazemos uma pausa para almoçar no mesmo restaurante da ida. A comida, apetitosa, consiste em arroz bem soltinho, pedaços de galinha com farto molho de tomate, feijão ensopado (bem diferente do nosso, o grão, miúdo e redondinho, é amarelo-claro) e nan saído do forno, ainda soltando fumacinha. Devidamente alimentados, embarcamos no carro e continuamos a viagem. Paramos, então, no mesmo posto do destacamento militar onde eu vivenciara todo aquele horror devido à falta de meu passaporte. O mesmo oficial, que me atendera, vem, amavelmente, me cumprimentar e pergunta "are you glad?" Respondo, alegre, com muitos yes. Ele convida para um chá, recuso, agradecendo com efusivos “Shukuriya”. A viagem prossegue e atravessamos, agora, um vilarejo após outro, onde plantações de trigo exibem suas altas espigas, algumas bem douradas, prontas pra serem ceifadas. Quando alcançamos Shigar Bazaar, Ali ordena ao motorista que estacione em frente dum restaurante onde entramos para degustar um chazinho. Situado às margens do rio, sentamos, abrigados do sol, no interior duma construção arredondada de vime (lembra uma oca), bebericando nossas bebidas. Lugarzinho agradável este! Chegamos em Skardu às 14:45. Após tomar banho e retirar os 2 kg de areia dos cabelos, vamos, eu, mais Ali, Muhammad e Niaz a uma confeitaria. Não saio daqui sem antes provar os docinhos típicos que tanto chamaram minha atenção quando da minha passagem anterior pela cidade. O lugar, pequeno e escuro, comporta apenas quatro mesas. Os doces (gordurosos, insossos e açucarados demais, me desapontam) são trazidos num pratinho forrado com......jornal velho! O mesmo se passa quando, após o término da partida de pólo à que assisti no Maqpon Polo Ground, provo um grão de milho torrado, e o petisco vem envolto num cone feito com.... jornal velho! Coisas do Paquistão. Muito legal o jogo de pólo: no estádio, enorme, só há espectadores masculinos, uma charanga toca música durante o tempo todo; no intervalo, crianças são colocadas em cima dos cavalos e puxadas pelos adultos pra lá e pra cá dentro do enorme campo. No retorno ao hotel Mashabrum, escoltada por Niaz e Muhammad, convido-os pra beber um refri. Sentamos no páteo e lá ficamos apreciando as montanhas banhadas por aquela luz indecisa de final de tarde. A lua, agora, em sua fase decrescente, é apenas uma fina marca prateada no céu azul despido de nuvens. Niaz, à despedida, recomenda, atencioso, que não devo sair à noite. Ao entrar no hall do hotel, um empregado da recepção pergunta se consinto em ser fotografada. E lá vou eu posar ao lado de um bonito rapagão, acomodados ambos em cadeiras de vime. Sei lá quem ele é e qual a finalidade a ser dada à fotografia. Estou em tal estado de graças que aceito tudo o que me propõem. Agora já deitada, 21 horas, escuto batidas à porta. É o encarregado do andar, trazendo o cardápio pra que eu escolha meu jantar (tão gentis, adoro todos!). Recuso e digo-lhe que estou “very tired”. Pego no sono, embalada pelo ruído crepitante do vento a agitar os galhos das árvores no jardim.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Que peninha: o trek acabou!!

Nos toaletes os vasos sanitários estão sujíssimos de cocô....um nojo......arrrghhh! Tão fedorentos esses acampamentos que prefiro descolar um recanto atrás de uma pedra. É mais limpo e sem moscas zumbindo ao redor da bunda. O dia, belíssimo, céu praticamente sem nuvens, a não ser alguns fiapos esbranquiçados ao redor dos picos. Saímos de Jhola às 6:30. O trajeto é fácil, poucas subidas e descidas. Numa travessia de rio, Youssuf me livra dum tombo dentro d'água. Estou eu pulando as pedras para atingir a outra margem quando me descuido e me desequilibro. Ele, sempre, atento, rapidamente, me pega pela alça da mochila, impedindo que eu me estabaque de cara nas pedras. Estou bem cansada, dá pra sentir a ressaca da jornada. Também, pudera, estou caminhando há 12 dias, num total de 174 km! Caminho sem pressa. Quero curtir, serenamente, meu último dia de trek. Os demais passeios daqui pra frente serão todos de carro. Como havíamos combinado, não paramos pro almoço, de modo a chegar cedo em Askole, evitando, assim, a exposição demasiada à canícula do meio dia. Faço, entretanto, uma pausa e tiro da mochila meu lanchinho. Youssuf, meu fiel escudeiro, rente que nem um pão quente, descansa ao meu lado. Ali e Niaz seguiram à frente. Terminada a refeição - barrinha de proteína e água - ponho a mochila nas costas; Youssuf pega a sua, e reiniciamos a caminhada. Cadê os dois...Ali e Niaz? Nem rastro deles. Um tanto de caminhada feita, eu, já intrigada, pergunto aos meus botões, onde se tinham socado eles. Eis que, escuto às minhas costas, uns relinchos de cavalo. Viro e não dá outra: é Ali, brincando comigo! Lá pelas tantas, emparelha conosco um homem de porte empertigado, bigodinho fino, bem aparado, vestindo o shalwar qameez, com uma mochila nas costas. Ali e o homem se põem a conversar, caminhando um pouco à frente de mim e Youssuf. De vez em quando, o homem vira pra trás e lança um olhar carrancudo em minha direção. Pergunto pra Ali quem é. Fico sabendo que cria cavalos, já foi do exército e está indo visitar sua namorada numa vila perto de Askole, sente saudades da moça. Detalhe: é casado. No Paquistão os homens podem ter até quatro esposas desde que tenham condições de sustentá-las. Embora morem juntas, cada uma ocupa dentro da casa um espaço próprio. Provavelmente, por uma questão de privacidade na hora da transa e também pra evitar brigas por ciúmes. Um pouco antes de Askole, avisto, na margem oposta do rio Braldu, duas vilas. Plantações de batata e feijão colorem de verde os terraços situados nos sopés das montanhas. Ali me mostra uma linda e imponente elevação com o cume coberto de neve: é Skoro Pass cuja travessia conduz a Shigar Bazaar, vila onde demos uma paradinha quando vimos pra cá. É possível fazer um trek até lá, dura 3 dias. Imagino que deva ser muito lindo. Todos os porters e guias usam echarpe. Esta peça do vestuário tem várias utilidades: serve de turbante para proteger do sol, cachecol e balaclava contra o frio e, mais, usam-na como lenço pra assoar o nariz. Mil e uma utilidade, hehehe. Já perto de Askole, à esquerda, surgem fileiras de árvores sombreando o caminho e muros de pedra protegem as plantações, enquanto à direita sobressai o colorido levemente ferruginoso dos empinados paredões de rochas gnaiss. Vejo Ali pulando uma cerca e, curiosa, imito-o. Ele senta-se à sombra duma árvore e ficamos, escarrapachados, na boa, fumando um cigarrinho. Tão bom o “silêncio” do lugar: o rumorejar distante do rio, os fracos balidos de ovelhas e cabritos e o trinado dum belo pássaro preto e branco soam agradavelmente aos meus ouvidos. Chegamos às 12:15 em Askole e nos instalamos no mesmo lugar onde acampáramos na vinda. Um bando de aldeães, curiosos, aproxima-se. É muito engraçado porque eu também nutro idêntica curiosidade por eles. Acocorados no chão, limitam-se apenas a observar a nossa movimentação. Pra eles, a chegada das excursões deve constituir uma das raras fontes de diversão a quebrar a existência monótona de suas rotinas diárias. Enquanto almoço no interior da barraca-refeitório, escuto o canto do moazin, ecoando pelos quatro cantos da vila. Chama os fiéis pra oração na mesquita. Porque hoje é sexta-feira! O calor dentro da barraca está insuportável, saio e sento, encostada ao muro da construção inacabada. Chegou ainda há pouco o grupo dos tchecos que se encontrava em Paiyu, de modo que estamos todos à sombra, conversando. Dois deles já estiveram na América do Sul. Mustafa, um jovem magrinho, assistente de Anwar, guia dos tchecos, exibe, faceiro, seus bíceps. Quer que eu os toque pra sentir como são duros. Não satisfeito, levanta-se e faz acrobacias numa evidente demonstração de exibicionismo infantil. Pois não é que o guri está arrastando asa pra mim....hahahaha! Muito gozado ele! No pórtico de entrada, noto quatro mulheres, paradas, olhando pra cá. Vou até elas. Fazem sinal pro meu relógio. Querem trocá-lo por seus brincos. Essa é boa!! Escaldada que estou com a insistência dessa gente, me despeço delas e sigo até uma plantação onde me agacho pra urinar. Uma das mulheres, que lá estão colhendo ervas, a cada vez que solto exclamações e gemidos de satisfação por estar esvaziando a bexiga, me imita, dum jeito debochado. Hahahahaha!! Essa é boa! São deveras divertidos os baltis. Embora sejam 18:00 o calor, ainda forte, se faz sentir. Somente quando o sol baixar e desaparecer atrás das montanhas, irá refrescar. Por enquanto, visto apenas short e blusa de manga curta. Pombas e gralhas passam voando. Quando eu conto a Ali que algumas mulheres me pediram dinheiro, ele faz um muxoxo de desagrado. Coisas do Paquistão? Nãnãnãnã....de todos os países pobres, incluído, aí o meu querido Brasil.

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Infidelidade à paquistanesa

Ali me acorda às 5:30. Como é horário de verão, uma hora a menos, na real são 4:30. Ainda está escuro. Devemos partir cedo porque, conquanto estejamos a 3.400 metros, o calor ficará infernal por volta do meio-dia. Quanto mais cedo chegarmos a Jhola, menos tempo caminharemos sob o sol inclemente do início da tarde. O jornalista francês e o guia amigo de Ali vêm se despedir. Este guia ontem à noite me fez dar boas risadas. Muito engraçado o cara. Entrou na barraca e deitou-se à vontade sobre os tapetes e, com uma mão apoiando a cabeça, (lembrava a versão masculina de uma odalisca, o bem humorado gorducho), começou a conversar em urdu com os companheiros. Depois, em atenção a mim, passou a falar em inglês. O papo versava sobre a dificuldade de os porters fazerem suas orações diárias - cinco vezes ao dia - quando estão trabalhando nas expedições. Para que não se afligissem, receitou “When you come back to Skardu, you can pray six or seven times in a day!” finaliza ele com um sorriso maroto. É aquela risada! Piadinha de paquistaneses, hehehe. Explicou pra mim que não é só devido às fendas abertas no Gondoghoro La que a passagem está proibida, mas também porque os porters não têm roupas e calçados adequados. "Look at those shoes", aponta ele "they are made of plastic, it’s very hard for them to walk over the ice with these kind of shoes". Saímos às 6:45 de Paiyu. Realmente, é um belo camping com sua generosa vegetação. As elevadas montanhas que se dispõem em ambas margens do rio Braldu, algumas com cumes nevados e fiapos de nuvens ao redor, projetam suas sombras no vale, protegendo-nos do efeito inclemente dos raios solares. Uma paz este lugar. A caminhada dura mais de 7 horas e, durante o trajeto, encontro uma expedição indo pra Concórdia. O dia lindo, com nuvens esparsas, está de fritar miolos. O tráfego de mulas e porters é intenso nos dois sentidos do percurso. A temporada de turismo promete bastante trabalho neste verão pros paquistaneses. Muitos dos escaladores estão vindo do Nepal, devido ao início do período das monções naquele país. Com as chuvas, se torna impossível continuar a escalada nas montanhas nepalesas. Chegamos a Jhola às 14:00. O local, ao contrário de quando aqui estivera, indo pra Concórdia, se encontra lotado de expedições. Identifico duas: uma espanhola e outra francesa. Seus membros são, pra variar, escaladores. À tardinha, o céu deixa entrever seu azul, camuflado, aqui e acolá, por espaçosas nuvens brancas à semelhança de gigantescos flocos de algodão. O sol já se pôs detrás das montanhas e o vento sopra com certa intensidade. Há um rio, bem em frente a minha barraca, de margens próximas uma da outra, cujo leito, embora pedregoso, como os demais, apresenta um vau que facilita a travessia de animais e pessoas. Alguns porters lavam louça. Um paquistanês aproxima-se da margem, com uma galinha segura pelas asas, tira um facão do cós da calça e degola, com um golpe certeiro, o bicho que permanece se debatendo mesmo após morto. O sangue escorre por entre as pedras, ele lava a ave, descuidadamente, e dirige-se a uma construção de pedra onde (fico sabendo depois) moram o proprietário do camping e seus filhos, um dos quais é o tal matador da galinha. Muhammad, Niaz e Mussa, sentados do outro lado do rio, refrescam os pés. Alegres, conversam, animados entre si. Quando percebem que estou com a máquina apontada pra eles, ajeitam-se para posar. Ali, já conhecedor de certos gostos meus, quando viu a porta da barraca voltada pra outra tenda, ordenou aos porters que a virassem, de modo a que eu pudesse contemplar dois impressionantes contrafortes de montanha que se unem, despontando entre eles, ao fundo, a ponta de um pico coberto de neve...não é um fofo esse guia? E um tremendo cara de pau também! Escutem essa: numa das muitas conversas entretidas com ele, comentou que as mulheres das aldeias são relaxadas porque pouco se lavam. Enfatiza, com gestos de mímica, o colarinho de sujeira ao redor de seus pescoços. "Have you already seen it, Biá?" pergunta ele enojado. Invoca tal desculpa - dá pra acreditar nessa?! - como justa causa da infidelidade. Mas, bah, valha-me deus, esses homens e suas justificativas esfarrapadas. O que não inventam pra dar seus pulinhos fora da cerca, hein?!

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Só as moscas me querem!

O dia apresenta-se esplêndido quando acordo às 6 horas. Tão-somente, algumas nuvens, aqui e acolá, dispersas no céu. Levantamos acampamento e, às 7:50, já estamos na trilha rumo a Paiyu. O porter, cujo nome é Youssuf, continua atrás de mim. Numa das paradas que faço pra fotografar e filmar, arruma a bainha de minha calça, pode?! Fico embaraçada com tanta dedicação. Nem sei o que dizer. Hoje de manhã, o coitado, quando nos preparávamos pra sair de Khaburse, me pediu novos band aids. Como os meus já haviam acabado, nem hesitei, fui à barraca de Anne e expliquei a situação. Ela, gentilmente, cedeu-me quatro daqueles curativos. Desde que deixamos Khaburse, sinto meu peito apertadinho, apertadinho. A beleza da paisagem e a bondade das pessoas vêm me tocando profundamente. Lá pelas tantas, não resisto mais, lágrimas incontroláveis afloram de meus olhos e, sem pejo algum, deixo o pranto rolar. Fico, assim, chorando, com a testa apoiada entre os joelhos até esgotar toda a minha emoção. Niaz, Ali e Youssuf quedam, atônitos, sem, contudo, se aproximar. Refeita, tranqüilizo-os: “I am crying because I am very happy”. Vejo alívio em seus rostos. No meio do caminho, uma agradável surpresa: encontro um casal de brasileiros!! Os primeiros e únicos durante o trek. Pergunto seus nomes: Helena e Paulo Coelho. Estão indo pra Concórdia e, conforme informa Paulo, talvez tentem o Broad Peak. Acompanham-nos dois escaladores portugueses. Um deles, tem o nariz todo detonado, provavelmente, resultado de congelamento. Ao apertar sua mão, dou falta de um dedo, o mindinho (quando retorno ao Brasil, ao ler notícias sobre quem teve sucesso nesta temporada de escalada, no Paquistão, descubro que ele é nada mais nada menos que o famoso João Garcia, um dos raros escaladores a fazer o cume do Broad Peak em 2008). Foi muito bom poder falar português. Uma lástima, o encontro ter sido tão breve. Enfim, cada um de nós seguia em sentidos opostos. Às 10 horas, paramos para almoçar. Constato que, agora, na finaleira do trek, a ração servida já não é tão variada. O básico é composto sempre de sopa (de pacotinho), paratha ou chapati. Hoje o complemento é atum, mais geléia. E chá, sempre muito chá. Esta bebida nunca escasseia, podem crer! Estranho o intenso movimento de helicópteros. Primeira vez que vejo tal aeronave sobrevoando os céus. Ainda há pouco, dois voavam rumo a Concórdia. Será que aconteceu algo por lá? Nunca se sabe quando o esporte  é escalada, ainda mais em montanhas com elevados índices de risco como GII, GI, Broad Peak e K2. O trajeto Khaburse-Paiyu não é difícil porque praticamente é só descida. O mais difícil de todos foi justamente Paiyu-Khaburse, devido às constantes subidas. O calor é deveras bem-vindo depois de três dias de frio, neve e chuva. Youssuf, não larga do meu pé. Continua colado em meus calcanhares. Lembra aquelas mães diligentes que amparam seus filhos, de modo a evitar que caiam, quando iniciam a dar os primeiros passos. Pois meu sombra porta-se assim comigo. De uma solicitude como nunca vira na vida, o cara é prestativo mesmo. Chegamos em Paiyu às 13:50. Um romeno bem interessante aproxima-se pra conversar. Conta que pertence a uma expedição cujo objetivo é o G1. Além dessa, há outra expedição formada por três mulheres e dois homens. Uma delas, embora feia, atrai os olhares dos porters cada vez que passa pra lá e pra cá. Também pudera: veste short, revelando pernas fortes e depiladas. Não sei se são trekkers ou escaladores. Pretendo, assim que surgir uma oportunidade, perguntar. Na frente do camping, há uma base das forças armadas de onde decolam os helicópteros. Cumpre registrar que, ao longo do trajeto Askole-Concórdia, há mais quatro dessas guarnições militares: Concórdia, Goro I, Urdukas e Korophon. De fato, o país é deveras militarizado. Não demora muito e minha curiosidade sobre o tal grupo é satisfeita quando desço à zona dos toaletes e encontro a tal feiosa que se lava, energicamente, na pia contígua à minha. Não deixo passar em branco tal oportunidade, é claro, e tasco a clássica pergunta “Where are you from:” São tchecos. Ela é professora e retornam, também, de Concórdia. Conta-me que escala paredes de rocha em seu país. Acrescenta que prefere ser a segunda na cordada porque não se sente segura o suficiente pra liderar a enfiada. Aqui no Paquistão, entretanto, veio só fazer trek. São 16:30, o acampamento encontra-se na santa paz. Um porter corta, com esmero, o cabelo de outro cujos ombros estão protegidos, caprichosamente, com uma toalha. Conversas em tom de voz baixo. Alguns jovens passam por mim e me encaram, curiosíssimos - mais ainda do que habitual - pois pendurada, num galho de árvore, está a secar uma calcinha. Primeiro, a tcheca feia, de pernocas de fora, agora eu, de meia idade e sem sutiã, secando as calçoilas ao ar livre. Os baltis estão, se não intrigados, excitados....sei lá, nem quero saber. Prefiro contemplar as marcas prateadas deixadas pelas águas de degelo nas encostas das montanhas à minha frente. Enquanto estou apreciando o vale lá embaixo, aproxima-se pra conversar um jornalista francês cuja especialidade é a cobertura de expedições. Está indo pro Broad Peak onde alguns escaladores, seus conterrâneos, já lá se encontram. Esteve nesta região há 15 anos e contabiliza cinco visitas ao país. Numa delas, cobriu um terrível terremoto ocorrido já há alguns anos. “It was awful”, comenta com ar triste. Despedimo-nos amigavelmente. Ali sugere que, em vez de descansarmos aqui mais um dia, retornemos a Skardu. Assim, posso conhecer, argumenta ele, dois belos lagos nos arredores daquela cidade. Considero uma boa idéia e dou sinal verde pra partirmos amanhã. Depois de 5 dias sem banho (sei lá, se não é por isso o assanhamento das moscas ao meu redor), chamo Mussa e lá vamos nós rumo aos toaletes. A água, muito fria, não me impede, entretanto, de lavar os cabelos. E o trek quase terminando....merda!!