Como o tempo ontem não permitira que eu visse os cerros situados no valle del Francês, decidi que não iria fazer hoje a trilha até o glaciar Grey, motivo pelo qual não retornarei mais com Daniel, no dia seguinte, a Puerto Natales, permanecendo até sexta-feira aqui no refúgio Paine Grande. Decisão tomada, deixamos o refúgio às 9 horas refazendo a mesma trilha por onde havíamos caminhado no dia anterior: de um lado, o pequeno e tranqüilo lago Skottsberg cercado de lengas e ñires, do outro, a face sudoeste do cerro Paine Grande, e, à frente, os Cuernos Norte e Principal. Observo que um tiuque, ave de rapina tipo falcão, vem em minha direção ti
rando um rasante sobre minha cabeça, chego até a levar um sustinho da arremetida imprevista da ave. Cruzamos a balouçante ponte de arame sobre o nervoso rio do Francês para, logo em seguida, entrarmos nos encantadores bosques repletos de nothofagus cujas folhagens colorem a paisagem em tons de amarelo e vermelho. Caminho sobre um chão atapetado de folhas e cascas de faias, admirando troncos de árvores despencados no chão enfeitando-o com suas brancas cascas sedosas. O solo em alguns pontos apresenta-se coberto da neve que ontem caíra. Rodeada de tanta beleza, suspiro enlevada. Do acampamento Italiano até o mirador do glaciar do Francês, a trilha é bem íngreme, um aclive puxadinho. Dali em diante, torna-se mais suave e, praticamente, só se percorrem bosques. Apesar de o vale ainda continuar bem nublado, a visão do monumental Paine Grande e do glaciar del Francês é perfeita. Ocorrem freqüentes desmoronamentos de neve cujos ruídos tonitruantes soam como trovões anunciando tempestades iminentes. Ora, todo esse barulhão, o céu pesadamente encoberto por nuvens cinzentas, a neve despencando em avalanches cerros abaixo, provoca-me uma sensação, não sei bem, se de medo, se de desamparo. Talvez ambas, diante da força inexorável desta estupenda e indiferente natureza, que está nem aí pros meus temores.
E lá vou eu atrás de Daniel já liberta desses tolos receios, curtindo com plenitude aquela esplendorosa paisagem colorida de branco, verde, amarelo, vermelho e cinza, quando uma nevasca mais forte que a do dia anterior nos pega um pouco antes de nós alcançarmos o acampamento Britânico. Não resisto e inicio a filmar os grandes flocos de neve que caem suaves e silenciosos sobre as árvores e a terra. Putz grila, bonito demais, muiiito muiiito lindo o que está acontecendo: eu, vivendo a cores e ao vivo o que até então só havia visto em filmes! Logo chegamos num abrigo de lona improvisado onde já se encontram um casal de italianos, um chileno e um escocês, todos jovens, comendo seus lanches. A neve continua a cair em grande quantidade deixando cada vez mais branco tudo ao redor. Tá na cara, na minha, é óbvio, que sou a mais deslumbrada de todos ali, afinal, as demais pessoas estão acostumadíssimas a vê-la em seus países de origem. Deixamos o acampamento Britânico assim que a neve estia e, por bre
ves momentos, as nuvens dão uma trégua, fazendo com que eu possa avistar os cerros Punta Catalina, Fortaleza, Cabeça de Índio, e, ulálálá, o Máscara, Hoja e Espada, fotografando-os louca de contente. Cercada por esta fantástica muralha de rochas, sinto-me pequena e forte, não me arrependo de haver retornado ao vale. É lindo, muiiiiito liiiindoooo. Não paro de suspirar......de felicidade, é claro! O dia cede lugar à noite e nós ainda na trilha, o silêncio absoluto só é quebrado pelo ruído de nossas botas pisando a trilha. Peço a Daniel que não acenda a lanterna. Tão bom curtir os últimos vestígios de claridade, as sombras caindo sobre a paisagem até que a escuridão impere em definitivo. Muito bacana tudo isso! Às 20 horas, entramos no refúgio, eu com as calças e as botas um tanto quanto molhadas da garoa que nos perseguiu desde o acampamento Italiano, já Daniel, porque usa as roupas corretas pra este tipo de clima, sequinho. Não dá nada, não, tô nem aí, tomo um banho bem quente e vou jantar. Compro uma garrafa de vinho pra temperar a refeição sem graça, afinal, Daniel e eu havíamos caminhado 11 horas, e fizemos por merecer. Sabe bem um vinhozito, o relaxante ideal para mimar nossos doloridos músculos do corpo. Tintim!



Nenhum comentário:
Postar um comentário