sexta-feira, 28 de abril de 2023

Trilha do Mirante da Janela

Uma das boas coisas de morar em Palmas é a distância de certos lugares, por exemplo, menos kms pra ir a Brasília do que quando eu vivia em Porto Alegre. Gosto muito da capital federal, não só pelo seu ar cosmopolita acentuado pelos estrangeiros vindos dos mais diversos lugares do planeta pra servirem nas embaixadas, quanto pela modernidade arquitetônica criada por Niemeyer e Lucio Costa em contraste com o Brasil atrasado e pobre, representado por camelôs vendendo frutas e outras mercadorias expostas em bancas improvisadas ao longo de avenidas e ruas. Brasília tem um movimento de trânsito alucinante, especialmente pra mim já super acostumada com a pacata Palmas e seus 320 mil habitantes. Aproveitando o niver de Sonia e Jorge Otavio, primos queridos, vou a Brasília celebrar tão importante data já que ela fará 93 e ele 91 anos. Após passar uma semana agradabilíssima na casa de Laura e Ricardo, filha e genro do casal aniversariante, retorno pra casa antes dando uma passadinha na vila de São Jorge pois bateu vontade de fazer alguma trilha no PN da Chapada dos Veadeiros. Como sempre, escolho o Canto da Coruja um pouco afastado da muvuca da vila porque gosto do conversê de sua dona, Kelly Cristina. Ariana porreta, senhora de alta energia, tem prosa pra esta encarnação e quiçá a vindoura. Antes dou uma passadinha num empório pra comprar algumas cachaças feitas com frutos do cerrado. Compro 3 garrafinhas: uma de umburana, outra de baru e a terceira de mutamba que eu e Kelly matamos enquanto jogamos dominós com 2 de seus filhos. Dia seguinte, antes de pegar a estrada, vou fazer a trilha do Mirante da Janela que já ouvira falar. Fica numa propriedade particular do mesmo dono do Raizama, outro atrativo da região. A trilha inicia logo que se sai do estacionamento, passando por poços abertos por garimpeiros quando aqui ainda se exploravam as jazidas de quartzitos. Os poços, buracos verticalizados que devem ter uns 10 metros de profundidade, se não mais, atualmente se encontram desativados e cercados de gradis de madeira por motivos óbvios de segurança. Transcorridos 500 metros, chego na portaria onde um homem com cara de hobbit (sabe aqueles personagens do Senhor dos Aneis?) cobra os ingressos. Pago só 20 reais (pra quem não é coroa, o preço é 40 pilas), porque sou maior de idade (só nessa hora gosto de ser velha, só nessa hora).Tentando passar uma aura de descolado esotérico, o cara se mostra, na verdade, um baita pentelho, embora fale, naquele jeito manso a la hiponga, chavões tipo “sou da paz, take easy”, insinuando ser melhor que os outros, no caso, eu. Ai ai moço, me poupe. Não me contenho e dou um corte nele, dizendo que cada um tem seu jeito de viver. Além de ser bem educada, sou uma senhorinha de ½ idade, por isso não mando ele se foder, coisa que ele talvez esteja precisando. Só pra situar, Alto Paraíso na década de 70 atraiu pessoas que curtiram a autêntica era de Aquárius, cujos expoentes foram os hippies americanos. Muita gente naquela época aderiu, sinceramente, a esse movimento cultural, porém outros nem tanto: apenas a estética esvoaçante, a liberdade sexual e a maconha foram incorporadas às suas vidas. Talvez a proximidade com Brasília onde muitos estrangeiros passaram a viver por ser a capital federal, imagino um que outro gringo descobrindo a cidadezinha encravada no cerrado goiano e ali se instalando. Provavelmente das trips de LSD nasceram as estórias sobre Alto Paraíso ser um lugar que atrai energias cósmicas, em razão da expressiva quantidade de quartzito (não entendo qual a relação), tornando-se então um lugar mítico, esotérico, mágico pros “magros”, como se dizia à época. E não são poucas as estórias sobre gente que viu ET e disco voador pousando nas cercanias, viu? Além dos hipongas vindos de vários pontos do Brasil, veio gente que apenas queria mudar de vida, como um paulista que encheu o saco da rotina de vida como engenheiro e se mandou pra Alto Paraíso na década de 80, se tornando guia até hoje pelo que sei. Bueno, voltando pra trilha, embora ela não passe de 7 km ida e volta, não é moleza não. As do Parque apesar de serem mais longas são mais fáceis. Nos trechos perigosos há degraus feitos de toras de eucalipto (chatésimos de caminhar), corrimãos de madeira e de cordas, tudo pra ajudar o caminhante a se deslocar com segurança em trechos bem cabulosos. O caminho, via de regra, é estreito, percorrendo bosques em encostas de morros, com subidas e descidas puxadinhas, embora haja trechos planos nos descampados das savanas. No meio da pernada aquela surpresa refrescante: um poço formado pelas águas das chuvas que daqui a um par de meses secará. Decido que vou me banhar na volta quando estarei super suada e necessitando dum tchibum. A partir desse ponto a trilha fica um pouco mais difícil mas a paisagem esplêndida do entorno do PN da Chapada dos Veadeiros com suas serranias e chapadas ao alcance dos olhos me faz parar pra contemplar essa natureza tão privilegiada. Poucas canelas de ema floridas, aliás, as flores não se mostram abundantes nesta época de chuvaral. Elas florem as ganhas quando as chuvas se vão. E falta pouco pra isso acontecer. Muita pedrona atravancando o caminho no solo de areia branquinha. E de repente chego ao mirante que dá nome de janela à trilha: uma enorme abertura triangular formada por 4 rochas donde se vê o curso do rio Preto formando o Carrossel e mais adiante os 2 saltos de 80 e 120 metros, pertencentes ao PN da Chapada dos Veadeiros. Estonteante cenário! Caminho por uma trilhazinha que leva a outros 2 mirantes feitos com toras de madeira cuja visão é também espetacular. No último, há arquibancadas de madeira pra quem queira se sentar poder apreciar a paisagem, em especial, à tardinha quando o sol se põe. Pena que vim pela manhã. Mas fica pra outra vez, porque é, podicre, uma trilha muito, muito linda!

domingo, 9 de abril de 2023

Lado B da Chapada das Mesas

No sábado de Aleluia, fazemos outros passeios, não muito distantes de Carolina: sítio da Mansinha e Pedra Caída. Na verdade, era pra eu mais Marcelo termos ido às cachus do Prata e São Romão. Meu carro exibindo, contudo, estranho comportamento tremelicante na direção, me deixa temerosa de enfrentar a dura estrada de chão batido que conduz às quedas d’água. Daí o motivo de a gente conhecer outros atrativos. E não nos arrependemos. Vamos primeiro à fazenda da Mansinha cujo dono é o chefão do ICM-Bio na região da Chapada das Mesas. O homem cheio da prosa desfia umas estórias sobre o parque deitado numa rede enquanto sua mulher, bem jovem, só observa o conversê. Eu com uma preguiça danada, me levanto e convoco Marcelo a explorar o lugar. Descemos até o rio e descobrimos 2 placas que anunciam 2 trilhas: Ronco da Onça, super curta, e a Morada do Caipora, de 1.500 metros. Esta última não leva a lugar nenhum porque está totalmente desmarcada, tanto que eu e meu parceiro nos perdemos no emaranhado de arbustos que formam o cerradão. A poucos metros da sede da fazenda, fizeram um represamento no riacho Mansinha, super gostoso de se banhar. O que faço sem pestanejar, mergulhando em suas refrescantes águas. Quando voltamos pra casa do dono, a mulher preparara um almoço pra nos esperar: cobrado é claro! Louca de fome que estou, sento à mesa e mando ver na comidinha despretensiosa mas saborosa. Até tentamos vencer a pé os 2 km que nos separam da cachu da Mansinha, mas o adiantado da hora - 1 da tarde - o calor escaldante mais a areia fofa da estradinha faz com que desistamos e peguemos, então, o carro. A cachu é bem pequena, deve ter um 1,5 m se tanto, formando um pequeno poço de águas transparentes e limpíssimas, rodeada por verdejante mata. Um pequeno paraíso no meio do cerrado! E lá seguimos nós, eu mais o falante e animado Marcelo pro próximo objeto do desejo: Pedra Caída. Do Santuário, complexo turístico formado por um monte de atrativos naturais e outros nem tanto (tem tirolesa e até teleférico), nós só queremos saber da tal Pedra Caída, motivo porque pagamos só por ela, já que cada atrativo demanda outro pagamento! Aliás, a gente paga pra entrar e por cada atrativo que se quer visitar. Como eu sou super maior de idade (70 anos) paguei ½ entrada que ficou 35,00 de portaria e + 20 da Pedra. Não me desaponto, o lugar é realmente espetacular. Se desce uma escadaria até o leito do rio que escavou um pequeno canyon cujo vértice é formado por rochas cobertas de limo verde com cerca de 50 metros de altura que quase se fecham no topo, tornando o lugar bem escuro, meio apavorante, tipo filme de terror, por onde despenca o violentíssimo jorro d’água. Tamanha a força das águas que há cordas pras pessoas se agarrarem e não serem jogadas contra as pedras. Assim como foi no Recanto Azul, na Pedra, a gritaria do povo (ressalvo que não só mulheres e crianças apelam pro berreiro, os homens também se esgoelam de excitação) é de exasperar, se eu fosse uma doente em estado terminal, comprava uma bazuca e metralhava toda essa gente sem consideração com a audição alheia. 
No domingo de Páscoa, lá vamos nós pra mais uma trilha, a dos Guardiões, também aberta por Renilton. Nesta trilha é necessário ir de carro até o ponto onde começa a pernada. Se junta ao grupo, Jamil, um rapaz que também se hospeda no mesmo hostal do Marcelo. Cerca de 20 km rodando pela BR 10, quebramos à esquerda e embarafustamos por uma estradinha de areia fofa, com umas poças de água que me causam apreensão mas guiada por Renilton não atolo. Após 6 km, Renilton avisa que ali deixamos o carro, iniciando a caminhada que se dá, inicialmente, numa mata cerrada, seguida duma campina com árvores de troncos tortuosos e espessos aqui e acolá. Ao longe, os cerros e as chapadas destacam-se na paisagem. Claro que a moleza loguinho acaba e a subida inicia, rente à base duma grande rocha, retornando nós sem muita demora a caminharmos sobre uma superfície plana. De repente damos de cara com um arco de pedra que exibe em seu centro uma cavidade arredondada, batizada Olho de Horus (deus egipício, protetor da humanidade). Ao lado, outra rocha menor, em formato de cabeça, é considerada o 1º Guardião da trilha. Uma pequena parada de modo que registremos as 2 esculturas, com Marcelo utilizando seu drone pra filmagens aéreas. E seguimos a caminhada por esta lindeza que é o cerrado, bioma com várias faces, aqui exibindo sua feição de savana com arbustos de pequeno porte. Dum tronco, pendem fios duma resina cor de âmbar, produzida pela árvore. Ao toque, a substância, um tanto quanto pegajosa, encanta por sua linda coloração. E no meio da campina, uma gigantesca pedra em formato de pênis prova o que é estar sempre de pau duro...hahaha (que piada sem graça, cruz credo). Descemos então até uma ravina de solo extremamente avermelhado, rodeada de densa vegetação, continuando a caminhada ao longo daquela depressão formada pelas águas de enxurradas, típicas da temporada do chuvaral. E se não fosse Renilton chamar nossa atenção, teríamos passado pelo 2º Guardião da trilha em brancas nuvens!! A enorme pedra mais parece um ET, saído direto dum filme de ficção científica produzido pelos estúdios de Hollywood, tamanha a semelhança. Mais uns 15 minutos de pernada, chegamos noutra ravina. Renilton nos informa que o pequeno lago formado abaixo do alto paredão avermelhado é a nascente do Tapuí, que significa “índio submisso aos brancos”. Igualmente rodeada por mata, aqui nos banhamos, já que a suadeira é muita após a caminhada debaixo do sol do ½ dia. Só Jamil trouxe algo pra comer, bolachas doces, que reparte entre nós. Renilton informa que há outra ravina ao lado. Claro está que vamos conhecê-la, como não! Bem menor que a anterior, também é um oásis de frescor no meio do cerrado. E quando eu achava que já tinha visto tudo de lindo na pernada como os 3 boqueirões escondidos no meio do mato, qual não é a minha surpresa quando se chega num minicanyon de paredes escuras e rosadas por onde escoa o pequeno caudal de águas absolutamente cristalinas do riacho Tapuí. As paredes que não devem alcançar 3 metros de altura quase se encostam uma na outra tão estreita sua abertura na parte inicial. Do vértice, jorram com força 2 jatos de água. Nem de tão longe assim, se escuta o ribombar dos trovões. Chuva na época do chuvaral, que venha, afinal já estamos molhados mesmo hahaha!!! Simbora lelê de volta ao carro porque a fome tá fazendo um escarcéu em nossas panças, já que não seriam as bolachinhas de Jamil que aplacariam nossos apetites. Afinal, foram 8 km duma pernada bem puxada. Quando chegamos no carro, Renilton comenta que essa trilha mais a do Bananal representam o lado B da Chapada das Mesas, porque é pura aventura, sem as mordomias que os atrativos standards oferecem. Sou mais o lado B, podicre! Pensa que a aventura termina aqui? Tsk tsk tsk...só não! Sabe aquela poça d’água que eu temera na vinda? Pois então, atolo bonito as rodas traseira e dianteira da camionete nos sulcos já bem fundos da estradinha. E sem possibilidade de socorro porque pouquíssimos turistas vêm pra essas bandas. E não dá pra ir a pé porque estamos a 25 km do camping, além de chover pacas! Que perrengue!! Renilton, meu bom guia, entretanto não se desespera. Calmamente, se interna no mato junto com os guris e os 3 de facão em punho (carrego sempre 2 em meu carro) cortam 3 arboretos, utilizados, um como apoio, outro como alavanca e o terceiro sob o pneu. Chama-se macaco baiano esse rudimentar macaco hidráulico que nos salva de permanecer atolados sabe-se lá até quando. E seguimos felizes da vida, molhados que nem pintos até o Refúgio do Raiz Camping onde bebemos espumante oferecido por mim, mais um ranguinho trazido gentilmente por Renilton da casa dele. Chave de ouro prum dia tão cheio de beleza, aventura e camaradagem! Amém

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Retorno à Chapada das Mesas

Conheci a Chapada das Mesas, no sul do Maranhão, em 2018. Como gostei muito do lugar, e morando agora colada nesse estado nordestino, é pra lá que vou curtir o feriado de Páscoa, até porque quero conhecer a região na época da chuva. Já ciente de que as Serras Gerais começam no Maranhão, posso observar com gosto as diferenças entre as do Tocantins e as maranhenses. Considerando a mesma formação sedimentar das rochas e a constante erosão por elas sofridas, aqui, contudo, inexiste formação de dunas nas encostas das serras, embora os rios escavem pequenos canyons encantadores, destacando-se os do Santuário, Poço Azul e Recanto Azul, os mais badalados. Substituindo os paredões compactos da serra tocantinense, surgem, nas serras do Maranhão, mesetas, pequenas serranias e morros testemunhos aqui e acolá, destacando-se o Morro do Chapéu – cartão postal da Chapada das Mesas - vislumbrado durante a travessia no rio Tocantins na balsa que liga Filadélfia e Carolina. Assim que chego, na quarta-feira, aviso Marcelo, que conhecera no Vale dos Pássaros, e combinamos alguns rolês juntos. Dia seguinte, quinta-feira Santa, o roteiro é conhecer o Poço Azul - que eu visitara quando aqui estive a primeira vez – e o desconhecido Recanto Azul. E lá vamos nós, Marcelo mais eu, pro Riachão onde os atrativos se localizam. Dos 139 km do trajeto, 106 são asfalto, o restante chão batido que, nesta época de chuvaral, costuma dar certo trabalho pra carros que não sejam traçados. O primeiro a ser visitado é o Recanto Azul, distante 7 km do Poço Azul, e não me desaponto: o pequeno canyon, cercado por paredões ora levemente avermelhados, ora cobertos de musgos e vegetação, comporta em seu fundão a nascente de um rio de água azulada e temperatura tépida onde centenas de peixinhos nadam indiferentes à nossa presença. Quando começa a chegar um bando de gente, eu e Marcelito nos mandamos. O encanto do lugar se quebrou! Sei que sou chata, até me considero meio misantropa, mas gritaria e criaturas fazendo caras e bocas ao tirar fotos e fazer vídeos me deixa beeiim arreliada. Vamos então ao Poço Azul e como falta justo uma hora pra fechar, conseguimos pagar ½ entrada.....ebaaa!! Visitamos, inicialmente, a cachoeira Santa Bárbara, queda d’água de 76 m, que está bombando de tão cheia, graças às chuvas de março que, aqui, não fecham o verão e, sim, o inverno. A cachu fica no final do canyon, um brete escuro e úmido, cercado de mata atlântica. O tempo restante dá apenas pra ir ao poço Azul, embora haja mais 6 cachoeiras no local. O poço não está límpido como quando cá estive à época da seca, mesmo assim dá pra perceber sua coloração turquesa. Marcelo muito acrobático, dá saltos mortais de costas na água enquanto eu filmo o moleque de 45 aninhos. E os fiscais nos tocam pra fora porque já são 17 horas, horário de encerramento dos atrativos naturais. A gente então vai à cata de algo pra comer porque bem desavisados não leváramos lanche, somente algumas bolachas. O complexo turístico além dos atrativos naturais conta com uma baita infra: além do hotel, restaurantes, lanchonetes, bar, piscinas e quiosques com confortáveis sofás pra descansar as pernas do sobe e desce das trilhas ou relaxar após o almoço. Como tudo é caro, desistimos de beliscar algo ali, pegamos a estrada e comemos uns engasga-gatos numa lanchonete perto de Riachão. À noite, sim, a comilança vale a pena: os deliciosos crepes da Tribo dos Crepes, cuja massa fininha lembra hóstia, e o recheio farto passa longe de ser um crepe de vento! Deixo meu companheiro de aventuras em seu hostal, no centro da cidade, e me vou BR 10 afora, conhecida como rodovia Transamazônica, até o Refúgio do Raiz Camping, de Renilton, distante 15 km de Carolina. Além de local pra acampar com cozinha comunitária equipadíssima (3 geladeiras, fogão, micro e utensílios diversos), Renilton construiu pequenos bangalôs com banheiro. É num deles que me instalo. Só acampo, atualmente, se não tenho outra opção, porque minha coluna corroída que está de artrose pede certo conforto. Afinal, aos 70 anos, eu mereço certas regalias, não é mesmo? 

Na sexta-feira Santa, esperamos Marcelo vir de Carolina pra fazer a trilha do Bananal aberta por Renilton um par de anos atrás. O início da trilha começa no camping, quase colado à BR. Atravessamos a rodovia e pegamos uma estradinha de areia fofa e clara cercada de gramíneas altas, tipo cola de raposa, e árvores de pequeno porte com troncos revestidos por aquela casca grossa que, ao tato, é similar à cortiça, tão peculiar da vegetação do cerrado. Pouca demora avistam-se os paredões avermelhados de um morro por onde subimos. O ascenso é duro porque a encosta é íngreme. Renilton vai na frente desbastando com seu facão o mato ao redor. E mostra, na passagem, a planta cujo caule fino provoca queimaduras na pele ao se roçar nela. E dale o bom guia a disparar faconaços aqui e acolá pra desatravancar o caminho da vegetação daninha. Passamos por um trecho com várias reentrâncias, abertas na parede da rocha, tipo covas. Diante delas pipocam alguns solitários cactos mandacarus, ainda sem floração, característicos dos chapadões que brotam na região. E conforme ganhamos altura, a paisagem revela vários morros, dentre eles as 7 Marias. E solitárias plantas carnívoras, do tipo drosera tentaculata, quase passam despercebidas tão grudadas estão no chão arenoso. E presencio o "assassinato" dum inseto tentando fugir de seus “tentáculos” mas infelizmente a gosma secretada pela planta é uma armadilha mortal. E novamente estamos costeando outro paredão de rocha coberto de vegetação. O ambiente fresco, livre de sol, é perfeito pra caminhar. Chegamos ao bananal, origem do nome da trilha, um verdadeiro labirinto, bom pra se perder. Mas nós não corremos este risco porque temos o nosso guia conosco...aleluia!! Renilton conta que o bananal foi plantado pelos moradores das cercanias, dando direito, a qualquer um que consiga carregar os pesados cachos de banana, a levá-los, seja pra consumo próprio seja pra venda. E andamos um bom pedaço dentro daquele dédalo de bananeiras até sairmos por completo do frescor proporcionado por elas. Chegamos no segundo mirante da pernada donde se vê o rio Tocantins, divisor natural entre Maranhão e Tocantins. Até hoje não foi construída ponte pra travessia do rio, motivo por que ainda se usa balsa pra ir dum estado ao outro. Do alto do mirante, se avista nitidamente a BR 10 com veículos trafegando em sua única pista, e o morro do Chapéu do outro lado da rodovia, bem diante da gente. Ao lado, algumas das 7 Marias. Segue-se à pernada no terreno suave do bananal, uma subida punk, no meio duma mata fechada, com direito ao auxílio dum corrimão feito de corda, providencialmente instalado ali por Renilton. Foi uma mão na roda o improvisado balaústre....se foi! Embora a subida tenha findado, o frescor do bosque já era, porque ingressamos numa zona com vegetação esparsa que não filtra nadica de nada a passagem dos raios solares. E já são mais de ½ dia, então já viu, né? A canícula tá castigando nossos corpitchos. Dois cachorros nos acompanham, a Belisca e o Cadu. Lá pelas tantas Cadu se embrenha no mato e desaparece por um bom tempo. E nós dale a chamá-lo mas ele nem aí. Renilton comenta que ele deve ter achado rastro de bicho no mato, motivo porque não aparece. Chegamos na Pedra Furada ou Portal da Chapada das Mesas, outro cartão postal da região. Dali temos uma visão privilegiada da paisagem onde morros e chapadas se entremeiam naquele colorido tão característico das rochas sedimentares fervilhantes de óxido de ferro, conferindo aquela tonalidade avermelhada às pedras. O contraste com o verde da vegetação é impactante. E lá estão os Pilares da Chapada, um de cada lado da BR 10, no papel, eu diria, de protetores desse pedaço das Serras Gerais. E Renilton vai nomeando as elevações, indicando aquela como a serra da Maroquinha, mais adiante o morro do Jacurutu e a serra da Cangalha, sem esquecer o morro do Picos que, embora pequeno, sobressai na paisagem pelo seu perfeito formato piramidal. Começamos a descida pra pegarmos o breve trecho de trilha até o camping onde chegamos lá pelas 13:30 horas, disparando cada um em seu carro até Carolina pra ver se encontrávamos restaurante aberto, porque - detalhe - eles só ficam abertos até 14 horas, reabrindo à tardinha. Graças ao Marcelo vamos parar no restaurante da Catia que, graças a deus, tem uma comidinha pra gente....há que se tratar bem a pancinha, não é mesmo?


segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Aurora

Saindo de Natividade, eu resolvo passar por Aurora já que bem pouco se afasta do trajeto de meu retorno ao Sul (em 2021 eu ainda não morava em Palmas). Já sabia da existência dos diversos atrativos naturais de Aurora, sendo o mais famoso os 143 metros de extensão do Rio Azul, o 3º menor rio do planeta, segundo o Google. Então, no 1º dia na cidade, vou sozinha conhecer o rio, sem guia porque o passeio dispensa condutor. Cheia de expectativas porque vira fotos lindíssimas de suas águas cristalinamente azuladas, tomo um susto: dia 2 de agosto é feriado (dia do Evangélico) em Luiz Eduardo Magalhães (BA), daí que os baianos se mandaram pro balneário. O resultado? Lotadaço, som de batidão sertanejo e de piseiro no mais alto volume, uma tortura. Afora isso, restaurantes quase à beira d’água e feias construções a 100 metros do diminuto do rio. Entro vapt vupt no rio e trato de me mandar rapidinho do lugar sem deixar saudades. Pra não dizer que só botei defeito no atrativo, a bela coloração do rio Azul continua a mesma das fotos, só que turvada por um mundaréu de gente. À semelhança de São Domingos e Guarani, em Goiás (Parque Estadual de Terra Ronca), a região das Serras Gerais neste cantão do Tocantins apresenta também um complexo de mais de 200 cavernas além de vestígios de fósseis da idade do Gelo e pinturas rupestres, sem, contudo, muita divulgação sobre o assunto. Pra ser precisa, apenas o rio Azul e a cidade dos Tótens ficam em Aurora; o restante das atrações localiza-se em Lavandeira, município colado em Aurora. Pra compensar a fracassada experiência no rio Azul, sou premiada enquanto dirijo até a pousada com a visão da paisagem a minha frente: a monumentalidade das Serras Gerais, a coloração avermelhada de seus paredões de rocha sedimentar e seus morros testemunhos me deixam deslumbrada, sem exagero. Esse conjunto de serranias passa pelo Maranhão, Piauí, Tocantins, Bahia, Goiás e MG. Considerando a formação sedimentar das rochas e a constante erosão por elas sofridas, há formação de dunas nas encostas das Serras Gerais. Pois é: não é só o Jalapão a exibir dunas! Ao redor de Aurora há 4 espécies de araras: canindé, vermelha, azul e ararinha verde da cara branca afora a tiriba, um periquito de peito vermelho, que se encontra em extinção.
Bem baixada numa pousada perto da cidade, saio no dia seguinte com o guia que contratara para os restantes 3 dias de passeio. Fomos então, no 2º dia, conhecer as praias do Pequi e do Puçá, o poço Paraíso e a cachoeira do Sombra. Exceto a trilha até o poço Azul e a pernada à cidade dos Tótens, o restante dos passeios foi de poucas caminhadas, mais entrando e saindo do carro. Desnecessário veículo traçado, ao contrário do Jalapão, em quaisquer dos passeios. A caminho da praia do Pequizeiro, se cruza o rio Palma que, posteriormente, irá engrossar o volumoso Tocantins. A praia do Pequizeiro, quando eu fui em 2019, mantinha sua feição de praia intocável, como se fosse um paraíso a la Caribe, perdido no meio do cerrado. A água dum azul claro em contraste com a areia branca da prainha e o verde da mata ao redor é um deleite aos olhos. Fico sabendo pelo meu filho - há pouco ele esteve lá - que já foi construído um restaurante. Uma pena, nem precisaria, já que a praia do Puçá, a 2 minutos de distância, dispõe de toda uma infra com comida, quiosques e redes penduradas nas árvores à margem do córrego Ribeirão, o mesmo que passa pelo Pequizeiro. O que estragou um pouco o sossego do Puçá foi o som de música eletrônica rivalizando com o ruído bom das corredeiras do riozinho. Tomo uma caipirinha antes do almoço (peixe com arroz, feijão, mandioca e vinagrete), e após um descanso pra facilitar a digestão vamos até o Poço Paraíso. Pra mim, o menos impactante, se bem que a Curva do Desejo é bem lindinha. Claro está que eu poderia ter escolhido ficar em algum dos lugares, de boa, mas naquele momento estava super a fim de conhecer tudo o que eu pudesse, motivo por que seguimos até a Cachoeira do Sombra. Seguimos o curso do rio Sombra que cavou na rocha uma canaleta por onde a água escoa com força despencando alguns metros adiante na pequena cachoeira cujos degraus produz farta espuma branca que termina no poço mais abaixo. Um lugar bem agradável rodeado de vegetação. No fim de tarde que se avizinha, tomo mais um banho, deve ser o 4º ou 5º do dia. A temperatura é absolutamente morna, uma delícia. Recosto-me numa reentrância de rocha pra usufruir da massagem proporcionada pelo jorro de água que desce vigoroso do alto das pedras. Durante a volta pra pousada, meu guia esboça em linhas gerais o processo artesanal da elaboração do óleo de coco de babaçu: quebra-se a casca, pilando as sementes e fritando-as para obtenção do óleo. Parece simples mas é demorado porque são milhares de coquinhos para se extrair alguns litros de óleo. Haja paciência e braço!
E no 3º dia, graças a deus, aquela caminhadaça cuja ida e volta registrada no Strava somou pouco mais de 7 km. No início da pernada, dá pra perceber a formação semicircular da Serra Geral, destacando-se de seu extenso paredão uma arredondada formação rochosa que remete à proa dum gigantesco navio. Nas suas partes erodidas a rocha ora avermelhada ora preta cede vez a um tom esbranquiçado. Com o tempo, a ação erosiva da natureza transforma as encostas da serra em bancos de areia, já visíveis em certos trechos. No topo da serra, a planície baiana com suas plantações. Quando venta muito, palhas de milho são arrastadas até o solo tocantinense. Veredas de buritis, vistas aqui e acolá, anunciam terreno úmido, aglomerando-se, portanto, em seu entorno arbustos e árvores de pequeno porte. Afora isso, é campina, tipo savana, pontuada por vegetação rasteira e modestos renques de diminutas flores aflorando do solo. Durante a caminhada, o som das curicacas, das seriemas, das falantes araras, dos picapaus de cabeça amarela e dos periquitinhos é música ao vivo uhuu!! O poço Azul, banhado pelo córrego Ribeirão, é um encanto, sua água de um azul claríssimo chega a ser transparente perto da margem. Rodeado de farta vegetação, o poço assim fica resguardado dos rigores da canícula que beira uns 35ºC no meio da manhã. Me deixo levar pela correnteza flutuando algumas dezenas de metros leito abaixo. Refrescada pelo banho, enfrento alegremente o retorno até o ponto onde deixáramos o carro sob o calor intenso. Depois da revigorante caminhada, eu nem me importo de pegar o carro e dirigir até a fazenda Bartolomeu, cujo dono, Seu Joelino, nos espera com delicioso almoço caseiro feito pela filha. A refeição é entremeada de conversê sobre política e boas risadas. De pancinha cheia, vou até a margem do rio Bartolomeu – pertinho da sede da fazenda – conhecer as corredeiras. Ao longo de seu curso forma pequenas quedas d'água, recebendo a maior o nome, por óbvio, de cachoeira do Bartolomeu. E o último passeio do dia é visitar o Mirante das Andorinhas donde se vê a sudoeste GO, a leste BA e lá embaixo a cachu das Andorinhas formada pelo rio Bacupari. Descemos até a cachoeira (foi a mais sem graça de todas) e o que valeu a pena foi saber que o nome Andorinhas se deve ao fato destas aves se abrigarem entre a água e a pedra, mal se distinguindo suas cabecinhas contra a rocha escura. Perfeito esconderijo contra seus predadores naturais, as cobras.
No último e 4º dia em Aurora, pernada à cidade dos Tótens, ou seja, a uma das várias dunas que se localizam nas encostas da Serra Geral. Inicialmente, andamos numa mata bem densa e cruzamos com uma das nascentes do rio Tubatinga. Ao sair do bosque entramos numa zona de brejo, ou seja, de vereda de buritis e buritiramas. À medida que nos aproximamos da encosta da serra, surge no meio da vegetação um surpreendente oásis.....de areia! Rodeada por vegetação, no meio da praia de areia amarelinha, um renque de palmeiras balouça ao forte vento que sopra desde a madrugada. Na subida às dunas, noutra mata igualmente fechada, se escuta a gritaria das araras vermelhas. Dá pra perceber claramente a coexistência de 2 biomas: cerrado e caatinga, daí a existência de bromélias e canelas de ema neste trecho da trilha. A visão da serra Geral, com picos ora arredondados ora pontiagudos mais sua feição de muralha inexpugnável, é impressionante. As rochas inicialmente escuras foram se tornando claras devido ao processo erosivo. Não canso de me embasbacar com tanta beleza. Ao atingir as dunas, com o sol batendo em cheio no arenal amarelo os olhos doem com tanto fulgor. Que mundão de meu deus é esse?!! Tô até emocionada tamanha a grandeza do lugar!! Meu guia me chama pra entrarmos numa canaleta cujo chão está coberto por espessa camada de fina e clara areia. O estreito brete, ladeado por pedras escuras e arbustos, termina 50 metros adiante num despenhadeiro. Da beirada dá pra ver, no fundão do vale, a forma diferenciada do morro São João e de outras tantas colinas e chapadas que compõem o mosaico rochoso espetacular da Serra Geral. Enxergo ainda, pequeninha, lá embaixo, a prainha de areia que se destaca no meio do verde da vegetação. Retornamos à arena das dunas e seguimos até a cidade dos Toténs, outro fantástico trabalho de erosão, cujas delicadas formas resultantes lembram cogumelos. Não poderia ter fechado minhas andanças por Aurora com melhor desfecho que conhecer este trabalho de erosão que, podicre, considero do bem!

domingo, 1 de agosto de 2021

Natividade

Há várias caminhos pra se chegar, como diz o ditado, em Roma, assim como em Natividade, a cidade mais antiga do Tocantins que me despertou atenção quando fui me informar mais sobre o Tocantins, porque como talvez você não saiba, o estado não se resume apenas ao Jalapão. Um desses, se você estiver em Palmas, é pegar a BR 010 direto e reto até lá. São apenas 235 km e dá pra fazer um bate e volta, o que não aconselho porque há muita coisa interessante pra ver na cidadezinha, o que em um dia só fica meio atabalhoado. Como eu estava em Almas, saindo do Vale dos Pássaros, peguei a TO 280 e pouca demora já estava em Natividade. Fundada em 1734, a cidade teve seu apogeu durante o ciclo do ouro, quando os bandeirantes adentraram o interior do país em busca de metais preciosos, descobrindo-se na região o ouro de aluvião. Com isso, cerca de 40 mil escravos foram enviados pra lá e ficaram encarregados de edificar o pequeno arraial. Tombada como conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico pelo IPHAN em 1987, a cidade tem um encantador centrinho histórico com igrejas e casarios de arquitetura colonial caprichosamente preservado. Com grande importância histórica e cultural, Natividade mantém ainda tradições da época dos portugueses e povos quilombolas, dentre eles a Folia de Reis que acontece entre 24 de dezembro e 6 de janeiro quando grupos saem pelas ruas da cidade visitando casas e entoando cantos bíblicos em homenagem aos reis magos. Com a exaustão da exploração aurífera, a grana foi escasseando motivo por que a construção da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos foi interrompida. Mesmo inacabada, exibindo somente seu arcabouço, a igreja se transformou em um dos maiores símbolos da cidade, por sua referência à comunidade negra que se instalou, ou melhor, foi instalada na cidade. Outra igreja também datada do século XVIII, é a singela matriz dedicada à Nossa Senhora da Natividade, padroeira da cidade.


Após dar uma rezadinha e fazer os tradicionais 3 pedidos (praxe quando se entra numa igreja pela primeira vez), vá até o casarão branco com aberturas vermelhas na frente do largo, provar o famoso biscoito Amor Perfeito (mistura de polvilho, leite de coco e açúcar) assado em forno a lenha. O difícil é parar de comê-lo tão mas tão gostoso é! Você pode encontrar tia Naninha, a criadora da iguaria, sentada numa cadeira à porta de seu estabelecimento e bater um papinho com ela. Eu dei a maior sorte pois foi ela quem entabulou conversa comigo, falando de seus 12 filhos...encantadora a velha senhora! Na praça da Bandeira, antigo largo do Pelourinho, onde negros eram comercializados no período colonial, o sítio hoje tem outra feição com restaurantes, sorveterias e açaiterias dispostos ao seu redor. E o melhor de tudo: tanto cedinho de manhã quanto à tardinha recebe a visita barulhenta das araras canindés. Baita trilha sonora enquanto provo um delicioso sorvete de mangaba. Graças às minas de ouro que funcionam até os dias de hoje (embora modesta a produção), a confecção de joias se tornou uma das principais atividades de Natividade, destacando-se a Ourivesaria de Mestre Juvenal. Ainda que você não seja consumista, vale a pena dar uma passada lá e apreciar o elaborado trabalho em filigrana com que são feitas as joias. Vagueando pelas ruas ainda calçadas com pedras antigas, mangueiras, oitis, palmeiras e outras árvores do cerrado de copas frondosas proporcionam farta sombra pra quem como eu gosta de caminhar mesmo na hora do sol a pino. Arbustos floridos dão um toque colorido nas calçadas e floreiras diante das janelas enfeitam os peitoris das casas. Um menino puxa seu burrico por uma corda, enquanto o motoqueiro passa com sua moto, convivendo em harmonia o antigo e o novo. Por quê, não? Um não necessita excluir o outro. Os sinos das igrejas católicas bimbalham ao final do dia anunciando a hora do angelus; senhoras de cabelo lavado e vestidos bem passados se dirigem aos templos. Esta é Natividade, colorida e pacata cidadezinha tocantinense rodeada pela serra geral: uma festa para os olhos de quem curte boas tradições, boa culinária e casarios antigos preservados.

sexta-feira, 30 de julho de 2021

Nem só de Jalapão vive o Tocantins

Vale dos Pássaros
Decorridos 40 dias em Mateiros, convivendo intensamente com a família de tia Maria, personalidade ímpar, que me delicia com sua prosa animada, mencionando não só os vivos quanto os mortos, quero conhecer outras paragens no Tocantins porque até então era só Jalapão, Jalapão e Jalapão. Assim me mando pra Almas pra conhecer o canyon Encantado pilhada que estou pela falação de Diomil, um andarilho da bike que conheci em Mateiros. Assim que passo a saber da existência da Estação Ecológica Serra Geral, ou simplesmente Serras Gerais, distribuída entre os municípios de Ponte Alta (Arco do Sol), Dianópolis (Fortaleza dos Guardiões), Rio da Conceição (Lagoa da Serra), Pindorama (Lagoa do Japonês), Almas (Canyon Encantado, Vale dos Pássaros), Aurora (Rio Azul e praias do Pequi e Puçá) mais Natividade. Quando chego em Ponte Alta, continuo pela rodovia TO 130 que conduz a Pindorama mas quebro à esquerda, na TO 476, pra conhecer a Pedra Furada, um monolito de arenito, há horas na minha lista de desejos. Alguns poucos kms antes da Pedra Furada, um imponente maciço rochoso se destaca na paisagem: é o morro da Cruz. Um lugar repleto de imponentes pedras me deixa quase em estado de graça, a natureza é minha religião e as pedras são os meus deuses! Continuo pela TO 476 e no encruzo entre Rio da Conceição e Almas, pego a TO 40. Estas últimas são estradas de chão batido, trafegáveis mesmo em época de chuva. A 30 kms do Vale dos Pássaros, avisto da estrada algumas formações rochosas interessantíssimas cuja placa indica ser o Arco do Sol. Nem hesito, pego a estradinha e vou lá conferir. Maravilhosa formação de arenito avermelhada em forma de arco com cavidades de diversos tamanhos, ladeada em ambas as extremidades por 3monolitos compactos. Pra mim, superou a Pedra Furada, até porque há várias pedras furadas Brasil afora. Mas a viagem prossegue e lá me vou pra pousada de seu Davi e Antonia, donos da chácara Vale dos Pássaros. Os dormitórios, em número de 4, 2 deles com banheiro, estão numa casa de madeira, onde balouçam redes na varanda. Distante alguns metros, o refeitório, um puxado de madeira, está agregado à casa de enchimento onde vive o casal. Tudo muito simples, comida caseira feita no fogão a lenha por Antônia ao passo que seu Davi assume a tarefa de lavar a louça. Todos os dias, antes do café da manhã (cuscus com ovo frito, ó delícia!) e da janta, seu Davi convida os hóspedes pra celebrar Deus orando e cantando salmos. O casal se conheceu num culto evangélico, ela jovem, com 21, ele com 34. Revela Antônia que foi amor à primeira vista. Ele ofereceu carona pra ela e até hoje ela não desembarcou do carro. Seu Davi, alto, magro, é o homem mais doce que conheci, voz baixa e fala mansa. Já Antônia é o oposto, baixinha e roliça, é enérgica e hospitaleira. Ambos vez por outra se saem com uns saborosos ditados regionais como o de seu Davi transformando “em Roma como os romanos” pelo “em terra de sapo de cócoras com ele.” Já Antônia com seu temperamento menos afeito aos mimimis lasca "se morre e não acha quem enterre, urubu trata de come”. Os 3 córregos que atravessam a propriedade são o Jatai, o da Cortina que despenca pela cachu de mesmo nome e o da Água Limpa, da Urubu Rei. Nas árvores, pulando de galho em galho, uma macacada curiosa te observa, galinhas com suas ninhadas de pintinhos passeiam pra lá e pra cá ao passo que os cachorros veaoz por outra ladram alertando quem se aproxima. Detalhe pitoresco são os gatos que se quedam preguiçosos sobre o parapeito do fogão a lenha.
Canyon Encantado
Dia seguinte, ao invés de pegar o carro pra fazer o percurso de 14 km entre o Vale dos Pássaro e o Canyon Encantado, vou caminhando até lá pela trilha de 2 km ao longo da mata que ladeia a encosta da serra Negra. Compro um combo de passeio de dia inteiro que inclui canyon Encantado, Cidade de Pedra e Cachoeira dos Pelados. Guiada por Bonfim (é obrigatória a condução por guias), na trilha bem demarcada, sinto a cheirosa floração dos cajuins, sinalizando que seus frutos não tardam a dar pinta nos galhos. A 600 metros do início da trilha há um mirante donde já é possível se ter uma visão parcial da fenda. De seu vértice jorra manso (quando fui a primeira vez era ainda época de seca) o córrego Água Limpa. Andorinhas traçam o ar em revoadas constantes e o matraquear ruidoso das araras não dá trégua ao silêncio. Algumas passarelas de madeira e de metal facilitam os 130 metros de desnível até a base do canyon. Um pequeno brete (parece até lance de filme de Indiana Jones), escavado artificialmente na rocha pra facilitar a descida, esconde brevemente a fenda mas logo a ordem é restaurada e a garganta volta a dar as caras. À medida que me afundo no perau, vestígios de mata atlântica vão dando pinta ali e acolá. No lado esquerdo do paredão de coloração avermelhada, a vigorosa queda d’água do Sumidouro, enquanto à direita, o fio d’água mirrado, que na época da seca forma uma prainha de areia clara, recebe o nome de Elias, em homenagem a antigo morador da região. No final da pequena garganta, próximo ao vértice, delimitada pelos paredões, desenha-se um arco-íris, à semelhança de um luminoso de neon colorindo a escura e estreita cavidade cujas rochas se exibem esverdeadas de musgo. No retorno, observo a pequena reentrância na rocha à semelhança duma mini gruta que me passara despercebida quando descera. Almoço no restaurante e descanso no redário aguardando a pernada ao restante dos passeios. Às 2 da tarde, o guia nos tira da indolência da sesta e lá vou eu num calor de antecâmara do inferno à Cidade de Pedra. Já vi outras mais interessantes, mas esta até que dá conta caso você não tenha conhecido a da Chapada dos Guimarães e a de Vila Velha. Seguimos então prum mergulho na cachoeira dos Pelados, onde foi filmado o seriado americano Largados e Pelados, daí a origem do nome da cachu. A pequena queda d’água, banhada pelo córrego D’Anta e rodeada de árvores, oferece uma refrescante sombra, super bem vinda após a caminhada sob o sol causticante do cerrado. No dia seguinte, de manhã, vou visitar outros dois atrativos no Canyon Encantado: as cachus do Portal e da Capivara. O início da trilha é plano, sem maiores dificuldades. A partir dum certo momento, o guia Juraci avisa que teremos de descer 500 metros de terreno acidentado, aberto no meio do mato. Ele me oferece um cajado que dispenso, contudo. A vegetação é luxuriante, já que guarda resquícios de mata atlântica. Um prazer sair da canícula do meio da manhã e entrar em ambiente sombreado. Muito arrebatadora a cachoeira do Portal, não pelos seus 60 metros de altura, mas pela aurora gigantesca cúspide que coroa seu topo donde duma cavidade jorra o córrego D’Anta que continua serpenteando e forma adiante a cachoeira da Capivara, a próxima queda d’água a conhecer. Dureza não foi descer os 500 metros até o Portal mas subir tal desnível seguidos doutros 500 metros de descida até a Capivara, essa sim uma ladeira bem perrenguenta, quase uma piramba de tão íngreme. Claro está que depois que se conhece a surpreendente Portal, a Capivara não eletriza tanto assim se comparada àquela. Se eu fosse guia, deixaria a Portal por último pra causar aquela impressão. No retorno, Juraci, profundo conhecedor da flora do cerrado, vai saciando minha curiosidade sobre as plantas. Conta que aprendeu principalmente com sua mãe porque seu pai se ausentava muito viajand0 a trabalho. Comenta que conhece tanto planta pra curar quanto pra matar...ala putcha!! Juraci explica que os remédios são feitos mais com cascas do que com folhas, porém os melhores são os obtidos das raízes. No trajeto de retorno à sede do canyon Encantado, fico a par de que o angelim é venenoso pros seres humanos, não sendo nefasto contudo com os animais. Já a bananeira, além de sua flor ser linda demais e cheirosíssima, serve pra fazer cestas. Numa curva da trilha, dou de cara com a árvore nacional do Tocantins, a fava de bolota, que lembra uma árvore de natal quando está florida com suas vermelhas flores arredondadas. E a sapucaia, acrescenta Juraci, só é comestível por aves, como as araras, que furam seu fruto até pinçar a desejada semente. Pra finalizar a interessante aula informal de botânica, sou apresentada ao murici de cujo pequeno fruto amarelo se faz uma pinga deliciosa.
Vale dos Pássaros
Deixo pra conhecer as cachus do Urubu Rei e Cortina (ida e volta em torno de 4 km) no último dia de minha estadia. Inicialmente percorro a trilha bem marcada que risca a mata fechada (afinal estamos no cerrado). Por 2 vezes me equilibro sobre improvisadas pinguelas feitas com troncos de árvores pra atravessar os córregos que cruzam a propriedade. Depois da bifurcação que indica à esquerda a cachoeira da Cortina e à direita, a do Urubu Rei, escolho fazer esta primeiro. A paisagem então começa a mudar e a mata cede lugar à vegetação rasteira com a presença abundante dum denso capinzal. Os paredões avermelhados da serra Negra se mostram em toda a sua magnitude e já se avista lá no fundão os 70 metros da cachoeira do Urubu Rei. Pela estrada, é possível chegar na borda da Urubu Rei e vislumbrar o vale lá embaixo com sua vegetação compacta entremeada por veredas de buritis. No retorno, entro na trilha que leva à Cortina e caminho ladeada sempre pela mata cerrada sem mudança na vegetação. Assim como a Urubu Rei, a Cortina também pode ser vista de cima. Para tanto, envereda-se por uma trilhazinha que sai da estrada e termina na charmosa cachu da Arquibancada que antecede à da Cortina. A vista frontal dos seus 50 metros de queda livre à tardinha com o sol atiçando ainda mais sua parede vermelha é um convite irrecusável à contemplação. Final de julho é aquele concurso de beleza no cerrado: as árvores estão floridas, cada uma mais linda que a outra, destacando-se as flores dos pequizeiros com 5 pétalas dum amarelo claríssimo donde despontam centenas de filamentos ultra finos. Afinal, nem só de ipês amarelos vive o cerrado. Infelizmente, tenho de partir, mas levo comigo a saudade gostosa do que ficou pra trás!!