sábado, 18 de janeiro de 2020

Santiago de Cabo Verde

Finalizando nossa trip com chave de ouro, eu e Raul escolhemos conhecer Cabo Verde, situado no oceano Atlântico ao largo da África Ocidental. Pra tanto, voamos de Las Palmas a Casablanca onde se faz conexão, seguida de breve escala em Bissau, finalmente, aterrissando em Praia, situada na ilha de Santiago, no inconveniente horário das 4 da manhã. Santiago, a maior das 10 ilhas de origem vulcânica que formam o arquipélago caboverdiano, é super montanhosa e cheia de platôs, aqui chamados achadas. Sua principal cidade, Praia, é também a capital do país. Estamos hospedados na Achada de Santo Antonio, no confortável Salav Guesthouse, a 200 metros da praia de Kebra Canela que se alcança descendo as Escadinhas de Sto Antonio, adornadas por azáleas de cor magenta e rosada. À tarde, sob um céu nublado, presencio, na avenida Jorge Barbosa, que contorna o mar, passeata de estudantes contra a bárbara morte do estudante caboverdiano Luís Giovani em Portugal, no final de dezembro. O assassinato adquiriu contornos racistas devido à origem africana do jovem. Concomitantemente, desfila num conversível vermelho, casal de noivos e daminhas, seguidos por um cortejo de carros buzinando alegremente. Estamos numa zona nobre de Santiago, com bons restaurantes nas redondezas desde o sofisticado Nice Kriola ao popular Rola Festa com preços razoáveis e cardápio regional, além de saborosas sobremesas. O almoço sai por 450 escudos (4 euros), a cachupa 300 escudos (2,70 euros) e a jarra de vinho 250 escudos (2,25) euros. Cachupa é um prato típico à base de milho e feijão, cujos acompanhamentos variam do peixe, chamada cachupa pobre, à carne, conhecida como cachupa rica. Nas regiões agrícolas de Cabo Verde, como alimento forte que é, servem-na ao pequeno almoço pra energizar o corpo antes de enfrentar a roça. No sertão do Piauí e Pernambuco, temos uma versão da cachupa, o pintado. Da praça Cruz de Papa, em frente ao nosso hotel, avistam-se o Monte Vermelho, o Pico da Antônia (+ alto da ilha) e Monte Babosa. Na manhã seguinte a nossa chegada, quando olho pro mar da sacada do hotel, vejo tudo enevoado. Soube depois, conversando com a amável e prestativa Erica, gerente do Salav, que estávamos no meio da "bruma seca", fenômeno atmosférico em que poeira e areia são trazidas do Sahara pelos ventos harmattan, nesta época do ano. Com exceção de dois dias, o restante foi ensolarado, bom pra ir à praia de Kebra Canela e desfrutar dum refrescante mergulho nas suas mansas e claras águas. Nas cidades africanas situadas à beira mar, sempre há vendedoras oferecendo peixes frescos nas calçadas das ruas. Aqui em Praia se concentram no mercado do Sucupira, que visitamos à tarde após um rolê pela cidade. Pra mim, Sucupira foi meio decepcionante porque se dedica a vender maciçamente roupas e sapatos baratos. Nem o pastel de milho, um quitute típico ilhéu, serviu de consolo porque tinha acentuado gosto de peixe. Em compensação, uma alegria conhecer o Farol de Dona Maria Pia. Funcionando desde 1880 quando de sua construção, tem 59 metros. Seu zelador, Jorge do Farol, orgulha -se da boa forma física, adquirida pelas diversas subidas diárias até o topo da torre. No almoço, num restaurante frente ao mar, pedimos de entrada o saboroso pão com alho e queijo, que vem a ser uma pizza com massa super fina, tipo biscoito. Praia é uma cidade moderna com prédios novos e largas avenidas exibindo faixas de pedestres respeitadas pelos condutores de veículos. Não à-toa, considerada patrimônio mundial da UNESCO desde 2009, a Cidade Velha é especial, tanto que a visito duas vezes. Foi nesta parte da ilha, no século XV, que os navegadores portugueses desembarcaram quando descobriram Cabo Verde. Pra ir lá tem que se dar 1 pernada de 3 km atė Sucupira, onde se concentram os iaces, transportes coletivos, tipo van, com lotação pra 18 pessoas, cuja passagem custa, dependendo do trajeto, até 100 escudos (1 euro). Aos iaces só é permitido o embarque de passageiros em Sucupira, vedando-se ao motorista pegar ou largar passageiros ao longo do trajeto, exceto em alguns pontos predeterminados. Além de iaces e ônibus, reservados às longas distâncias, são usados nos trajetos curtos pequenos caminhões com bancos de madeira em suas carrocerias. Roda-se por 13 km numa ótima rodovia passando por Palmarejo, um dos bairros mais populosos de Praia. Na metade do caminho, junto à rodovia, está sendo construído campus da Universidade de Cabo Verde financiado pela República Popular da China. Digno de menção, o maciço investimento dos chineses em Cabo Verde, alcançando várias áreas, entre elas o turismo. Pouco antes da entrada na Cidade Velha, no topo duma colina, encontra-se a Fortaleza Real de São Felipe, construída no século XV e restaurada no século XX. A vista dali é linda, avistando-se a Cidade Velha ao pé do morro. Descendo por uma antiga estrada, entro naquilo que foi um dia a Catedral da Sé. Ao contrário da fortaleza, a igreja, construída em 1462, dois anos após a chegada dos portugueses, exibe poucas paredes ainda incólumes. Túmulos, como era costume à época, alinham-se no chão dos escombros das capelas laterais. Num deles, lê-se decorosa inscrição na lápide de Donna Ana da Luz Barradas advertindo “para ninguém mais se enterrar, senão seu marido, e depois nunca mais eternamente se poderá bullir nesta sepultura”. N0 Largo Pelourinho, bem no centro do pequeno lugarejo, ainda intacta a estrutura feita em pedra clara sustentando em seu topo ganchos de ferro onde os escravos eram pendurados e castigados. Passeio pela parte histórica da cidade cujas casas, construídas com pedra e cal, exibem pequenos jardins na parte da frente. Em uma de suas vias tranquilas e arborizadas, leio, na placa de porcelana branca, a inscrição Rua de Banana. Num restaurante à beira mar, almoço sopa de peixe à Cidade Velha: pescado inteiro, banana, batatas branca e doce mergulhados num caldo grosso com leite de côco. Enquanto espero o iace, converso com uma simpática vendedora de frutas, que veste saia com estampa da bandeira brasileira. Na volta a Praia, escuto, no rádio do iace, o alegre ritmo do funaná, que dá vontade de dançar ao contrário da dolente morna cujos sentimentos de dor e sofrimento são causados não só por males de amor, como àqueles infligidos nos tempos brutais da colonização portuguesa que durou em Cabo Verde até 1975. Sua representante máxima, Cesaria Évora, nascida na ilha de São Vicente, foi quem projetou a música caboverdiana no exterior. Além da morna, há outros gêneros musicais genuinamente nativos como o batuque (recentemente divulgado por Madona, em seu último trabalho musical), o colá, a coladeira, o funaná e a tabanca. Como não podia deixar de ser, reservo um dos dias de minha estadia pra dar uma pernada numa das 9 trilhas existentes no Parque Natural de Serra Malagueta, maciço montanhoso situado na parte norte da ilha. Pra tanto, pego um iace em Sucupira e percorro 55 km durante 1 hora e 15 minutos numa rodovia cheia de curvas e sempre ascendente. Como o mar neste trecho da ilha não é visível, encoberto por paredão de montanhas, fico boquiaberta com os formatos estupendos dos picos que avultam na paisagem serrana. Desço no escritório do parque onde já está a minha espera Gabe, meu guia, nascido na região. Da flora, chama minha atenção duas plantas em que florescem lindas flores amarelas: lacacan e caule de santo. O início da trilha é só descida até Mato Dentro, onde paramos na casa de João Carlos, amigo de Gabe, pra bater um papo. Lá pelas tantas, o simpático rapaz traz uma garrafa de grogue, a cachaça caboverdiana, pra eu provar. Saborosíssima, controlo-me pra não bebê-la às ganhas porque ainda tenho muito chão pela frente. Desce conosco Sheila, mulher de João Carlos, que carrega, à moda africana, sua pequena Raquel, às costas aninhada num pano colorido. A jovem vai a Tarrafal porque amanhã, dia de Santo Amaro, acontecerá grande festa em homenagem ao padroeiro da cidade. Enveredamos então num bosque de mangueiras pra então caminhar no leito seco e empedrado do rio até Ribeira de Principal onde finda a trilha. A paisagem é linda cercada pelas encostas verdejantes das montanhas que formam a Serra da Malagueta. No lugarejo de Chão d’Horta, provo o delicioso pastel de peixe, petisco típico caboverdiano. Após uma breve pernada, embarcamos num caminhãozinho. Na carroceria do barulhento e sacolejante veículo só nós de passageiros até Hortelão onde pegamos um táxi até Tarrafal, passando por encantadoras e pequenas baías cujas praias são cobertas por pedregulhos escuros. No mar, barquinhos coloridos balouçam ao sabor das ondas. Já Tarrafal, situada à beira mar, é praia de areias claras, convencionalmente bonita, o que não me entusiasma muito, ainda mais depois de ter curtido as belezuras serranas da Malagueta, que me deixou de olhos cheios. Despeço-me de Gabe que está indo ao barbeiro cortar a cabeleira em homenagem à festa de Santo Amaro, como bom católico que suponho seja. Retornando a Praia, distante 55 km, passo pelas cidades de Assomada e Picos. Em um pequeno outdoor fincado à margem da rodovia, me delicio com o português de Portugal avisando que “mais vale 1 pé no travão que 2 no caixão....hahaha!!! Dois dias após o trekking na Malagueta, vou a Picos, distante 30 km de Praia, que me chamara atenção quando ali passei a caminho do parque. Sentada ao meu lado no iace, a amável Ariane, com quem entabulo conversa. Ela fornece preciosas dicas sobre duas das 6 ilhas de barlavento, assim denominadas aquelas situadas ao norte. Natural de Santo Antão, ela revela que perto de sua ilha, se encontra a linda São Nicolau, que devo conhecer. Tanto que liga pro tio que vive em Santo Antão pra saber horários dos barcos entre as ilhas. Durante a travessia, diz ela, comum a presença de baleias e golfinhos cabriolando no mar. Bem que eu gostaria de visitar São Nicolau mas não me sobra tempo já que Santiago é ilha de sotavento, localizada, portanto, ao sul. A cidade de Picos, em si, não tem nada de especial. Sua marca distintiva é ser cercada por estupendas montanhas em cujas arestas serrilhadas sobressaem picos longilíneos semelhantes a gigantescos dedos apontados pro céu. Destaca-se, no mar de pedras, o admirável monolito rochoso, apelidado Achada da Igreja, porque dependendo do ângulo e distância em que nos encontramos, se tem a impressão de que a gigantesca pedra jaz pespegada ao templo católico. Mera ilusão de ótica pois o intervalo entre elas é de cerca de 2 km. Pra melhor fotografar Chão da Igreja, peço licença e entro no quintal duma casa, nos arredores da cidade. Habitada por mulheres e filharada, todas parentes, a jovem Deise traz uma cadeira pra que eu possa sentar. Ficamos a conversar, salvo a avó, uma senhora idosa que só fala criolo. Continuando meu passeio, observo que não só nos quintais das casas como nas zonas rurais de Picos brotam plantações de milho, já revelando penachos dourados em suas espigas. Este cereal, importantíssimo na alimentação do caboverdiano, está presente em vários pratos tradicionais como a cachupa, cuscus, pastel e doces. Caminhando sem pressa pra pegar o iace, paro pra bater papo com uma comunicativa nativa na calçada. Mais adiante compro bolinho de milho duma menina que se encontra  diante de sua casa, vendendo guloseimas, provavelmente feitas pela mãe. Na volta a Praia, no iace, uma galera que trabalha no posto de saúde de Picos conversa animadamente. Claro está que me meto na conversa, trocando ideias com Bebeto, dono de agradável prosa. No entendimento de duas colegas, Bebeto é um mulherengo de 1ª grandeza. Seus colegas dão risada. Ele bem humorado se defende frouxamente da acusação. Quando desço em Sucupira, ganho dele uma caneta com as cores da bandeira de Cabo Verde. Parto de Santiago levando no coração apenas boas recordações não só de sua admirável paisagem como da gentileza e afabilidade do povo caboverdiano, em especial de pessoas como Bebeto, Erica, Gabe, Deise, João Carlos, Raquel e Sheila!!

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Novamente em Gran Canaria

Quanto mais conheço Gran Canaria mais gosto desta ilha. A um porque minha prima Maria Amalia vive aqui com sua família; a dois porque a ilha é linda com seus variados cenários que ora mesclam paisagens verdejantes ora áridos cenários num relevo montanhoso cercado pelas azuladas águas do Atlântico. Assim, vamos eu e Raul direto de Casablanca pra Las Palmas num voo de pouco mais de 3 horas. Maria Amalia este ano mudou para um sítio motivo por que, em conversa no Whatsapp, quis enviar seu filho Franco ao aeroporto pra nos receber. Consigo a caro custo dissuadi-la, combinando então que ele nos esperará no terminal San Telmo. Fácil de ser avistado, porque é um rapaz muito alto - puxou ao pai, Daniel -, Franco nos avisa que teremos de pegar outro bus que nos deixará a poucas quadras de nosso hostal. E lá vamos nós não sem antes pararmos num super pra comprar bebida e comida. O hostal é destinado pra galera do surfe, daí que 99% dos hóspedes são jovens. Nosso quarto, amplo e bem iluminado, fica no coração da casa, o terraço, onde os hóspedes costumam se reunir ao redor duma comprida mesa seja pra conversar, beber ou comer. O banheiro é compartilhado. Convido Franco pra beber uma copa de vinho. Há que celebrar nosso reencontro. Dia seguinte, vamos eu, Raul mais Richard, um canadense de 50 e tantos anos, dar um rolê na praia de Las Canteras, sentando em bancos de pedra diante do Auditório Alfredo Kraus cuja imensa parede de vidro volta-se pro mar. Ali, ficamos de bobeira, curtindo os surfistas fazendo suas evoluções nas águas azuis do Atlântico. Resolvemos almoçar num dos vários restaurantes que há na avenida Jose Mesa y Lopez, escolhendo dentre o menu do dia um prato típico chamado garbanzada, que vem a ser um ensopado parecido com o mocotó. Dia seguinte, sem Raul, que prefere ficar no hostal, alugo uma bici. Pedalo até San Cristóbal, antigo povoado de marinheiros, pra comer no restaurante Los Botes, famoso por sua culinária. Difícil escolher algo dentre o apetitoso menu, mas me decido por croquetes de espinafre com presunto serrano mais pulpo gallega, regando tais petiscos com vinho da Gran Canaria. O dia está lindo, céu azul e temperatura amena. Como é dia de Reis, 6 de janeiro, feriado na ilha, Daniel e Maria Amalia vêm nos buscar pra conhecer seu sítio Las Hormiguitas, situado no município de Santa Maria de Guia, distante 20 km de Las Palmas. Após rodarmos na GC 2, uma autoestrada à beira mar, enveredamos por estreitas e sinuosas estradas beirando precipícios. Belíssima paisagem até Las Hormiguitas! Amalia está animada, cheia de planos, bem diferente daquela mulher tensa e ansiosa com quem convivi ano passado. Revela que a aposentadoria permite que ponha em prática velho sonho acalentado há anos: o de se tornar uma agricultora. Conhecimento ela tem porque se formou em agronomia mas por circunstâncias alheias a sua vontade foi impossível seguir na profissão. A manhã passa rápido, enquanto curtimos um mate ao ar livre, seguido dum almoço com boa comida caseira feita pelo casal. Como é hábito em lares espanhóis, terminada a refeição, acompanhamos os donos da casa no ritual da sestea. Após a soneca, eles nos levam pra conhecer o parque Natural de Tamadaba, onde ainda há bosques de pinheiros nativos, destacando-se o avantajado Pico de La Bandera. Dali vamos até Agaete, situada no noroeste da ilha, passeando por suas ladeiras emolduradas por casas brancas, muitas delas encimadas por balcões de madeira. Algumas ruas ao entardecer estão ainda iluminadas com motivos natalinos. Descemos à encantadora vila de pescadores de Puerto de Las Nieves, onde se pode saborear peixe fresco junto ao mar. Falésias de rocha escura se prostram diante do mar e não muito distante, avista-se a ilha de Tenerife e o seu emblemático vulcão Teide com 3.718 metros. Dia seguinte, vamos eu, Raul, mais uma argentina, que trabalha no hostal, em sistema de permuta, dar um giro no lado sul da ilha. Pra tanto alugo um carro por dois dias. Pegamos a GC 1, a mesma que leva ao aeroporto, seguindo até a praia de Los Ingleses repleta de apartamentos, condomínios e hotéis todos voltados pra turistada europeia, sobressaindo-se os escandinavos que compram, adoidados, imóveis na Gran Canaria. Curiosa sobre a Reserva Natural Especial das Dunas de Maspalomas, pra lá vamos, estacionando o carro a 3 km de distância de modo a caminhar um pouco pelo calçadão. A reserva tem 404 hectares compreendendo além das dunas, oásis de palmeiras e uma lagoa salobra. Escolho pra conhecer a região das dunas, caminhando por suas douradas e fofas areias. Muita gente indo à praia empunhando guarda-sóis e pranchas de surf enquanto alguns praticam na areia kitesurf orientados por seus instrutores. Um que outro gato pingado posa, discretamente, de nudista aninhado entre cômoros de areia. Nossa próxima visita ainda no sul da ilha é Playa de Mogán. A paisagem até lá é lindamente árida com vários túneis cortando as encostas de montanhas já que esta parte da ilha é super montanhosa. Como várias cidades e vilas da Gran Canaria, as casas são brancas com aberturas coloridas. Tudo muito mediterrâneo. Dia seguinte, sem Raul que prefere ficar no hostal onde já fez várias amizades, pego o carro e acompanhada de Maria Amalia, a quem apelido meu GPS humano, pois conhece a ilha como a palma da mão (aqui vive há 20 anos), vou conhecer o município de Tejeda. A cidade, localizado no centro da ilha, encontra-se aninhada numa depressão vulcânica, rodeada por uma montanha coroada por vários monolitos basálticos, dentre os quais os famosos Roque Nublo e Roque Bentayga. Fazendo jus ao nome, pouco vejo do Roque Nublo porque a neblina obnubila este símbolo de Gran Canaria. Tanto que quando vamos conhecer o Pico de Las Nieves, a segunda montanha mais alta da ilha com 1.956 metros, mal descemos do carro porque além de fazer 4º C baixou uma pesada cerração envolvendo a paisagem. A encantadora Tejeda, além de seguir o padrão de casas pintadas de branco encimadas por balcões de madeira, conta com outro atrativo: amendoeiras. Plantadas ao longo das ruas, as árvores já revelam suas delicadas flores nesta época do ano. A cidade, por isso, é especializada em doces, bolos e biscoitos feitos com esta fruta. Maria Amalia me leva a uma confeitaria pra que eu prove duas iguarias típicas da região: pasta de amêndoas, chamada bienmesabe, e torta também feita com amêndoas. Uma chávena de chá vem a calhar com tais guloseimas! Com esta excursão escoltada pela fina companhia da prima Maria Amalia, encerro minha estadia na Gran Canaria com a certeza de que retornarei, por supuesto!! 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Rabat

Terminado o trek ao Toubkal, retorno imediatamente a Marrakech pra pegar Raul que se encontra no hostal. Não só Marrocos como vários países que conheço não têm rodoviárias. O ponto de embarque e desembarque dos ônibus são nas companhias de transportes. Assim, nos tocamos pra CTM embarcando no busão que nos leva a Casablanca. Omar está a nossa espera no terminal. Mais uma vez ficaremos em seu ape mas será apenas por duas noites porque depois de amanhã estaremos viajando pra Las Palmas de Gran Canaria. Dia seguinte, nosso anfitrião nos leva a Rabat em seu carro. A viagem de 87 km transcorre na excelente rodovia A1 que liga as duas cidades. Rabat é a capital e a segunda maior cidade de Marrocos. Localiza-se igualmente na costa do Atlântico. Tem cerca de 1,6 milhões de habitantes. Como nosso anfitrião trabalhou durante a manhã vamos a Rabat no meio da tarde, motivo por que só conhecemos a Kasbah dos Oudaias, um dentre muitos lugares interessantes na cidade. Originalmente, foi uma pequena fortificação muçulmana, erguida a partir de 1150 pelo califa almóada Abde Almumine como defesa contra as tribos Berguata. Kasbah dos Oudaias foi território de piratas durante 200 anos. A fortaleza mantém-se até os dias de hoje, tendo sido restaurada pelos mouros no século XVI. Sua porta monumental chama-se Bab el Kebir. Com vista para a foz do rio Bu Regreg, avista-se no outro lado do rio a cidade de Salé e seu cemitério. O sol está se pondo deixando uma mancha alaranjada nas águas do Atlântico. Passeamos pelas estreitas e labirínticas ruelas da Kasbah cujas casas são pintadas de branco e azul anilina. Algumas exibem belas portas de madeira. Vasos com gerânios adornam paredes externas e janelas. O aviso na porta de entrada da velha mesquita adverte que está interditada a entrada pra não mulçumanos. O interior dos riads, como são denominadas as residências construídas em estilo arquitetônico árabe, exibem quartos e salas dispostos ao redor dum átrio central, geralmente com uma fonte no meio. Neste espaço a família se reúne pra conversar. No segundo andar ficam os quartos. Pequenas janelas com grades de ferro formam desenhos lembrando treliças. Serviam pras mulheres olharem pra rua sem serem vistas pelos homens. No terceiro andar o terraço. Quase no fim do passeio, o chamado dos muezins reverbera nas ruelas chamando os fiéis pra penúltima oração do dia. Quando saímos da Kasbah seus altos muros de 10 metros de altura e 2,5 metros de espessura estão iluminados.  Terminado o passeio, Omar nos leva ao restaurante Dar Naji que serve autêntica comida marroquina. A decoração é tipicamente árabe e não servem bebida alcóolica, apenas refrigerantes, sucos e chá. Um autêntico show a cerimônia do chá com o garçom fazendo malabarismos com o bule, despejando sem olhar o líquido fervente dum copinho pro outro numa altura de 1 metro sem derramar sequer uma gotícula fora dos recipientes! A comida, farta, consiste de Zaalouk: salada de tomates e beringela temperada com alho e especiarias e Taktouka: salada de tomates, alface, cebola e pimentão tostado regados a azeite de oliva mais cenouras marinadas, acompanhadas de pão. A última entrada é pastilla de galinha: massa folhada recheada com galinha (pode ser com frutos do mar) e polvilhada com açúcar e canela. De prato principal é servida Rfissa: massa, pedaços de galinha e molho mais Seffa Medfouna: massa cabelinho de anjo, pedaços de galinha, passas, amêndoas, canela e açúcar. Tal banquete foi uma despedida condizente com este país cuja cultura é riquíssima e não pode ser absorvida em uma viagem tão curta. Por isso, pretendo retornar e visitar outras cidades deste impressionante e espetacular Marrocos!

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Jbel Toubkal

Apesar da adulação, da insistência, Raul não topa me acompanhar na pernada de 3 dias até o cume do Jbel ou Pico Toubkal. Prefere ficar em Marrakech, no riad, onde já fez várias amizades. Eu teria curtido muito a sua companhia mas, enfim, não há como forçar um barbado a acompanhar sua mãe. Fã do princípio budista da impermanência às vezes gostaria de que os sentimentos se cristalizassem. Por exemplo, Raul, quando pequeno, se eu o convidasse pra ir ao inferno, iria feliz da vida. Agora nem pro céu aceita. Embora aparentemente pareça que me lamento, é só aparência. Cada qual no seu quadrado, vida que segue, e aceito na boa as mudanças que a vida me traz. Voltando, pois, ao Parque Nacional Toubkal. É o mais antigo dos 12 que há no Marrocos, fundado em 1942, situa-se no Alto Atlas. As montanhas do Atlas consistem em várias cadeias montanhosas que se estendem por 2.410 km desde a costa Atlântica de Marrocos até ao Cabo Bon, na Tunísia Oriental. No Marrocos, esta cordilheira exibe as maiores altitudes do norte da África, destacando-se o Jbel Toubkal com 4.167 metros, o segundo cume mais alto do continente africano, só perdendo pro Kilimanjaro, na Tanzânia. Assim, no dia seguinte a minha chegada do tour ao Sahara, parto de Marrakech sem meu filho levada por uma agência contratada pelo Whatsapp até Imlil Village. Contratos modernos são agora via celular! Imlil Village, a porta de entrada aos treks no PN Toubkal, encontra-se a 700 metros acima do nível do mar e distante 80 km de Marrakech. Há 3 vales no PN Toubkal: Imlil Valley, Imnan Valley e Azaden Valley. Nos 3 vales há 30 vilas assim divididas: Imlil Valley: 11 vilas, Imnan Valley: 10 vilas e Azaden Valley com 9 vilas. Em cada vila vive cerca de mil almas. Quando chego na vila Imlil de táxi, o dono da agência, que está me esperando, me conduz a um café onde me oferece chá. Lá sou apresentada ao guia Hassam e ao muleiro, também chamado Hassam, que acumula a função de cozinheiro. Antes da partida, alugo luvas e consigo emprestado um par de bastões porque quando saí do Brasil nem imaginava fazer alguma atividade esportiva desse tipo. Neste 1º dia, vamos fazer uma caminhada de esquenta visando o grande momento do trek: o ascenso ao Toubkal no 1º do ano!! Para tanto o guia escolhe a subida ao Tizi ou passo N’tmatert, situado a 2.267 metros dado o desnível de 1.500 metros desde a vila Imlil. Durante o caminho, cruzo bosques de coníferas sob um céu azul e sol brilhante. Ao chegarmos ao passo, o cozinheiro prepara almoço que como ao ar livre enquanto avisto, no distante vale Azaden, Tizi M'azik, outro passo de 2.445 metros; à esquerda despontam os 3.650 metros do Pico Agulzim e abaixo, no fundão de Imnan Valley, parecendo de brinquedo uma de suas vilas. Terminada a pernada, nos dirigimos pra Ait Souka, uma das 11 vilas do Imlil Valley, onde me hospedo num hostal super familiar, que vem a ser a casa do irmão do dono da agência que contratei em Marrakech. O canto do muezin chamando pra prece ecoa na vila à tardinha. Meu quarto é bom e tem banheiro privativo. O sinal do wifi é forte permitindo que eu veja filme na Netflix enquanto espero a janta. À noite faz frio pra caramba, afinal estamos a 1.500 metros de altitude. Dia seguinte, véspera de ano novo, deixamos Ait Souka, não sem antes o simpático dono do hostal fazer com que eu leve sua jaqueta, porque a minha está com um problema no fecho éclair. Que gentil esse bérbere!! Passamos pela vila Armed, maior vila do Imlil Valley onde o guia e muleiro nasceram, entrando no Mizane Valley onde o terreno começa a se tornar mais íngreme porque agora é só subida. Fazemos uma paradinha num armazém onde além de trocentas bugigangas, dentre elas carregador solar de celular, vende-se delicioso suco de laranja espremida na hora. A trilha é bem demarcada e dá pra se avistar as encostas das montanhas do Atlas cada qual, é claro, com um nome próprio. Nem me arrisco em perguntar os nomes delas porque a língua realmente é muito complicada de se entender. Quando chego aos 2.300 metros onde a vila de Sidi Chamarouch está localizada, sou agraciada com o som duma guitarra bérbere tocada por um jovem sentado num terraço. Mais adiante, o som dum tambor reverbera. Que beleza, meu bom Alá!! Estou encantada com tanta musicalidade em plena montanha do Atlas! Aliás, a música para os bérberes é algo muito natural e levada super a sério porque através das canções a história milenar deste povo guerreiro é passada de geração em geração. A vila Sidi - significa santo - Chamarouch é ponto de peregrinação pros mulçumanos e seu santuário fica no interior duma grande rocha arredondada pintada de branco. Há lojas vendendo artesanatos, pousadas e restaurantes com terraços. Num deles, sou acomodada, sendo-me servido o almoço. Sem muita fome devido à altitude, belisco alguns pratos, embora sejam apetitosos. A partir de Chamarouch, neve e gelo começam a dar pinta, mantendo-se o terreno, assim, bordado de branco até o refúgio. O tempo está excelente, sol radioso e temperatura agradabilíssima. Chego às 16 e 30, após 7 horas de caminhada, no lugar onde foram construídos 2 feios prédios de alvenaria escura que vêm a ser os dois refúgios de montanha do Jbel Toubkal. O mais antigo, com 100 anos chama-se Clube Alpino Francês, o segundo, bem mais novo, tem apenas 14 anos. Chão e encostas de montanhas ao redor cobertos de neve. Segundo meu guia tive sorte de ter sido acomodada no Clube Alpino porque o outro, comenta ele, não é tão bom. Lotadaço de jovens o refúgio, a maioria europeus, uns poucos africanos, e um que outro asiático. Os coroas são raros, não preenchem uma mão. Meu quarto no primeiro andar deve ter uns 12 beliches cabendo 24 pessoas. À noite, um casal, integrante dum grande grupo russo, se fantasia de papai noel e mamãe noel pra diversão de seus conterrâneos. Aliás, os russos destacam-se do restante dos demais hóspedes devido à sua animação: gargalhadas e gritaria reverberam por bom tempo num dos salões onde se faz as refeições. Protagonizo um bate boca com uma marroquina e seu namorado que “furtaram" meu beliche enquanto eu estava no refeitório, tudo porque queriam dormir lado a lado durante a noite. Ela se queixa dos meus modos ao dizer vous n'est pas gentil, ao passo que eu pego pesado e solto you are thief of bed. O namorado não dá um pio durante nossa discussão. Na madrugada do 1º do ano, saímos eu e meu guia às 5 e 15 do refúgio. A temperatura está em – 5º C. Calço crampons desde o refúgio, numa subida forte, até o Tizi N’Toubkal, quando então os sapatos de metal são retirados pois o terreno daqui pra frente é super pedregoso com enormes rochas ladeando a trilha. A 100 metros do cume o terreno se torna “plano”, livre de qualquer rochedo, já se avistando a estrutura metálica que sinaliza a reta final, ou seja, os 4.167 metros do Jbel Toubkal. É assim que às 9 da manhã, adentro 2020 não só com o pé direito como com o esquerdo pisando no topo da montanha mais alta do Marrocos. E com direito à trilha sonora The Wall, do Pink Floyd, que está rolando do celular dum britânico. Pouco depois, dois marroquinos põem pra tocar um jazz super sensual cantado por uma cantora bérbere. Uma farra musical toma conta do cume do Toubkal. Um casal de belgas oferece chocolates e o britânico me passa sua garrafinha de uísque pra eu dar um gole. Alá meu bom Alá, que baita entrada de ano me proporcionaste....shukraan lak!!