sexta-feira, 8 de abril de 2005

Hostal Real San Felipe

Hoje, dia em que estaria partindo rumo a San Pedro de Atacama, via Tacna e Arica, encontro-me ainda deitada nesse quarto de hotel no centro histórico de Arequipa, em repouso quase total, a não ser imprescindíveis idas ao banheiro. No sábado passado, quando fui fazer o rafting, no Urubamba, senti umas pontadas no quadril, nada assim tão alarmante, apenas um tanto quanto desconfortáveis. Durante a longa viagem até Arequipa, a dorzinha persistiu. Imaginei que seriam gases causados pela alimentação. E, agora, eis-me aqui, nesse estranho quarto. Embora haja três paredes normais de tijolos, a quarta, que se volta para o corredor, foi construída com vidro....e transparente! Vedando-a, há cortinas que, se cerradas, protegem nossa intimidade. Em resumo, estou hospedada num quarto-aquário (não é à toa que meu ascendente é Peixes....hehehe). Na cama, desde segunda- feira, excetuando a terça, quando visitei o belíssimo monastério Santa Catalina de Siena, mantenho permanentemente a tevê ligada (pelo menos estou a aprender bastante vocabulário em espanhol). Trato de estabelecer uma certa rotina, ótima, pra afugentar o tédio. Seja por causas das dores, seja pela minha imaginação - esta boa companheira -, acreditem-me! as horas nem custam, assim, tanto a passar. Desde 4ª feira, Marlene, mulher de Dom Carlos, tem feito a comida pra mim. Como diz Ronald – de dieta. Sempre pollito com arroz mais salada de alface e tomate. De sobremesa, gelatina, a não ser ontem que foi maiz morada, típica sobremesa peruana que lembra nosso sagu. Hoje resolvo pedir delivery vindo arroz chaufa com frutos do mar (é uma espécie de risoto, variando tão-somente o tipo de carne, que pode tanto ser de gado, de porco ou galinha) mais salada de brócolis, cenoura, vagem e ervilha torta, cozidos ao dente. Tudo muito bom. Aproveitando que estou a falar em comida, abro aqui um parentêsis pra falar da culinária peruana. Provei tudo que foi possível em termos de comida típica, desde a palta rellena (abacate recheado com cenouras, salsa, ervilha e vagem), à palta jardineira (abacate recheado com legumes mais galinha desfiada). Outra comidinha legal é o ají de gallina (galinha desfiada com molho de pimentão, leite, pão e alho). Dos bichos do mar, adorei o ceviche, feito de peixe, camarão ou frutos do mar marinados durante 30 minutos em suco de limão. Come-se com uma batata doce de coloração alaranjada (há mais ou menos 1.400 espécies de batata no Peru). Rocoto relleno é um pimentão recheado com carne, cebola e ovo. Há também o chupe de camarones, uma sopa ancestral, oriunda, vejam vocês, dos tempos dos incas. Considerada um prato típico da cozinha arequipenha é feita com camarão, peixe, ají, alho, pão ralado, leite evaporado, milho, batata, tomate, aipo, acelga, arroz, ovo e cebola. Das bebidas menciono a chicha, um refresco obtido a partir da fervura do milho, acrescido de suco de limão, maçã, casca de abacaxi e canela, enquanto a chicha morada é o mesmo refresco usando-se no entanto uma espécie de milho de cor roxa. São popularíssimas por aqui, servidas em jarras, e substituem os refrigerantes durante as refeições. Das frutas, provei a tuna, oriunda da família dos cactáceos, vendida nas ruas (duas por 50 centavos de sol), cor amarela ou verde, formato oval, cheia de sementes pequenas e escuras, sabor suave, insípido. Dos doces, cito a leche assada, outra sobremesa típica arequipenha: trata-se de um flan. Feito com leite é levado a cozer no forno em pequenas tigelas. Apresenta um leve sabor cítrico. Não posso esquecer de mencionar os sorvetes, outra especialidade arequipenha. Como estava curiosa de prová-los, Ronald, que sempre sai ao meio dia e retorna às 16 horas, foi encarregado de trazer a meu pedido 3 pedaços de torta helada: uma pra mim, e as outras duas pra ele e Rufo. Fecho, então, os parentêsis e volto ao mundo real: as dores, controladas pela medicação, tornam-se, portanto, mais suportáveis. O pessoal do hotel tem sido tão, tão legal, que talvez por isso nem me revolte com minha mala suerte. Em especial, Ronald, gerente do estabelecimento, sempre tranqüilo; como muitos peruanos, expõe, quando sorri, um fino friso de ouro emoldurando os dois incisivos superiores. Alto e levemente encorpado, usa óculos que lhe dão um ar sério embora tenha apenas 23 anos. Formado em Turismo e Hotelaria, em suas horas livres, dedica-se a servir de voluntário no Corpo de Bombeiros pois este serviço público não é remunerado, vivendo de doações e verbas governamentais (por isso ele conseguiu a ambulância desta instituição pra me remover pra lá e pra cá......pensando bem, nem tanta má sorte eu tive, não é mesmo?). Os donos do hotel, Dom Carlos e Marlene, preocupadíssimos com meu bem estar, têm sido incansáveis e gentis durante minha permanência de 10 dias no hotel, e olha que eu tive momentos bastante impertinentes, exigindo bolsa de água quente diversas vezes ao dia pra colocar na perna dolorida (seguindo orientação médica). Os demais funcionários são Rufo, misto de camareiro e faxineiro, sempre de bom humor, prestativo, atende aos meus chamados quase instantaneamente, e o Alex, recepcionista do turno da noite, conversa comigo nas madrugadas, me chamando carinhosamente de mamacita. Só fico sozinha quando quero! Escrevendo agora sobre esse episódio de minha vida, sinto uma saudade pungente de todo esse calor humano, dessa bondade e generosidade, daí por que nem me lastimei, tampouco me revolteicom o fato de as minhas férias terem sido interrompidas assim tão abruptamente. Fazer o quê, né?!

quarta-feira, 6 de abril de 2005

La turista desdichada

Eu transferira minha excursão ao Colca para quarta-feira. Entretanto, quando volto da visita ao convento Santa Catalina percebo que as dores retornaram. Tão incomodada me sinto que nem consigo sair pra jantar. Peço a Dom Carlos então que me faça um sanduíche. O bom homem faz dois, enormes. Mal dou conta dum pois a dor não dá quase trégua. Durmo mal nessa noite e de manhã, cedinho, vou me arrastando pra recepção do hotel; aguilhões incessantes de dor percorrem a perna esquerda além dum formigamento que torna a coxa dormente. Entro em pânico. Gemo sem pudor algum. Dom Carlos, apavorado, corre atarantado de um lado para outro. Enfim, chega o táxi e lá me vou mais Dom Carlos para a Clínica San Juan de Dios. Ao sair do táxi, carregada nos braços do motorista, urro de dor. Realmente, meus gritos são - como se diz nos romances - lancinantes. Posta numa maca, logo acodem vários enfermeiros, provocando sem querer um pequeno rebuliço no hospital. Sem demora, Dr. Zeballos surge atraído pela gritaria. Aplica-me uma infiltração com analgésico e antiinflamatório que alivia um pouco a dor. Ronald, gerente do hotel, chega logo após, comunicando que está à minha disposição uma ambulância do corpo de bombeiros pra me remover ao hotel já que eu não consigo sentar. Caso tente, aí mesmo as dores me fazem ver estrelinhas. E lá me vou eu de ambulância rodeada por quatro muchachos bombeiros, muy guapos, oh, oh, oh (a má sina, graças ao deus sol, não é assim tão completa), mais Ronald segurando minha mochila como um precioso tesouro (ele sabe que ali estam os meus documentos e dinheiro). É um dia de dores hor-ro-ro-sas, hor-ri-pi-lan-tes, te-ne-bro-sas, apunhalando a coxa sem um minutinho de trégua sequer (quando de volta ao Brasil, o diagnóstico do meu ortopedista foi certeiro: síndrome do piriforme, que vem a ser uma inflamação do nervo ciático). Não quero saber de comida; à noite, Ronald convence-me a ingerir algo argumentando que os remédios e injeções que estou a tomar são muito fortes, e, caso eu não me alimente, meu estômago sofrerá as conseqüências. Mal e mal engulo um purê de batata mais uns naquinhos de galinha. Ronald, sem desanimar, insiste paciente, más una cucharada, Beatriz (o querido Ronald até me dá comida na boca!). Cada ida ao banheiro é um suplício, sentar é extremamente torturante (os advérbios aqui têm de ser usados no aumentativo e mesmo assim não expressam toda a verdade). Quase nem durmo de 4ª para 5ª. Então, aciono o seguro de viagem, a Cia Aliança, sendo assim autorizada a realizar todos procedimentos médicos que se façam necessários ao meu pronto restabelecimento. Na quinta-feira, percebo que minhas férias foram pro beleléu. Lá vou eu novamente de ambulância - graças ao querido Ronald - fazer uma tomografia. Tão eficientes quanto simpáticos, os bombeiros trasladam-me com o maior cuidado da cama para a maca, de modo a evitar que eu sinta qualquer desconforto. Claro que é tarefa impossível, independe de qualquer habilidade, a dor existe, está lá, aguilhoando minha perna esquerda de forma tão cruel como nunca na vida eu sentira (poxa, nem o parto de meu filho foi assim tão doloroso). Terminado o exame, sou outra vez removida para a ambulância já com o resultado do exame pronto. Tomamos o rumo da Clínica Juan de Dios pois lá já me aguarda um neurocirurgião, acionado pra me examinar afim de descartar ou não qualquer doença que requeira seus cuidados. Insatisfeito com o resultado da tomo, exige seja feito um raio-x da região pélvica para se certificar de que eu não tenho nenhuma hérnia de disco. Sexta-feira, volto a mesma clínica onde havia feito a tomo e tiro um raio-x. Retorno à Clínica Juan de Dios. Dr. Gutierrez, o neurocirurgião, (mesmo na minha aflição, consigo observar que ele é um homem deveras atraente) examina as chapas e me diz que, de fato, hérnia de disco está descartada. Crê tratar-se de um traumatismo na região sacro-ilíaca. Dr. Zeballos examina-me novamente e concorda com o diagnóstico do colega, com certa relutância. Solicita, então, para maior acuidade no diagnóstico, a realização de uma ressonância magnética, feita neste mesmo dia. Outra infiltração (as duas infiltrações foram aplicadas na espinha - região lombar - demandando certos cuidados porque se mal aplicadas, meu deus, pode até paralisar o sujeito, no caso, euzinha). Ainda na clínica, pergunto ao bom doutor se posso tomar banho (desde 2ª feira não me lavava). Concorda e brincando comigo (é um senhor de seus 60 anos) acrescenta que se eu precisar de ajuda para tal, ele está a minha disposição, pode? Respondo: "sem problema, doutor, desde que o auxiliem esses queridíssimos muchachos bombeiros" (eles ficam durante o tempo em que dura o exame ao lado da cama onde eu estou deitada). Demos risadas e o ambiente se descontrai. Volto ao hotel, passo a tarde vendo tevê (programas de culinária, meus favoritos), e à noite Dr. Zeballos me visita, comunicando que a seguradora telefonou-lhe duas vezes discutindo meu retorno ao Brasil. Como eu estava em Arequipa seria necessário ir a Lima pra de lá então pegar o avião que me traria ao Brasil. Numa maca, dentro do avião, impossível, anuncia Dr. Zeballos, a não ser, pondera o amável doutor, que eu fosse até Lima de ambulância (não consigo, ainda, me sentar de jeito algum), hipótese essa descartada, de plano, por mim (apavoro-me com tal perspectiva porque a distância entre as duas cidades é mais ou menos 1.000 km). Dr. Zeballos sugere que eu vá de 1ª classe pois as poltronas reclináveis num ângulo maior do que as da classe econômica permitirão que eu não sofra muito desconforto durante a viagem. Assim é feito (meu primeiro soutien não foi tão emocionante quanto voar naquela cabine cheia de confortos e privilégios). Em todo esta via crucis, Ronald sempre tem me acompanhado, deixando de lado seu trabalho no hotel (lógico que autorizado por Dom Carlos). O rapaz é tão incansável, amável e querido que ocupará sempre um lugar em meu coração. Minha tia Janina, quando hoje me telefonou (sábado), comentou que conhecer pessoas boas vale mais que apreciar belas paisagens. Concordo em parte com a minha boa tia, prefiro, entretanto, conhecer ambas, hehe.

segunda-feira, 4 de abril de 2005

Convento de Santa Catalina

Acordo bem cedo porque o guia vem me buscar às 8 da manhã pra irmos ao canyon Colca com pernoite em Chivay onde eu ficarei 2 dias. Enquanto espero, começo a sentir fortes dores na região lombar, na parte posterior do quadril esquerdo. Dom Carlo e eu pensamos que é pedra nos rins. Como a dor é realmente insuportável, cancelo a viagem a Chivay e vou consultar na Hogar Clínica San Juan de Dios. Em lá chegando, tratam como se fosse cálculo renal. Recebo de imediato Buscopan na veia e sei lá mais o quê. O exame de urina não acusa qualquer infecção. Vem o médico de plantão e conversa vai conversa vem, chega à conclusão que meu problema é na coluna. Entra em ação o ortopedista, Dr. Juan Alberto Zeballos que me conforta exclamando alegremente: gran deportista es esa señora! Diagnostica hérnia de disco. Volto ao hotel com recomendação de guardar repouso durante 2 dias. Caso melhore posso então ir na quarta-feira ao tão sonhado trekking no Colca. Na terça, acordo bem melhor mas não consigo ficar muito tempo sentada. Sigo então a sugestão de Dr. Zeballos e vou visitar o monastério Santa Catalina. Ah, esse convento de clausura é qualquer coisa de lindo! É uma cidadela que ocupa um enorme quarteirão, tendo sido fundado por freiras dominicanas no final do século XVI. Tem 3 claustros, 6 ruas, 80 casas que serviam de moradia às religiosas (em regra, quarto, sala para orações e uma cozinha, além de um pequeno jardinzinho, o que não deixa de ser uma suíte bem arranjadinha, não é mesmo?), uma praça, a igreja, o cemitério, um locutório (utilizaram na construção desta peça uma pedra que filtrava a luz do exterior de modo a impedir que se visse com nitidez o rosto das freiras) dotado de uma roda permitindo assim a troca de alimentos sem que houvesse contato físico entre os visitantes e as monjas. Todas as peças têm o teto abobadado. Afora o dote tinham as monjas de contribuir com alimentos para suas refeições diárias. Levavam ainda um enxoval que, entre outros itens, incluía objetos como travesseiros e 2 colchões (achei tão curiosa essa exigência!). As monjas se distinguiam entre as que usavam véu preto e aquelas que vestiam o branco. As que usavam véu preto eram provenientes da classe alta arequipenha e deveriam ser virgens. Mas a exigência da virgindade como um dos requisitos para o uso de véu negro se abrandava diante de viúvas e separadas que possuíssem grandes dotes a serem doados à instituição religiosa (ah, o poder do vil metal! Por supuesto derruba barreiras). Durante o noviciado, as noviças não podiam manter contato com amigos e familiares. Tinham direito a uma serva somente as monjas de véu preto. Já as beatas eram mulheres que, em tudo imitavam as freiras, sem contudo jamais lhes ser permitido o privilégio de professar os votos religiosos. Na verdade, os conventos eram lugares onde as mulheres desfrutavam de relativo conforto caso tivessem dinheiro para sustentar tais regalias. Se de origem humilde, suas habitações eram coletivas, sendo-lhes imposta a execução de serviços grosseiros. Às de véu preto eram reservadas tarefas nobres como a confecção de bordados delicados em vestes sacerdotais e àquelas destinadas às imagens sacras. As roupas confeccionadas por elas são lindamente enfeitadas com rendas e bordadas com pedras preciosas. Passeando pelas ruas daquela cidade-convento imagino como seria a rotina de suas moradoras: acordar cedíssimo, ainda noite escura, rezas, realizar as tarefas diárias, rezas, costurar, rezas, cozinhar, rezas, bordar, mais rezas, até que chegasse a hora de dormir (com certeza ainda dia claro, já que saiam da cama lá pelas 3 da madrugada) com nova bateria de rezas. Rola um boato - sem qualquer comprovação, viram? - de que elas sofriam de problemas nos joelhos, as coitadas. Imagino que se deva ao fato ficarem tanto tempo ajoelhadas entoando suas preces, pobrezinhas! As cores com que são pintadas as casas e ruelas passam do azul genciana ao amarelo, tornam-se brancas, e num arroubo mais circunspecto transformam-se em ocre, tudo muito, muito colorido apesar da austeridade do lugar. Canteiros e vasos de gerânios floridos enfeitam as vielas e os peitoris das janelas. Sinto ganas de aqui viver, o lugar incita mesmo à reflexão e desconvida à pressa ansiosa, um mal do nosso século. Eu aposto que se algumas das boas freiras sofreram de gastrite não foi causada pela ansiedade, e, sim, talvez, por comerem demais.

domingo, 3 de abril de 2005

Ciudad Blanca

Meu objetivo em ir a Arequipa é o de conhecer o canyon Colca, o segundo maior do planeta. Fazer um trekking lá e depois seguir até Atacama pra conhecer o famoso deserto chileno. Então saio de Cusco às 7 da manhã. Umas duas horas depois de iniciada a viagem, entram duas índias vendendo um pão redondo, bem quentinho e achatado, apontando o desuso do fermento na massa. Praticamente todos os passageiros compram pão. Sou só eu de turista no ônibus, o resto dos passageiros são peruanos. Senta do meu lado uma velha mulher vestida com trajes típicos. Não demora muito inicia uma conversa contando, orgulhosa, que vai visitar seu filho, muito bem estabelecido numa outra cidade, não muito distante de Cusco. Escuto a simpática senhora desfiando loas sobre seu rebento e com pena me despeço dela, vendo-a descer do veículo com certa dificuldade já que é muito gorda. E o ônibus para em várias cidades pegando e largando gente, mas era vapvupt, nem dava pra descer e esticar um pouco as pernas. Quando chega a hora do almoço, entram mais duas mulheres vendendo comida: pedaços de carne de porco assada e batata doce cozida envoltas em sacos plásticos (há dois tamanhos, um maior custando 3 soles e outro menor de 2 soles) mais um pequenito contendo um molho picante. Grande parte dos passageiros compra a comida e assim vão comendo, vagarosamente, usando as mãos, bem tranqüilos. Limpam as munhecas ora em guardanapos de papel ora nas próprias roupas, como posso bem observar. Não ouso comer tal alimento. Dessa vez banco a típica turista enojada, louca de medo que mais tarde possa me causar transtorno gastrointestinal. Vou beliscar algo só quando surge a oportunidade de descer numa das cidades por onde passamos, daí compro um pacote de biscoitos salgados. Durante a longa viagem (quase dez horas dura o trajeto Cusco-Arequipa) observo a transformação na paisagem: de Cusco a Juliaca, os grandes cerros cobertos de mata verdejante; a partir daí, as montanhas perdem altura, suas encostas suavizam-se e a vegetação rareia até ceder lugar a um terreno árido pontuado aqui e ali por cactos. Surge, então, Arequipa - um oásis encravado num vale de montanhas andinas desérticas - eleva-se a 2.300 metros acima do nível do mar. Em seu entorno, avistam-se três vulcões, o mais conhecido é El Misti. Os outros dois apresentam seus cumes nevados. A cidade é coberta por uma névoa que esmaece os contornos dos cerros que a cercam; muitos de seus edifícios são construídos com uma pedra de origem vulcânica, o sillar, cuja coloração branca produz um efeito luminoso quando neles incidem os raios solares. É uma cidade plana e como todas as cidades peruanas tem uma Plaza de Armas rodeada por prédios com arcadas (ironicamente esta marca espanhola na arquitetura reflete, por sua vez, os anos de dominação árabe na península ibérica) onde em restaurantes ao ar livre se desfruta o bulício da plaza e o verdor das palmeiras que a enfeitam. Num de seus lados, ergue-se, imponente, a catedral ocupando um quarteirão. No lado oposto, ergue-se, na esquina, a igreja da Companhia de Jesus com sua fachada em sillar ricamente esculpida. Como hoje é domingo, o movimento nessas duas igrejas é intenso e a plaza ferve de gente passeando por suas alamedas e sentadas em seus bancos. Observo que os habitantes de Arequipa são mais tranqüilos que os cusquenhos. Praticamente inexistem mulheres e crianças te abordando nas ruas, como em Cusco e Lima, com aquela arenga suave e constante tentando vender alguma quinquilharia. Os táxis entopem as ruas estreitas da parte histórica da cidade. Parece haver um veículo pra cada três habitantes. Espanto-me com a quantidade, será que os taxistas ganham um bom dinheiro com tal concorrência? Assim também os restaurantes, quatro ou cinco em cada quadra, com os garçons te aliciando pra degustar o arroz chaufa ou um ceviche. E as confeitarias, ah, as confeitarias! chamam a atenção com suas vitrines exibindo faceiros antojitos de arequipa (cones de papel pardo contendo bolachinhas recheadas com doce de leite), orgulhosos bolos coloridos, enormes, altos, enfeitados com casquinhas de sorvete recheadas com mousse, merengue ou nata, e....ah, sim, os trêmulos leches assados. Comi pelos olhos, e como!! Arequipa tem uma temperatura agradável nessa época do ano. Um solzinho gostoso produz um calor ameno durante o dia, permitindo o uso de bermuda e manga curta. Lá pelas quatro, cinco da tarde, o céu fica nublado e a temperatura diminui. Hora de trocar a roupa por outra mais quentinha. Volto ao hotel, coloco uma calça comprida, pego minha jaqueta e vou atrás de um restaurante pra provar os famosos ceviche e pisco sour, aliás, de-li-ci-o-sos!! Não é só japonês que sabe fazer peixe cru, não! No Peru (até que rimou, mas não era essa a intenção, viu?), fazem às mil maravilhas. Pra quebrar o sabor forte do peixe cozido no limão e temperado com sal e pimenta, surpreendam-se: deliciosas batatas doces cujo colorido fortemente alaranjado contrasta com a branca tessitura do peixe. Rebatendo tudo isso o gostosésimo pisco sour...dos deuses, gente, muchomucho bom (só bebo uma taça, quando viajo sou bem comportada). Durmo feliz e reconfortada nessa noite, sabendo que o dia seguinte irá ser melhor ainda já que eu irei lá pras bandas do Colca, onde os condores planam graciosamente sobre a grande garganta deste famoso canyon. Mal sabia eu que só o conheceria de fotos assim como muitos de vocês que me leêm....porém essa é estória pra ser contada outro dia!

sábado, 2 de abril de 2005

Rafting no rio Urubamba

Antes de partir pra Machu Picchu, já deixara agendado um rafting no Urubamba pra quando retornasse a Cusco. De manhã, o pessoal da agência me busca no hotel e lá me toco com mais um bando de jovens estrada afora. Chegando ao local, num certo ponto do rio, nos é servido um almoço leve. Comemos e descansamos um pouco. Começam os preparativos para a descida rio abaixo. Capacetes e coletes salva-vidas são colocados. Não é meu primeiro rafting. Eu já houvera feito um no Rio Paranhana, situado perto de Três Coroas, município do Rio Grande do Sul. Sabia mais ou menos o que tinha de ser feito. Mesmo assim presto atenção às orientações do instrutor. Embora a agência, nos prospectos, garantisse que os guias são bilíngues (espanhol e inglês), o cretino do guia fala o tempo todo em inglês, já que do grupo todo, composto de europeus e americanos, só tem eu de latinoamericana. Mas bah, não deixo por menos. Estrilo. O nojento do guia nem aí pra mim. Ignorando meu protesto, mantém a prosa em inglês (foi o único peruano realmente antipático e rude de toda a viagem). E dê-lhe a se fresquear o tempo todo prumas inglesas Eu me sinto deveras aborrecida e desrespeitada com aquela atitude e, não sei se por isso ou porque já sentia uma dorzinha apontando na região lombar, não curto muito o rafting. Ademais, a paisagem ao redor do Urubamba não é lá essas coisas e suas águas amarronzadas nada tem de atraentes. Ouso dizer que o rafting do rio Paranhana é bem mais excitante, já que o cenário avistado em suas duas margens – uma mata atlântica pra lá de linda – dá de dez a zero na do rio peruano. Ambos os rios são de nível II, portanto não oferecem grandes riscos, porém o brasileiro é bem mais estreito e raso, de águas límpidas e esverdeadas. Afloram à sua superfície, amiúde, rochas ora pontiagudas, ora arredondadas, seja a beira de suas margens seja atravessadas no meio de seu leito. Ora, isso provoca maior carga de emoção porque você fica com medo de se chocar contra elas. E dê-lhe se desviar dos rochedos durante a navegação. Sem falar do medinho que se sente ao imaginar que o barco possa virar numa manobra inapta. Terminado o passeio, voltamos pro ônibus. Durante a viagem de volta pra Cusco sou solenemente ignorada pelo guia que convida a todos - exceto eu - para ver a filmagem do passeio na sede da agência. Como se eu me importasse muito com isso....pufff! Quero mais é distância daqueles boçais que me trataram como uma turista de terceira categoria. Quando chegamos em Cusco contrato um chollo táxi e dou uma banda pela cidade pra me desforrar da frustração do malfadado rafting no Urubamba.

sexta-feira, 1 de abril de 2005

Banhos nas Termas

Há em Águas Calientes, como o próprio nome indica, várias fontes termais onde se pode tomar relaxantes banhos após a trilha. Na sexta-feira, acordo e me dirijo a uma delas. Lá fico por uma hora deixando meu corpo cansado imerso nas águas tépidas. Como tenho de pegar o trem de volta a Cusco, saio das termas e vou passear um pouco pela cidade, situada ao sopé da colina onde foi construída Machu Picchu. É uma cidade nova, nada tem de antiga, lembra-me vagamente o Rio de Janeiro, já que cercada por abruptos morros pontudos deixando entrever, em meio à espessa vegetação que os cobrem, a coloração escura de suas rochas. A cidade situa-se, na verdade, no canyon do rio Urubamba (vem a ser este rio nada mais nada menos que um dos tributários do nosso Amazonas), dando por isso a impressão de ser quase sufocada por essa sucessão circular de morros em cujo meio ela se encontra. Rasgada em duas pelo rio, cujas espumentas águas amarronzadas escorrem céleres e barulhentas por entre os grandes blocos de rocha de seu leito, unem as margens, onde se localizam os dois setores da cidade, duas ou três pontes. Caminho pelas ruas estreitas parando aqui e ali pra tirar fotos, percorro ladeiras de algumas ruas transversais à avenida que margeia o Urubamba, avistando num ângulo de 360º as imponentes formações rochosas, algumas exibindo um denso círculo de nuvens que encobrem seus topos. Estou a 2.300 metros acima do nível do mar. Escolho um barzinho simpático com telhado de palha e cadeiras de vime dispostas ao ar livre pra bebericar uma cervejinha enquanto curto umas galinhas e um galo que por ali ciscam em plácido sossego. Às duas da tarde meu trem parte para Cusco e lá vou em direção à estação de trens. Não demora muito, o trem vermelho e amarelo apita anunciando sua chegada. A gare regurgita de turistas, numa babel de línguas e pessoas entusiasmadas com as recentes aventuras vividas. Embarco em meu vagão e, por sorte, sento-me num banco à direita de onde posso durante boa parte do percurso enxergar o Urubamba cujo ímpeto nervoso só arrefece depois de transcorridos dezenas de kilômetros. A ferrovia atravessa vários túneis escavados nas rochas. Ao longo dela, mais ruínas incas, algumas situadas perto de seus trilhos, construídas nas encostas dos cerros, à esquerda da via férrea. Não muito longe de Cusco, o Urubamba cede lugar a um de seus afluentes, cujas águas chamam atenção devido à sua tonalidade avermelhada oriunda dos resíduos de argila que sua correnteza arrasta dos cerros por onde atravessa. Para me entreter durante a viagem de 4 horas, recordo da emoção que havia sentido na sexta-feira santa em Cusco, quando à noite tive a oportunidade de admirar a procissão de Nosso Senhor de Los Temblores. O cortejo solene, formado por uma multidão de fiéis, orava com fervor em voz alta. No centro desfilava, seguro por vários homens vestidos de preto, circunspectos, um magnífico andor onde, estendida, jazia uma imagem do Cristo, protetor da região contra os tremores de terra que tanto a abalam. Chego a Cusco à noite, o brilho das luzes das casas e dos postes de iluminação das ruas indicam que mais uma vez retorno à urbe.