domingo, 30 de agosto de 2015

Cemitérios à Beira Mar

Domingo de céu nem tão aberto assim quando saímos de Mundaú às 7 da manhã rumo a Icaraí de Amontada, Johny, o mesmo barqueiro da navegação que fizéramos ontem à tardinha no rio Mundaú, nos atravessa pro outro lado da península. Se assim não fosse, teríamos que adentrar o continente, pegar 2 rodovias, a 163 e a 168, pra voltar a pedalar na praia. Colocadas as bicis no barco, não dá 15 minutos e já estamos no outro lado da península, poupando precioso tempo. Próximo a Mundaú, ainda se vê vegetação de mangue, devido à presença do rio. Tô começando a apreciar esse vento, a um porque ele é favorável, e a dois porque evita que eu sue como uma condenada. A primeira praia pela qual passamos é Baleia seguida de Apiques. Contudo, a ordem de Comandante Alencar é seguir em frente, sem paradinhas e assim aproveitarmos a larga faixa de areia deixada pela maré baixa. Caso sejamos pegas pela preamar, teremos de pedalar, ou melhor, empurrar as bicis ao longo de 3 km de arrecifes, próximos às dunas. Conforme ensinamento de Nara, o bom é sair quando a maré cheia está nos seus últimos suspiros, num movimento de recuo, iniciando a expor, assim, maior extensão de terra. Ao contrário do dia anterior, algumas nuvens de coloração acinzentada fogem da usual brancura que costumam exibir. Será que choverá, pergunto aos meus botões? Ao longo da costa, as folhas dos coqueiros farfalham ao vento. Paro duas vezes pra fotografar dois pequenos cemitérios pousados sobre dunas. Com seus túmulos branquinhos, caiados de cal, singelas cruzes de madeira escura assinalam sua origem cristã. Desde Lagoinha, as indefectíveis estações eólicas têm dado o ar da graça, exibindo a bizarrice moderna de seus moinhos de vento. Urubus repartem entre si o enorme corpo morto duma tartaruga. É o ciclo natural da cadeia alimentar: atiram ao mar os pescadores suas redes em busca do peixe-sustento, ao passo que os urubus se atiram às carniças. Uma extensão grande de recifes, cujos afloramentos estão bem visíveis em razão de a maré ainda estar vazando, forma piscinas naturais cheias de água transparente tão clarinha é. Muita gente pesca nos atóis, aproveitando a maré baixa. Ultrapassado enfim o tal pedrario, Comandante Alencar permite que paremos em Caetanos de Cima. Eu louca que estou pra bebericar tanto água de côco quanto ypioca, fico desapontada quando a encarregada do Bar e Restaurante das Mulheres avisa que está sem água de côco, tampouco vende cachaça. A explicação de não vender o destilado tem origem no tanto que botam boneco (tradução do cearês: badernaço de bebum) os homens ao beberem a danada. Pra minha alegria, mal pedalados 2 km, eis Caetanos de Baixo, com mais opções de barzinhos que o de Cima, e, graças a deus, sem as rígidas regras do estabelecimento anterior. Capitaneado pela falante Claudia, entramos no Estrela do Mar, fresca tenda coberta por folhas de coqueiro, que serve não só água de côco como ypioca. Tento avisar Comandante Alencar e Menina Brandão mas fico em dúvida se entenderam meu gestual sinalizando nossa paradinha porque as duas queridas estão 200 metros além. Felizes da vida que nem pinto no lixo, eu e Cris nos lavamos na água de côco, além de cerveja – ela -, e esta senhorinha de ½ idade, na branquinha. Claudia gentilmente nos dá pra provar 2 espetinhos camarão ao alho e óleo. Oxente, boa demais essa vida! Percebemos eu e Amotinada Tavares que Comandante Alencar se equivocou em relação à localização da temida faixa de pedras, porque é aqui, próxima a Icaraizinho, que a dita cuja se aninha. Na beira d’água, os primitivos currais de peixes feitos com escuras varetas fincadas no mar, à semelhança dum labirinto, atraem os peixes pelas sombras que lançam à água. E dale a atravessar pequenas barras formadas por riachinhos. Delícia tudo isso! Já em Icaraí de Amontada, praia, atualmente, eleita a queridinha dos fortalenses, apelidada carinhosamente de Icaraizinho, tem um ar de paraíso perdido, segundo os nativos, semelhante à Jericoacoara de 20 anos atrás. Pousadas charmosas com boa infra atraem os turistas de maior poder aquisitivo. Porque açoitada essa parte do litoral durante alguns meses do ano pelos fortes ventos alísios, a prática do kite surf vem cada vez mais se difundido, o que seduz a galera jovem e descolada da capital. E após pedalarmos 41 km em 4 horas e 45 minutos, chegamos à pousada Villa Mango, onde celebraremos com um baita almoço o memorável pedal. Sorridentes, faceiras, inesperadamente, uma cachoeira de água geladésima cai sobre nós na forma de nova reprimenda aplicada por Comandante Alencar! Tudo por causa de nossa breve parada no Estrela do Mar. Além de nos penalizar com frio tratamento, decreta nosso banimento sumário de futuros pedais a serem organizados por ela. Valha-me deus, Comandante Alencar, dessa feita não lhe dou razão alguma, não! E acredite se quiser, a meiga cearense foi emburrada até Fortaleza!!

sábado, 29 de agosto de 2015

Arribação em Mundaú

Embora, hoje, sábado, não tenha pedal,  Nara dá toque de alvorada às 7 da matina. Só falta a corneta pra gente se sentir num quartel. A guria cearense é linha dura, oxente, motivo por que começo a chamá-la de Comandante Alencar. E lá vamos nós, após o desjejum, caminhar ao longo da praia. Nuvens encobrem vez por outra o astro-rei, motivo por que nem me preocupo em cobrir minha alva barriga. É um desastre a coloração deste meu corpitcho: somente rosto, braços e pernas – estas um pouco acima dos joelhos - bronzeados. O resto, duma brancura europeia, graças aos antepassados maternos, oriundos do norte da Itália. Quando estamos voltando pra casa, Nara, com sua fala mansa, em tom sempre baixo, começa a me dar um pito por causa do que rolou ontem. Afe maria, e eu até então crente que não resultaria maiores consequências da nossa irrefletida decisão. Triste engano, o meu! Deixem estar que vou revelar tudinho o que se passou. E deus que nem me perdoe se não é a pura verdade o que passo então a contar. Pois tudo iniciou quando, ontem, ao pararmos em Flecheiras, Nara, cuja bici não é das mais adequada às areias praianas, comunicou que iria pedalar na rodovia. Deixou, contudo, nós três livres pra continuarmos o pedal pela praia. Parceria é parceria, disse eu, e assim ficou decidido que iríamos juntas as quatro asfalto afora. A Comandante e Menina Brandão largaram na frente, ficando eu e Cristina pra trás, tudo tudo porque a paisagem pedia pra ser filmada. Nesse ínterim, Nara e Alu já se haviam se distanciado de modo que as perdemos de vista. Bueno, percorridos cerca duns 5 km, Cris se queixou de que tava foda pedalar na estrada pois o calor emanado do asfalto era demais pra bola dela. Convidou-me então pra voltarmos a pedalar à beira mar. Sem muito pensar, aceitei a proposta, e embicamos em direção à praia. Quando chegamos a Mundaú, Comandante e Menina não estavam em casa. Iva, que ali já se encontrava há horas porque fora de auto, diz que Nara, preocupada, pegara o carro pra averiguar o que nos acontecera. Baaah, pensei na hora: fudeu!! No retorno, Nara indaga por onde viéramos. Cris e eu damos uma enrolada, não abrindo totalmente o jogo. Explico que, um pouco antes de chegarmos a Mundaú, decidimos abandonar a estrada e vir pela praia pra curtir o visual. Porém a perspicaz Nara, como boa psicanalista que é, sacou a real mas deixou quieta nossa ½ verdade. E guardou a ralhação pro dia seguinte, nos fazendo crer que estaríamos livres de qualquer questionamento. Nem cogito em me defender. Aceito a reprimenda e, como boa cristão cheia de culpa, peço perdão pra ganhar a absolvição e, assim, me sentir aliviada. Feitas as pazes, voltamos novamente a ser amiguinhas. Ainda pela manhã, vamos, Menina Brandão, Comandante Alencar e eu, a Amotinada Azevedo (como passei a me autointitular após o imbroglio), até as dunas que circundam o rio Mundaú, onde está plantado outro parque eólico. De dentro d’água, curto, fascinada, o girar incessante das gigantescas pás metálicas desses modernos moinhos de vento. No almoço, encanto Iva, exibindo minhas habilidades de barwoman, ao preparar caipirinhas de limão com uísque ao invés de cachaça. Jamais passou pela loira cabeça de Iva, minha irmã de tragoleu, ser possível o uso de tal destilado neste famoso coquetel brasileiro. Como a beberagem foi forte, o corpo pede um descanso. Assim, sesteamos até as 16 e 30 quando então saímos prum passeio de barco. A pequena embarcação a motor, pilotada pelo jovem e simpático Johny, percorre um trecho do rio Mundaú cujas margens exibem cerrado manguezal. Um labirinto só esses mangues formados por tramas de retorcidas e intrincadas raízes expostas ao ar livre. Na vazante, os pescadores pegam, com as mãos despidas, os caranguejos que se escondem em tocas, cavadas rentes às lamacentas margens. Quando retornamos ao cais, o fenômeno da super lua cheia, que a torna maior e mais brilhante que o normal, arranca exclamações de admiração da Amotinada Tavares. Por ter se aventurado num belo tragoleu antes, durante e pós almoço, a sempre contida Cristina, que mede cada palavra dita, tá sem trava na língua. E como toda bebum, seu conversê limita-se àquela cantilena efusiva e repetitiva tipo “olhem, coisa mais linda, bota lindo nisso, olhem!!”, pontuando tudo com alegres risadinhas. E atrás das dunas, a lua, à medida que vai subindo, perde sua coloração alaranjada para assumir de vez sua usual brancura.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Luminosidade litorânea

Há coisa dum mês recebo um telefonema com prefixo 85 e logo me questiono “donde do Brasil, oxente?” Era Nara Alencar, direto de Fortaleza, a quem conhecera faz 3 anos durante um baita pedal em Urubici. Claro está que não ficamos todo esse tempo sem nos ver, porque coisa dum ano depois, ela me convidou pra pedalar na capital cearense e adjacências. Aceitei no ato e me toquei de mala, mas sem cuia! Dessa feita, a guria me convida pra passar um fim de semana de modo a participar do pedal 4 Mulheres e um Destino. E agora, eis euzinha, esta senhorinha de ½ idade que vos escreve, uma vez mais, retornando à terra de José de Alencar. Serão por acaso tais sobrenomes? O de minha amiga e do grande escritor? Preciso indagar Nara sobre. Do aeroporto, após os festejos de praxe, sou levada pelas cearenses Narita e Alu Brandão  prum restaurante de massas. Intimamente, troco uma ideia com meus botões e faço aquela cara de desgosto que expressa “comer massa? aqui, no Ceará?” Pois não é que tive de dar o braço a torcer?! O restaurante Pasta e Pizzas tem em seu menu não só as tradicionais massas, apelidadas de forno e especiais de fogão, como ainda as assim denominadas massas de fogão, que vêm a ser aquelas com frutos do frutos do mar, abundantes no litoral cearense. De lamber os beiços a comilança. Difícil resistir e não pedir bis, tris e sair rolando tão boas as pastas são. Um arraso o fettucini Maria Izabel, com carne de sol refogada com cebola, molho de tomate e creme de leite. Além do ponto de cozimento perfeito, bem al dente, os temperos e os ingredientes fazem a delícia de meu paladar. Além de mim, Nara (a idealizadora espiritual do pedal) e Alu (embora debochada, é amiga leal, ciclista de ocasião e entusiasta das aventuras na natureza), também se encontra à mesa Cristina Tavares (única conhecedora de rudimentos básicos de mecânica de bici, a maranhense, dona dum humor peculiar, trata todo mundo de colega)E pra coroar tão lauto jantar, aquele toquezinho sulista na refeição: espumante gaúcho, bem geladinho pra brindar o tão aguardado pedal. De pancinha cheia, adormeço tal qual um anjo. Acordo na sexta- feira, passado um pouco das 5 da manhã, e vislumbro através da janela uma baita claridade! Devido ao dia amanhecer cedo nesta parte do país, e também por causa do calor, às 6 e 30, quando saímos de Fortaleza – não de bici ainda e sim de carro - bastante gente já está correndo no calçadão à beira mar. Ivanara, irmão de Nara cujo nome de batismo é Ianara, nos deixa em Lagoinha, distante 100 km da capital, donde o pedal iniciará. Esta praia, pouco explorada pela turistada, exibe um visual lindo formado por dunas, coqueiros e falésias avermelhadas, que se situam a 100 metros do mar, se tanto. Pequenos percalços com as bicis de Nara e Cristina nos obrigam a parar. A da primeira, um freio reticente enquanto a da segunda, o guidão foi montado ao contrário. E não é que a criatura ainda pedalou uns 500 metros com a bici assim? Na primeira praia após Lagoinha, a sossegado Guajiru, fazemos um bem vindo pit stop. Peço uma água de côco de modo a hidratar o organismo pro que vem depois: a deliciosa cachacinha cearense. Nem bem pedalados 7 km, nova parada em Flecheiras, no bar duma bela pousada, em frente à imensidão verde do mar. Amiúde, despontam, na faixa de areia, piscinas naturais resultantes da ação da maré alta. Peço uma dose de Ypioca ao passo que as gurias vão de cerveja. Como sei que o povo de outros estados adora quando os gaúchos falam à moda gaudéria, solto o famoso “baaah tche, barbaridade de boa essa Ypioca!” Elas adoram escutar eu falando "bah".... hahaha!! Embora não seja de rajadas, o vento é constante. Sorte nossa que sopra numa direção predominantemente SE-NO. Não à-toa, Narita, espertamente, bolou o percurso rumo ao norte. Em diversos momentos não se faz necessário pedalar: o vento se encarrega de empurrar a bici como se ela fosse um veleiro. Nas praias próximas às vilas de pescadores, coloridas velas de kite surf enfunadas se erguem em rápidos vôos rentes ao mar. Céu de brigadeiro sem nuvem alguma embaçando o sol. A lisura da praia só é interrompida por pequenas covas causadas pelo refluxo da maré. Várias barras formadas por riachos em cujas margens formam-se degraus. Contudo não de molde a obstaculizar a travessia das bicis. Ao longo da costa que conduz a Mundaú, perpendiculares ao mar, parques eólicos, formados por esguias torres e hélices metálicas de coloração branca, exibem design estilizado de moinhos de vento dantanho. O odômetro registra 38 km pedalados ao longo de 5 horas e 15 minutos quando em Mundaú freamos em definitivo as bicis. Aqui pernoitaremos, até domingo, na residência das irmãs Alencar cujo privilegiado quintal fica diante do rio Mundaú! Esta praia, nos dias que correm, já é bem conhecida no circuito litorâneo do estado. Encantador, o balneário, além das elevadas dunas e das lagoas, exibe piscinas naturais à beira mar. O pequeno vilarejo conta com vários mercadinhos bem sortidos. Num deles descubro o sorvete Pardal, famosa fábrica de sorvete cearense, que prestigia os sabores regionais de graviola, cajá, castanha e milho. Me atraco num de graviola, uma delícia! Ao longo da rua da Praia, uma deliciosa sonoridade amadeirada de tac tac tac se faz ouvir. É o som produzido pelas rendeiras ao manejar aos pares os bilros. O resultado do artesanato, herança portuguesa, zelosamente transmitida de mães pras filhas, desde quando estas são meninas, é pendurado em cabides, nas janelas das casas: vestidos, toalhas e blusas feitas de renda de bilro ou birro. No almoço feito por Ivanara, macarronada com lagosta e porco a pururuca acompanhado por arroz. De bebida, aceito a caipirinha de cajá preparada por Iva. As demais colegas mantêm-se firmes na cervejinha. Depois da séstia, Iva faz deliciosas tapiocas recheadas com banana caramelada. Pouca demora, saímos de casa pra aproveitar o que resta de pôr do sol. Na praça de piso alajotado, construída justo no ponto de encontro das águas do Mundaú com as águas do Atlântico, ambas igualmente verdes, descortina-se do lado de lá do rio outra estação eólica, plantada entre dunas. Já entardecendo, a paisagem adquire uma tonalidade rosada, resultado dos últimos raios do sol poente. Tô no paraíso, oxente! Tenho ou não razão de estar prosa?