segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Trilha dos Porcos e Cachoeiras do CTG

Choveu a noite inteira e, hoje, sábado, o dia continua nublado com muita cerração, encobrindo o interior do cânion e a paisagem ao redor. Embora tenhamos acordado cedo, só saímos lá pelas dez e meia da manhã. O plano é descer a trilha dos Porcos acompanhando a parede norte do cânion Churriado cuja parede sul vem a ser a parede norte do Malacara. A mochila está deveras pesada! Também pudera - são 8 kg - porque, além das roupas de neoprene molhadas, levo outras cositas mas. Nunca na minha vida carregara tanto peso nas paletas. O tempo continua fechado. À medida que nos aproximamos do cânion Churriado, percebe-se o espesso nevoeiro saindo de seu interior. O céu, totalmente, nublado e a temperatura, em torno de 17º C, torna gostosa a caminhada, evitando que se sue muito. Paramos algumas vezes pra descansar e comer nozes, amendoins, pistaches e amêndoas. Estas frutas oleaginosas por conterem muitas calorias são boas pra reporem as energias perdidas num trek pesado como o de hoje. Serão aproximadamente 8 horas batendo pernas. Ainda não fiz rapel no Cânion Churriado que, segundo Kaloca, não é lá dos mais legais. Diz ele que as cachoeiras são quase secas e sua extensão é menor que a do Malacara. Eu gosto de saber disso, afinal, muita água nas cachoeiras me assusta um pouco. Gosto mesmo é de descer no seco. Combino com ele um canionismo nesse cânion numa próxima aventura. A conformação do Churriado é bem diferente da do Malacara porque, de sua parede norte, saem, perpendicularmente, várias gargantas menores. O caminho ondulado no campo turfado requer certa habilidade de modo a evitar que os pés afundem no terreno mais encharcado que o habitual, pois chove na região faz dois meses. Distinguem-se nitidamente vários tipos de flores amarelas, brancas e roxas despontando entre as gramíneas, nesta época do ano. Atingimos o platô do Churriado quando o ponteiro do meu relógio atinge exatas 13:00. Decidimos então fazer outra parada, dessa feita, pra almoçar. Entretanto, preguiçosos, desistimos de acender o fogareiro e nos limitamos a comer a sobra dos fiambres. Vou até a borda do Churriado, porém mal posso enxergar algo de seu interior, a cerração continua senhora do perau. Retomamos a caminhada e, um pouco mais adiante, enveredamos pela trilha dos Porcos. Sei lá por quê, pensei que o tal carreiro seria moleza. Qual o quê! É uma descida íngreme, estreita, escorregadia. Receio que a mochila pesada me faça rolar tal qual uma bola desgovernada ribanceira abaixo. Bah, nem pensar, comento preocupada com meus botões! Redobro, assim, os cuidados na descida, entretanto a paisagem trata de dar um chega pra lá em meus temores de mulher urbana. Não há como não se envolver com a rica e variada flora que se sucede diante de meus olhos: matas de araucária, pequenos trechos de floresta atlântica onde brotam grandes quantidades de xaxim, orquídeas e bromélias, sem faltar, inclusive, vegetação rupestre, destacando-se no terreno enormes urtigões, cujos caules espinhosos aninham em seu interior estupendas cachopas vermelhas. E tudo isso existe, aqui, nos campos de cima da serra! Após sete horas e meia de caminhada, enxergamos o capô vermelho do táxi do seu Denoir. Aleluia! não agüento mais caminhar. Domingo, tiro pra descansar, minhas pernas e panturilhas estão deveras doloridas. Limito-me a uma breve caminhada até a casa de Kaloca pra devolver sua mochila, pouca coisa, 4 km entre ida e volta da pousada. O restante do dia fico só na conversa fiada com Maria, Paulo e João Paulo na cozinha. Na segunda-feira, embora bem doída, não resisto e telefono pra Kaloca. Combinamos, então, fazer uma seqüência de seis rapéis. E lá vamos nós até o armazém do Louro, estabelecimento situado na beira da estrada da Serra do Faxinal. A primeira cachoeira, com 7 metros, à esquerda de quem sobe a serra, fica na frente do bolicho. Rapelamos sem grandes emoções a cascatinha, coisa pra criança. Cruzamos a estrada e descemos o leito do rio para então rapelarmos duas outras quedas, com 25 e 30 metros, fáceis demais ambas. A quarta, a única com nome, chama-se cachoeira do CTG, assim chamada devido a um centro de tradições gaúchas, o Porteira do Faxinal, aquerenciado aos pés da colina onde a queda d'água se localiza. Apresenta de tudo um pouco: negativo, positivo, trechos na água, trechos no seco e um amplo platô quase em seu final. É tudo de bom essa cachoeira embora sua altura seja de 47 metros. Absolutamente deliciosa, sua descida é tranqüila. Adoro rapelá-la. Sucedem-lhe outras duas quedas, igualmente, gostosíssimas, medindo 25 e 15 metros. A única dificuldade é a subida até lá porque pra alcançá-las temos de subir uma encosta coberta de bananais bastante íngreme e tortuosa, tipo escalaminhada. Ainda bem que de vez em quando dá pra se agarrar nos putamerdas, raízes de árvores que servem de agarras. Desço as duas últimas cachoeiras, cantarolando, feliz da vida. Terminados os rapéis, subimos uma colina bem inclinada que nos leva direto à pousada Colina da Serra. Despeço-me de Kaloca e vou pra cabana me alongar e tomar banho. Depois do almoço, vou com Maria dar uma banda em Praia Grande. Ela quer que eu conheça sua casa na cidade. Aproveito pra visitar um casal de amigos, seu Pedro e Emília. Conversamos um pouco e depois Maria me leva pra conhecer dois de seus irmãos. Vamos também ao super onde ela compra mantimentos pra reabastecer a pousada. Terminado nosso périplo pela cidade, ardo pelo sossego de minha cabana. Chega de civilização ainda que esta nem ultrapasse 3.000 almas. Ando de um jeito tal que até essa quantidade de gente me soa demasiado. É, tou ficando meio misantropa, tenho de admitir.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Outras cachoeiras do Malacara

Graças a um feriadão prolongado que se estende da sexta à segunda-feira, retorno a Praia Grande. Saio na quinta, no ônibus das 17 horas pra Torres. Viagenzinha bem chata essa! Como o ônibus não é direto, pára em várias rodoviárias: Osório, Morro Alto, Maquiné, Terra de Areia, Três Cachoeiras e Vila São João, sem contar as paradas pra pegar e largar passageiros BR 101 afora. O taxista, seu Denoir, se aproxima de mim quando desembarco em Torres. Veio de Praia Grande para me buscar já que é mais barato descolar um motora desta cidade do que contratar um táxi no balneário gaúcho. Em quarenta minutos, estou na pousada Colina da Serra. Maria, a meu pedido, fizera um bifezinho acebolado, uma salada (alface, colhida da horta, mais tomate) e aipim derretendo na boca de tão novinho. Botamos a conversa em dia, e vou dormir cedo porque, no dia seguinte, muitas atividades me aguardam. Às oito horas, o táxi de seu Denoir, trazendo Kaloca, passa na pousada pra me pegar. Vamos acampar na borda do cânion Malacara. E lá vamos nós pela estrada do Faxinal, já em terras gaúchas, desembarcando um pouco antes da entrada do Parque Nacional do Itaimbezinho. Enveredamos pela trilha que nos levará até o Malaca. A caminhada se faz sobre um terreno ondulado, os chamados campos limpos, cobertos de turfas. Num pequeno capão, por onde atravessamos, vi as delicadas sophonitis, orquídeas típicas da região dos campos de cima da serra, pintalgando de vermelho o verde escuro da mata. Deixamos nossas mochilas escondidas num capão e iniciamos a descida até o interior do cânion. Vamos fazer quatro rapéis em cachoeiras ainda inexploradas por mim. Em quarenta minutos, alcançamos o poço da Cachoeira das Abelhas Zangadas, assim batizada por mim, devido ao ataque sofrido, ano passado, por um bando ensandecido destes insetos, atraídos que foram pelo repelente que eu besuntara em mim e em Kaloca. Em vez de afugentá-las, ao contrário, atraíra as loucas. Repelente só funciona contra mosquitos, mutucas e moscas. Com abelhas não só é uma proteção inócua, como o cheiro as deixam irritadíssimas. Talvez porque um dos componentes do remédio seja essência de laranjeira. Foi uma situação difícil porque os bichos escolheram como alvo preferencial nossos rostos. Por sorte, já estávamos perto da oitava cachoeira do Malaca onde, dentro de seu poço, nos refugiamos do ataque feroz das irritadas zumbidoras. E a colméia permanece no mesmo velho tronco de árvore. Passamos pelo local, mudos, de cantinho. Quando atingimos o leito do rio, embarafustamos por um carreiro lateral ao seu curso quando então retornamos ao rio no ponto onde se localiza a nona cachoeira. O cânion Malacara se diferencia dos outros não só por sua beleza como por um bom volume de água em seu rio. Kaloca me alerta prum degrauzinho na metade da descida. Rapelo com cuidado até lá e depois só vai. O dia está nublado, sem que as nuvens toldem o céu por completo. Caminhamos mais um pouco, agora sempre pelo leito do rio até a Cachoeira dos Degraus, assim chamada porque apresenta dois grandes desníveis. Sua descida se faz em duas cordadas: a inicial, com 15 metros, vai até o primeiro poço, onde se ancora novamente a corda em uma proteção fixa pra se descer o restante da queda d’água, esta já um pouco maior, com 25 metros. O cânion apresenta uma vazão razoável de água. Eu não gosto de cachoeira bombada porque a espuma formada pela pressão d'água ofusca a visão, dificultando perceber com clareza as reentrâncias da rocha onde se deve pisar. Mais uma pernada sobre o leito do rio até a décima primeira cachoeira, uma rampa suave que não necessita rapel, motivo pelo qual seguimos, andando, por sua lateral. Eu, claro, agarrando-me às pedras, cautelosamente (morro de medo de levar um tombão no basalto pra lá de liso), enquanto Kaloca, bem à vontade, calca sem dificuldade alguma as rochas escorregadias pra caramba. Em vez de saltar até a água já que a altura, nesse ponto, é coisa de 1,5 m, prefiro escorregar dentro do poço. O lugar é amedrontador. Não à-toa, é chamado Poço Negro. Os paredões do cânion, até então distantes, estão bem próximos um do outro, impedindo quase, totalmente, a entrada da luz. O poço deve ter uns 7 m de largura por uns 15 m de comprimento. O lugar lembra um pouco a caverna da caveira, residência do Fantasma, o primeiro herói mascarado das estórias em quadrinho, criado em 1936. O barulho da água, escorrendo pela cachoeira de 23 metros, dá um frio na barriga. A via do rapel é uma canaleta estreita e já estou sentindo bastante frio. Kaloca, zombeteiro, fala que o frio é psicológico. Esse guri, tá me tirando! O ruído da água, ensurdecedor, torna o local mais assustador ainda. Quando termino o rapel, verifico que não foi, contudo, uma descida difícil. Nado até a saída do Poço Negro e dou uma espiada na cachoeira. A água escorre pelas rochas formando duas vertentes. É muito lindo o lugar embora seja pra lá de soturno. Aguardo Kaloca e então iniciamos a descida da décima terceira cachoeira, 10 metros adiante daquele impressionante brete em forma de caverna. Desço, rapidamente, os 12 metros que me levam até o poço porque, agora, sim, tô enregelada. Iniciamos então a subida da parede norte do cânion, uma pirambeira que, antes da enchente de março de 2007, não apresentava maiores percalços. Agora já não é tão simples trilhá-la. A forte enxurrada tornou a senda mais estreita e perigosa. Num determinado trecho, Kaloca põe cordas pra ajudar na subida. É difícil. Faltam-me forças nos braços pra ganhar impulso e ascender. Enfim, incentivada pelo meu guia, chego ao topo da pedra....uuufaaa!! O resto do carreiro não apresenta maiores dificuldades. Cruzamos o rio e subimos pela pirambeira da parede sul até sairmos do interior do canyon, alcançando os campos de cima da serra. Pegamos as mochilas e vamos procurar um local pra montarmos a barraca. Uma garoa cai enquanto eu alongo, e uma espessa viração surge do interior do cânion, tornando a paisagem meio espectral. Barraca montada, já lá dentro, Kaloca acende o fogareiro pra fazer um chá. Estou com muito frio. A temperatura desce rapidamente enquanto a noite, de mansinho, se anuncia. Como não leváramos papel higiênico, Kaloca me ensina a usar barba de bode, excelente substitutivo, diga-se, a bem da verdade. O truque é pegar as mais verdes, gotejantes de umidade. Após a janta - sopa de pacotinho, acompanhada de queijo, salame, nozes, amêndoas e pistache - bebemos um pouco de vinho e conversamos até tarde quando, então, cada um se acomoda em seu saco de dormir prontos pra dormir. Dessa vez sem lua ou estrelas pra admirar devido ao mau tempo. Mesmo assim, que baita indiada!

domingo, 16 de novembro de 2008

Canionismo na Garganta do Orbal

Decido, ao invés de festejar meu niver dando uma festa em Porto, ir pra Praia Grande. Faz três meses e meio que lá não vou desde quando retornei do Paquistão. Estou louca pra fazer um canionismo. Assim sendo, pego o ônibus das cinco da tarde até Torres e em lá chegando freto um táxi que, em 40 minutos, me deixa na Pousada Colina da Serra, meu destino final. Mariazinha me abraça demoradamente. Uma jantinha bem simples me aguarda: bife, salada de couve, arroz, feijão e um aipim cozido que, de tão macio, derrete na boca. Tudo de bom! Como de hábito, tomo dois copinhos de cachaça de abacaxi, e ficamos tagarelando até quase meia-noite quando me despeço e vou pro berço. Deitada na ampla cama de casal, escuto uns ruídos no forro da cabana. Fico grilada: serão ratos? Mas desencano logo, estou cansada demais pra me assustar com os roedores, isso se são eles mesmos, fazendo tal zoeira no telhado. No dia seguinte, no café da manhã, comento com Maria. Ela esclarece que ou são passarinhos ou corujas, fregueses habituais nesta época do ano, que se aproveitam das frestas no forro pra entrar e construir seus ninhos. Durante os meus três dias de permanência, quando à noite eu me recolhia, foi uma algaravia só de aves sobre a minha cabeça. Provavelmente os pais ensinando seus filhotes a voar. O fuzuê, segundo Mariazinha, reina durante o período em que os filhotinhos levam pra aprender a alçar vôo sozinhos. Sexta-feira, conforme combinara com Kaloca, nos tocamos pra Garganta do Tupy. Na vez anterior em que lá estivéramos, um tiozinho, dono de uns bananais na região, nos informara da existência de outra cachoeira, localizada mais além da primeira que costumamos rapelar. Saímos, então, no mato à procura. Foi fácil encontrá-la: pequena, deve ter, talvez, uns 20 metros de altura. Quando estávamos nos distanciando, vislumbramos, uns 10 metros mais acima, outra queda d’água. Acertamos que na próxima vez iremos grampeá-las e assim aumentar o número de rapéis que se faz nesta garganta. De três passarão a ser cinco, significando mais emoção. Os rapéis são fáceis e rápidos porque a distância entre as três cachoeiras é curta, no máximo 50 metros entre uma e outra. Contudo, ao contrário das outras vezes em que aqui estive, hoje há uma boa quantidade de água devido às chuvas incessantes que vêm castigando a região há dois meses. Satisfeita com a pequena aventura, aproveito a aragem fresca do meio da tarde e, na garupa da mota, aspiro o cheirinho gostoso de mato. Convido meu guia, pra depois da janta, tomar champanha comigo na pousada. Afinal, venho, já, há 56 aninhos desfrutando a vida neste planeta. Trouxera pra bebemorar com os amigos um vinho branco e uma champanha na bagagem. Depois de alongar e tomar banho, vou pro refeitório, Pauleca, de volta do serviço, conversa com Maria na cozinha. Beijocas e abraços. Ocupo meu lugar habitual junto à churrasqueira. Ele traz pra eu provar um copinho de marisqueira, uma cachaça, feita em Torres, contendo, entre vários ingredientes, cravo e canela. Não dá pra recusar. Entorno três doses apenas, me guardando pro vinho branco. Durante a janta, o papo é a onipresente crise econômica provocada pelos desvarios do sistema hipotecário americano. Kaloca chega e eu abro a garrafa de champanha. Paulo recusa e vai se deitar, amanhã levanta cedo, quatro da manhã, pra trabalhar em seu posto de gasolina. Kaloca se limita apenas a uma taça porque se sente indisposto do estômago. Maria e eu, então, somos “obrigadas” a enxugar, praticamente, sozinhas a garrafa do espumante dinamarquês (bem legalzinho até). No dia seguinte, sábado, o programa é a Garganta do Orbal, lugar ainda desconhecido pra mim, situado ao lado do cânion Índios Coroados. A origem do nome varia de pessoa pra pessoa. Na versão de Toninho Schimit, Orbal vem do nome das casinhas construídas pelos mateiros em suas andança pelas matas. Já Alice conta uma estória diferente. Segundo ela, Orbal vem das cuecas Zorba usadas pelos guris quando tomavam banho nos poços das cachoeiras. Acordo com uma pontada na cabeça. Percebo, aborrecida, que a ressaca exclama “presente, Bia”. Merda, penso com meus botões. Embarco no táxi que nos levará até o ponto da estrada onde iremos embarafustar picada adentro até o início dos rapéis. O dia tá bem legal, sol, calorzinho, mas eu estou desanimada, naquele cansaço típico de pós-tragoléu. Ciente de que enfrentarei dez cachoeiras com pouca altura, a maior em torno de uns 25 metros, no início, até sinto um certo entusiasmo. Depois, o cansaço provocado pela ressaca começa a pegar forte. As cachoeiras bombam de água. Por isso, nós evitamos descer por entre aquela volumosa massa de água, orientando os rapéis mais pras bordas das cachoeiras. Pra piorar, algumas delas apresentam certas dificuldades técnicas, porém o que colabora pra eu não curtir muito a aventura é meu estado físico. Pela primeira vez, está sendo torturante fazer um de meus esportes favoritos. Desidratada e cansada devido à ressaca, torna-se um sacrifício, confesso, vencer esta garganta. Mea culpa, minha máxima culpa!! Pra piorar, a distância entre as cachoeiras não é pouca coisa, não! O percurso entre a oitava e a nona quedas, já quase no fim da garganta, parece nunca ter fim. Eu me arrasto nas pedras, a maior parte do tempo de bunda, escorregando entre as pedras molhadas usando os braços como alavança. A vontade que me dá, várias e diversas vezes, é sentar numa pedra e chorar tal qual uma criancinha, e dizer ao Kaloca "me deixa aqui, véio, amanhã eu continuo, tá bem?" Sei lá como, reúno minhas parcas forças e lá vou eu num ritmo lento demais que me deixa mais esgotada e emputecida. Amaldiçôo, intimamente, Kaloca (que não tem culpa de nada), até que me rendo, deixo o orgulho de lado e peço arrego. Ele estende sua forte mão e assim, me auxiliando, consigo andar mais rápido sobre as pedras escorregadias do leito do rio. Embora eu esteja de saco cheio, porque fatigadíssima, curto mesmo assim a beleza do lugar pontilhado por várias pequenas quedas d'água, afora aquelas maiores por onde rapelamos. A mata densa forma um túnel verde sobre o rio. Por entre a cerrada vegetação, escapam raios de sol avivando o colorido das folhagens. Espessos tapetes de musgo forram as enormes rochas basálticas. Primeira e última vez que faço um canionismo de ressaca....never more!! Tão mas tão esgotada me sinto que, após a janta, vou me deitar e, olha, que são apenas 21 horas! No domingo, resolvo tirar o dia pra visitar meu querido Toninho Schimit, dono do bar Malacara, situado às margens do rio de mesmo nome. Fico por lá um tempinho observando ele e Alice jogarem bilhar enquanto converso com Eni. Volto, sem pressa, até a pousada, aproveitando pra filmar o pequeno cemiterio que se debruça sobre a Estrada Geral da Vila Rosa. Faz tempo queria fazer isso. Adoro cemitérios. Este tem uns túmulos que o pessoal apelidou de CoHab porque lembram as tais habitações populares. Ao chegar à pousada, largo minha mochila na cabana e vou até o refeitório. O dia nublado e friozinho pede uma bebida quente. Maria prepara um chazinho de hortelã pra mim e um café pra ela. Deito numa ponta do sofá, Maria se acomoda na outra. E ficamos naquele papo mole de fim de tarde enquanto uma chuvinha de molhar bobo cai lá fora. E de janta, a minha querida, faz um picadinho de carne cortado a mão com moranga!! E um arroz branco, bem soltinho. E uma farofinha com cenoura ralada, mais feijão com um caldo bem grossinho. E de salada, alface, colhida há pouquinho da horta, com cebola e tomate. A sobremesa é compota de maçã boiando numa espessa calda cor de caramelo. Pra rebater tanta doçura, um café bem forte, sem açúcar. E bem alimentada, vou me deitar, embalada pelo som da passarinhada fazendo aquele bulício sobre a minha cabeça. Amo este lugar!!

sábado, 6 de setembro de 2008

Garganta do Tupy

Embora nublado, não chove. Conforme o combinado na véspera, Caloca vem me buscar e lá vamos nós em sua moto, uma 150 cc, rumo à garganta do Tupy, situada na comunidade de Rio do Meio, município de Mampituba, no RGS. A paisagem que se descortina é muito mais reveladora andando de moto do que do interior de um carro. Nada embaraça minha visão. Avisto durante boa parte do trajeto, a minha esquerda, os belos morros do Cocuruto, da Pedra Branca e do Barbacoá (já subi até seu topo e a paisagem lá de cima é trilegal, podendo ser avistado, quando não há nebulosidade, o litoral distante um pouco mais de 30 km); à direita, o morro do Facão e ainda a Serra do Cavalinho onde há uma trilha que desemboca no Itaimbezinho. Atravessamos, então uma ponte de arame, construída sobre o Mampituba, alcançando a margem sul do rio situada em plagas gaúchas. Eu super receosa de que a ponte não agüentasse o peso da moto bem como o nosso, me agarro com força em Caloca.....uuuiiiiii que medinho!!! Chegamos na trilha que nos levará às cachoeiras e para tanto temos de atravessar um bananal plantado numa encosta bem íngreme. O interessante neste canionismo é que iniciamos a aproximação, subindo a partir do poço da segunda cachoeira. Assim, é possível se ter, ao invés de outros rapéis, uma visão frontal da cachoeira, ou seja, do que iremos enfrentar quando formos descê-la. É uma bela queda d’água com cerca de 38 metros, cheia de degraus naturalmente escavados no basalto, rocha muito dura porque formada pela compactação de sucessivos derrames de lava vulcânica. Geologicamente é considerada a vovó de todos os três tipos existentes. Subimos uma pequena ravina o que nos obriga a fazer uma miniescalada. A mata cerrada impede a passagem dos raios de sol. Evito me apoiar nos xaxins, uma espécie de feto, mais conhecidos como samambaias. Seus caules, embora de aparência inofensiva, são cobertos de traiçoeiros espinhos. Helicônias pespontam de vermelho o verde da mata. Variedades de bromélias podem ser vistas aninhadas nos ramos das árvores e espalhadas pelo chão. A típica vegetação tão característica da mata Atlântica. Chegamos então ao topo da garganta. É um canionismo vapt vupt com apenas 3 cachoeiras, sem grandes dificuldades técnicas. Iniciamos os procedimentos usuais: vestir as roupas de borracha - longboards, as mesmas usadas por surfistas -, as cadeirinhas e os capacetes. Caloca já está amarrando as cordas nos grampos, colocados quando da conquista da via no início de janeiro. Abaixo de meus pés, a 400 metros de altura, espraia-se longínguo o vale. Respiro fundo e começo a descida. Com as chuvas, as cachoeiras estão bombando. Muita água, gente! E lá vou eu desafiando aquele paredão de rocha, meio receosa depois do meu pancadão no Rapel do Café em janeiro. Chego no poço, suspiro, desato a corda do oito e espero Caloca que desce, tal qual uma salamandra, tamanha sua agilidade. O trajeto até a segunda cachoeira é curtíssimo, pouco mais de 30 metros. Com 47 metros de altura, também, não apresenta maiores dificuldades: as paredes apresentam-se cobertas de musgo impedindo que as botas escorreguem na pedra molhada. O tempo ainda nublado descortina vez por outra o brilho tímido do sol. Antes de iniciarmos o rapel da terceira e última cachoeira, comemos nossos lanches. Meu olhar passeia pelas paredes da garganta e aprecio o “silêncio” da mata. Barulhinho bom esse!! Por fim, eis-me na borda da menor das três quedas d’águas: 28 metros de descida me esperam. Olho pra cima e vejo uma réstia de sol iluminando a copa das árvores. Escorrego mansamente pelas paredes e a forte pressão da água castiga minha perna esquerda que dói um pouco. Pra fugir dessa situação, conduzo meu corpo pra direita, desviando da queda d’água.....ufa!!! logo já estou alcançando o poço. Caminhamos de volta até ao ponto onde havíamos deixado a moto. Os mosquitos e as mutucas atormentam minhas pernas e braços descobertos (no dia seguinte, estavam febris de tanta inflamação, inclusive doloridos nas juntas.....arre, insetos infernais!!). E lá vamos nós de volta a Praia Grande, eu na carona da moto, sempre um pouco receosa, imaginando que se Caloca derrapa numa daquelas inúmeras pedras que assoalham a estrada de chão batido, com certeza, vou ganhar belas e doloridas esfoladuras. Foi pôr o pé na pousada que a chuva desabou, firme e forte, um caudal d'água dos bons! Pois pra minha surpresa, fico sabendo que enquanto estivéramos no Rio Grande do Sul, distante pouco mais de 20 km, chovera o dia inteiro em Praia Grande. Obrigada, São Pedro....santinho prestativo este!

sábado, 12 de julho de 2008

De volta a Islamabad

A noite foi insuportavelmente quente. Como tenho ojeriza a ar condicionado, desliguei o aparelho e, não contente, ainda, o ventilador de teto porque muito barulhento. Sexta-feira amanhece linda e o céu exibe uma uma tonalidade clara de azul. Estamos saindo de Chilas às 7:30. Uma longa viagem nos aguarda. Embora a distância entre Chillas e Islamabad seja de apenas 483 km, a viagem de carro dura 14 horas! Isso se não houver nenhum deslizamento de areia e pedras porque, conforme a quantidade de detritos caídos sobre a rodovia, a demora pode variar de 2 horas a dias! O grande perigo aqui no Paquistão são estes desmoronamentos. Enormes blocos de rochas, precariamente, equilibrados uns sobre os outros debruçam-se sobre a rodovia. A própria trepidação dos veículos ou um vento forte pode provocar, em fração de segundos, a queda desse material. No nordeste do país, há dois aeroportos: o de Gilgit e o de Skardu, e a viagem entre eles e o da capital se faz em pouco mais de 1 hora. Contudo, voar de Islamabad até uma dessas duas cidades, ou delas pra capital, sujeita-se às imprevisíveis condições meteorológicas da região, devido às altas montanhas e a formação de espessas nuvens, o que dificulta em muito a visibilidade. Já saimos dos territórios do norte do país (Northern Áreas) e estamos, agora, percorrendo a NWFP (North-West Frontier Province). A paisagem começa a se transformar: a aridez do terreno, despojado de qualquer vegetação, cede lugar, pouco a pouco, a uma luxuriante cobertura vegetal que colore de verde escuro as encostas das montanhas. Chegamos em Besham, às 13:15. Esta cidade é um importante centro comercial da NWFP onde o comércio funciona 24 horas por dia. Enquanto estou almoçando, sou objeto de curiosos olhinhos infantis que me espiam através da janela do restaurante. Lá pelas tantas, faço uma careta. É o que basta pro bandinho de crianças espalhar-se alvoroçado pelo jardim. Vem me surpreendendo o tratamento paciente e carinhoso dispensado pelos homens aos seus filhos. Aos mais moços pegam no colo com frequência. Minha curiosidade sobre os nomes das vestimentas típicas é satisfeita por Siddique: as mulheres quando vestem shalwar e qameez (túnica e calça) cobrem a cabeça com uma echarpe, a dupata ou chadar. Às fiéis seguidoras dos rígidos preceitos islâmicos está reservado o uso do burqa, o amplo e disforme camisolão (vi apenas em duas cores: azul anilina e preto) que as cobre dos pés à cabeça, não deixando escapar nem os olhos. Àquelas que não se resguardam tanto dos olhares masculinos, há uma variante um pouco “mais” light que deixa visíveis os olhos por entre a máscara de pano. Sou fascinada por essas roupas. Há um não sei quê de mistério em tudo isso. Longe de mim vesti-las, contudo, me atrai a sensação de “invisibilidade” que tais vestes proporcionam. Os chapéus masculinos são o topi (quepe) ou paghrhi (turbante). Saída de Besham às 14:45. À medida que vamos nos aproximando de Islamabad, o verde das matas vira regra. Siddique, durante a nossa infindável viagem, conta que perto de Karachi há uma praia muito linda com mar azul e águas mornas, Gowadar. Muitos túmulos à beira da estrada onde mulheres, ajoelhadas, pranteiam seus mortos, ao passo que os homens, acocorados, conversam entre si. Siddique já tem uma opinião diversa à de Ali no que se refere a relação afetuosa entre os homens, assegurando inexistir envolvimento sexual, apenas amizade. Humm....quem terá razão? Na minha peregrinação ao longo da KKH (e olha que eu andei, hein! fui de Islamabad até a fronteira com a China), apenas num pequeno trecho entre Abbotabad e a capital, foi construída pista dupla. Lá pelas 17 horas, cai uma chuva grossa. O movimento na rodovia é intenso em ambos os sentidos. Chegamos, finalmente, a Islamabad, por volta das 21 horas, já noite cerrada. Minha prima fez uma comida especial pra mim: bife à parmegiana, salada de alface e cenoura, arroz branco bem soltinho e macio. Percebo com tristeza, ao acordar, que hoje, sábado, é meu último dia no Paqui....putzgrila, passou tudo tão rápido. Vou pela manhã fazer o debriefing no Alpine Club of Pakistan. As perguntas são as de praxe: o tratamento que me foi dispensado pela agência e pelos guias durante a viagem, e minha opinião sobre o trek. Encerrados os trâmites burocráticos, vou a Panoramic Pakistan me despedir de Tahir e agradecer pelos seus bons préstimos no lamentável episódio do passaporte. Também tenho de acertar minhas contas já que eles pagaram despesas minhas de Skardu em diante porque “muito previdente” deixara a maioria de meu dinheiro e cartão de crédito aqui em Islamabad. Reencontro Niaz que fica muito contente ao me rever. Despedidas feitas, me trazem pra casa onde eu e Renata comemos um bom almoço preparado por ela: salada de alface, cenoura ralada e pepino acompanhando uma torta de camarão. Vamos então às compras. Adquiro um monte de bugigangas pra presentear amigos e parentes. Exausta de tanto bater pé nas lojas – cansa mais que trek....ufa! – e de gastar, retornamos pra casa conduzidas pelo simpático motorista, Mr. Beak. Aí a ingrata tarefa de arrumar malas, arrrghhh!! Às 20:30, chega um casal de cariocas, Jader e Teresinha, ele oficial da FAB, cedido como treinador à equipe de futebol das Forças Aéreas paquistanesas; ela, dona de casa. Vamos ao Hot Spot jantar. Muito agradável a companhia deles. Contam fatos interessantes presenciados durante o 1 ano e 7 meses de permanência no país. Como dois casamentos a que foram convidados. Duram as bodas 6 dias; pra cada dia há uma atividade diferente: num dia, comem, noutro, a noiva se pinta, no terceiro, os parentes dos noivos vendem doces para os convidados e no penúltimo dia, o noivo e a noiva transam, sendo que antes a sogra examina a moça para confirmar sua virgindade. Conta Teresinha que só neste dia é permitido ao noivo ver o corpo nu da moça. Depois, as relações sexuais acontecem com ambos vestidos. Eles ainda estão na Idade Média nesse aspecto, gente! Somos deixadas em casa, e ficamos, eu e Renata batendo papo até 1 e 30 da madrugada, hora em que Mr. Beak me traz ao aeroporto. Como o Paquistão é rota de narcotráfico da heroína produzida no Afeganistão, a polícia antinarcóticos não só revista as malas dos passageiros na saída do país como num cubículo uma guarda feminina procede a uma revista pessoal, manuseando as mãos de cima a baixo do meu corpo. Só após esses procedimentos, é permitido realizar o check in. Entro na ala internacional e o free shop revela-se duma pobreza franciscana. Pouquíssimos os produtos importados: algumas marcas de perfumes, chocolates e só. Se não fossem as inevitáveis lojinhas vendendo souvenirs de produtos típicos do país, poucos seriam os atrativos pra  ocupar o tempo antes do vôo. Antes de entrar na sala de embarque nova revista pessoal (deve ser pra evitar que alguém, sei lá, um funcionário do aeroporto possa passar alguma droga nesse meio tempo). Já 3 da madruga -, ainda aguardando a hora de embarcar para Dubai, observo as sandálias dos fiéis alinhadas do lado de fora da sala de orações. Curiosíssimo país este. Sentada um pouco além de mim, uma jovem mulher segura um nenê que dorme em seu colo. Usa burqa preto, seu véu, contudo, deixa visíveis os olhos: entre eles há uma tira fina de pano que desce da testa até a ponta do nariz. A barra de sua túnica é bordada com linha dourada. Por baixo, uma pantalona rosa. Várias pulseiras douradas tilintam em ambos os pulsos. As pontas dos dedos, tanto dos pés quanto das mãos assim como os do bebê, estão pintados de laranja. Há que me distrair porque senão tenho um xilique: quatro horas de vôo até Dubai, mais quatro de espera naquele aeroporto, pra então embarcar rumo a Sampa, cuja distância de 12.669 km se faz em 14 horas. Meu coração já geme de saudades. Shukurya Paquistão! Inshala possa eu retornar a este lindo e acolhedor país!

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Convivendo, enfim, com as paquistanesas!

Eu sabia, tinha certeza de que o tempo aqui em Karimabad se comportaria igual ao de certos veraneios azarados na praia em que os dias se mostram casmurros, exceto o último quando pára de ventar, o sol se mostra em todo seu vigor e o mar vira um espelho de tão límpido e tranqüilo. De pé no terraço do hotel, enquanto espero seja minha bagagem transportada até o carro, o dia, esplêndido, enfim, me dá uma chance de ver a magnificência do Rakaposhi Peak. Observo que em sua face leste há dois largos e extensos contrafortes: o da direita menos nevado, já o da esquerda apresenta-se coberto de neve por inteiro. Abaixo, no vale, as águas beges do Khunjerab e Nagar mal disfarçam a junção destes dois afluentes do Hunza, tributário do Indo, considerado o maior rio do país, cuja foz situa-se a mais de 1.700 km, no mar Arábico. Olho pro relógio colocado numa parede do restaurante onde estou comendo meu desjejum e constato, atônita, que são 6:30. Estranho porque acordei às 7:30! Meu espanto dura pouco, logo me dou conta de que os relógios, via de regra, não são acertados pro horário de verão, permanecendo no horário antigo. Coisas do Paquistão! Justo, hoje, fico sabendo que Karimabad é o único lugar do país onde é fabricado um certo tipo de vinho cujo teor alcoólico é bastante forte, segundo me conta Siddique. Peninha, gostaria de tê-lo provado. Às 8:20, partimos de Karimabad e, durante o trajeto, a presença constante do Rakaposhi se faz presente sempre do lado esquerdo da KKH. Fazemos um stop no mesmo restaurante onde estivéramos na segunda-feira quando íamos rumo a Karimabad. Do estabelecimento, estrategicamente situado no sopé da montanha, tem-se uma vista muito atraente da montanha, de cujo glaciar desce um riozinho cascateante por entre as pedras de seu leito. A parada inclui, é claro, um chazinho. Peço verde sem leite. Retomamos a viagem e Siddique pede a Aqbar que pare e pergunte a uns homens sentados à beira da rodovia se conhecem uma alternativa à KKH que conduza também a Gilgit. Eles indicam onde dobrar e lá vamos nós por uma via paralela à grande rodovia, que inicia ao norte de Islamabad e percorre o restante do país, adentrando, inclusive, o território chinês. Fico sabendo um pouco mais sobre o verdadeiro interesse do governo chinês em cooperar no alargamento da KKH. Se os chineses utilizassem seus portos, situados ao norte, pra escoar os produtos e matérias primas produzidos no sul do país, o transporte resultaria muito mais demorado e caro, motivo por que preferem despachá-los via Karachi. Dessa forma, as mercadorias são transportados em imensas carretas containers até o porto seco de Sost, não muito longe da fronteira chinesa, e lá distribuídas em caminhões menores que as conduzem até o porto da antiga capital paquistanesa. Às 11:20, chegamos em Gilgit, a principal cidade da Northern Areas (esta região não é província e tampouco faz parte do Paquistão, tudo muito confuso, só eles pra entenderem tal divisão política). Sem grandes atrativos turísticos, é cortada pelo rio de mesmo nome. Seu centro comercial demonstra, de fato, a importância administrativa do lugar: no bazaar há talvez mais de uma centena de lojas ocupando diversos quarteirões. Mesmo assim, o despojamento que observara nos vilarejos, também, aqui predomina: ao lado de uma joalheria, um aviário, na frente de uma loja de finas roupas femininas, cabras e vacas pastam, sem ser incomodadas ou enxotadas. A tradição rural do país é mais forte do que qualquer verniz de sofisticação que as cidades reivindiquem. Gilgit foi o único lugar onde um homem, fabricante de calçados, se recusou a ser fotografado, consentindo apenas que eu fotografasse os sapatos. Ficamos menos de uma hora (calor, insuportável) e saímos às 12:10 para Chillas. Transcorrida uma hora de viagem, já é possível se avistar Ferumidu ou Rakhiot, a face norte do Nanga Parbat, a mais bela de todas devido à generosa vegetação e florações em seu entorno. Não à-toa, o lugar recebe o apelido de Fairy Meadows. Entretanto, é a mais perigosa pra escalar em razão dos constantes deslizamentos de neve e gelo que ocorrem em suas encostas. Das três faces, Diamir, situada a oeste, é a de paisagem mais árida porém a menos difícil de ascender. Já a cara oeste, Rupall, é pura rocha, uma autêntica big wall. Chegamos em Chillas às 15:15. O calor está em torno de 40º C, e eu, agora, sentada nos jardins, tenho à minha frente as águas lamacentas do rio Indo. Passarinhos trinam sem parar e besouros tiram fininho de minha orelha. O farfalhar das árvores e o conversê em urdu dos empregados do hotel são minha trilha sonora, quebrada vez por outra pelos roncos e buzinas abafados dos veículos que trafegam na KKH, à beira de onde o hotel foi construído. Venho observando a diferença – sei lá por quê – no estilo de sedução entre chineses e paquistaneses: os primeiros dardejam olhares firmes, evidente a lascívia que deles brota. Já os paquistaneses lançam olhares langorosos, há um não sei que de démodé em tal manifestação. Talvez porque a religião muçulmana funcione como um freio à lubricidade dessa gente. Fecho os olhos e vejo ainda a paisagem vista de dentro do carro se desenrolar a minha frente: um mar de areia e rochas cuja tonalidade varia apenas do cinza-escuro pro cinza-claro. País mágico e encantador este! Pretendo retornar tão logo possa e fazer o trek no Biafo Glaciar cuja melhor época é julho quando, então, as fendas se abrem e são, facilmente, visíveis. Peço café. Trazem nescafé e água quente num bule.....pode? Coisas do Paquistão! Os garçons nem sempre entendem meu inglês mas são tão solícitos e gentis que dá vontade de beijá-los. Aliás, eu por mim beijava homens, mulheres, crianças, cabras e galinhas. Continuo sentada no jardim......tão bom aqui! Uma leve brisa agita os ramos das árvores carregadinhas de flores. Olha que eu gosto de calor, porém o de hoje está demais. Noto uma mocinha muito bonita, de seus quinze anos, vestindo um elegante shalwar e qameez amarelo e preto, tagarelando ao celular. Lança-me um olhar meigo. Eu retribuo sem qualquer esperança que ela se aproxime, afinal, as mulheres são tão arredias! Pois não é que a guria se aproxima? Estamos nós em animado bate papo quando surgem a mãe e a irmã caçula. Ficamos amicíssimas. Tiramos mis fotos (Mehr, não só pede pra eu fotografá-la como me fotografa também!). São de Rawalpindi (abreviam pra Pindi). A mãe, apesar de bem acima do peso, conserva, ainda, vestígios de beleza. Seus olhos embaçam-se depois que pergunto se só tem as duas meninas (numa cultura tão machista quanto a paquistanesa, não gerar um macho deve lançar uma mácula sobre as mulheres, com certeza). Pinta vasos e borda. A mais moça, de uns 12 anos é espevitada, muito engraçadinha. Indagada sobre meu estado civil, exclamam ohs consternados quando respondo que sou divorciada, logo substituídos por ahs de alívio ao saber que não sou infeliz por estar sozinha. São as únicas mulheres, ao longo destes 28 dias de viagem, que não vejo cobrindo os cabelos com dupata, usam-no como echarpe ao redor do pescoço. Estou eu me preparando pra dormir e ouço um toc toc à porta. Abro e me deparo com Mehr, parada na soleira. Vem se despedir. Não dá nem dois minutos, surge o pai. Sou então a ele apresentada. É arquiteto. Pergunta se a filha está incomodando. Eu respondo com o esperado não. Elogio-a, ele fica todo orgulhoso. Não se passam três minutos, e eis a mãe com a caçula pendurada em seu braço. Sem ser convidados, entram todos no quarto. Eu já estou sorrindo amarelo, na verdade, desejaria ser deixada em paz, solita, com meus pensamentos. Mehr deseja tirar mais fotos de mim, agora com o pai junto. Diz que é para eu não esquecer deles. E dá pra ficar aborrecida?

quarta-feira, 9 de julho de 2008

A adorável Karimabad

Acordo, não dá outra, cedíssimo, embora não vá fazer nenhum passeio longo. Hoje o dia está reservado pra conhecer Karimabad (abad significa população). Enquanto espero Siddique no restaurante, saboreando um desjejum sem grandes atrativos gastronômicos, curto, através das amplas janelas, o cenário a minha volta. Rodeada de montanhas com mais de 7.000 metros, Karimabad, conhecida também como Baltit, é a capital do Hunza Valley. Domina a paisagem, bem à minha frente, dois destaques da região: Diran Peak e Rakaposhi Peak. Mas a coisa não fica só nestas duas montanhas. À esquerda, quase todo encoberto, mal percebo o Golden Peak e, à direita, debruçando-se sobre o Baltit Fort, o Ultar Peak. Bem mais distante, aponta tal qual um estilete, o pontiagudo cume rochoso sem neve do Lady Finger Peak. Contemplando toda essa belezura, divago. Traço um paralelo entre as montanhas e a anatomia masculina e a feminina, comparando as áridas montanhas e suas abruptas arestas à primeira, enquanto as cobertas de vegetação à segunda, em que o verde da grama representa os trajes e adereços coloridos usados pelas mulheres (sei que é uma comparação babaca mas, enfim, foi a que me veio à cabeça no momento). Conversando com Siddique, que se junta a mim no refeitório do hotel, mais informações sobre a travessia do Ghondogoro me são fornecidas. Eu poderia tê-lo cruzado embora esteja fechado. Para tanto teria de pagar mais e a operação far-se-ia da seguinte maneira: os porters retornariam de Concórdia e eu seguiria apenas com o guia e o cozinheiro. Da vila de Hushe, outros porters se deslocariam até Ali Camp, o primeiro acampamento após a travessia do Ghondoghoro La, com mantimentos e equipamentos necessários aos demais dias de trekking, que findariam justo em Hushe. Pena eu saber disso logo agora! Enquanto subimos as ladeiras, Siddique comenta que o povo de Karimabad tem a cabeça mais aberta e as mulheres, ao contrário das de outras vilas, permitem, às vezes, as fotografias. Pergunto a ele se há divórcio e Siddique confirma tal possibilidade. Caso o marido recuse, o casal vai ao tribunal, decidindo por eles o juiz. Entretanto, a incidência de divórcio é baixa porque, segundo ele, os preceitos islâmicos ensinam que um homem e uma mulher não devem viver sós. O lugar é encantador. Arcadas atravessam os passeios de um lado a outro, casas feitas de pedra, com balcões de madeira, debruçam-se sobre ruelas estreitas e sinuosas. Nossa caminhada termina no alto de uma empinada colina onde se ergue altaneiro o Baltit Fort. Agora transformado em museu, este edifício, de mais de 700 anos, foi, até 1945, moradia dos antigos reis do Hunza Valley. Em 1975, a região, até então um estado independente, governada pela dinastia real dos Khan, foi anexada ao Paquistão. Rebaixada, assim, à condição de distrito, compõe o que se conhece, atualmente, como área Nordeste do país. Entramos na vetusta moradia toda feita de grandes blocos de pedra, e a primeira peça visitada são os calobouços (será uma advertência?). Subimos uma escadinha que conduz a uma peça de teto baixo com janelas pequenas, escura à beça. O guia do museu vai nos conduzindo de peça em peça até a única sala realmente clara de todo o prédio. Tem as paredes pintadas de branco e uma graciosa sacada de madeira, ricamente entalhada, de onde se descortinam as barrancas esbranquiçadas do rio Hunza. Da cozinha, próxima peça a ser visitada, o único vestígio de claridade advém de uma pequena clarabóia, e o teto, coberto de picumã, revela a falta de ventilação do ambiente. Tudo muito rústico. Embora fossem reis, não gozavam lá de muito conforto, não! No terraço, uma larga cadeira de madeira fazia de trono onde o monarca recebia seus súditos. À frente, um estradinho de madeira – o palco - para apresentações artísticas que serviam para entreter a corte. E pendurada em uma das paredes, uma cabeça de bode, considerada símbolo de boa sorte. O panorama que se tem daqui de cima é formidável, compensando a modéstia do interior do palácio. A vista de 360º abrange não só todas as montanhas adjacentes quanto a vila, situada mais abaixo. Uma paz este lugar. Entro em lojinhas onde estão expostos tapetes feitos a mão, finamente, bordados, colares de rubi, turquesa e lápis lázuli de dar água na boca, mais uma penca de produtos típicos, tudo muito, muito colorido. Por sorte, deixara a maior parte de meu dinheiro e cartão de crédito em Islamabad. Senão teria me enchido de badulaques mis. Abordada na rua por um homem, simpaticíssimo, que me convida pra visitar sua casa, lá vou eu conhecer sua humilde moradia. E tiro fotos com alguns de seus filhos, adoráveis e sujos! Ele faz isso esperando em troca um dinheirinho para aumentar a renda familiar...triste miséria que obriga as criaturas a revelarem sua intimidade. Já de volta ao hotel, quem encontro? Anwar e Mustafá. Encantados com o encontro, convidam-me pra jantar com eles no hotel onde estão hospedados juntamente com o grupo de tchecos. Quando estou saindo da lan house, um pouco mais tarde, volto a encontrá-los e, pra minha surpresa, oferecem-me, de presente, uma camiseta com uma estampa do K2! Estou gamada por esse povo, mais bacana impossível! Já no hotel, escuto da varanda o rumorejar do rio Hunza competindo com os gritinhos de crianças que brincam nos pátios de suas casas e com o crou crou das gralhas pousadas nos galhos das árvores. Fantasio, nesta hora morta do entardecer (apesar dos meus 55 aninhos, sou, reconheço, convencionalmente romântica), quão bom seria se Ali, de repente, surgisse pra me levar pra Islamabad. Não num cavalo branco e sim numa van climatizada. Minha versão moderna do príncipe encantado.....huuummm.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Khunjerab National Park

Embora não chova, o dia amanhece, parcialmente, nublado. Vou conhecer o Passo Khunjerab e por isso saímos às 8:20 de Karimabad. A viagem segue pela onipresente KKH e durante um bom trecho do percurso colorem a paisagem os verdejantes terraços onde brotam plantações de cereais e verduras. À beira do rio Hunza, sucede-se um vilarejo após outro com suas rústicas casinhas de pedra ou adobe. Após duas horas de viagem, do outro lado do rio, destaca-se um impressionante conjunto de montanhas, denominado Passu Cathedral, cuja forma assemelha-se à de uma gigantesca igreja em estilo gótico. Conforme avançamos rumo ao norte, este colossal maciço rochoso ora posiciona-se bem à nossa frente ora à direita. À esquerda, passamos pelo glaciar Batura que, qual uma gigantesca impressão digital, borra de branco o cinza do terreno pedregoso. Entramos no Khunjerab National Park às 11 horas. Este parque, o terceiro maior do país, cujo trecho pertence à rota da seda, foi, no século XIII, percorrido pelo mercador veneziano Marco Polo em suas peripécias pelo continente asiático. Trata-se de um desfiladeiro de escarpadas montanhas acinzentadas por onde flui o estreito rio Khunjerab. À medida que nos aproximamos da China, o relevo suaviza-se, e ainda que ganhemos altitude, as montanhas não são tão empinadas quanto as de Hunza Valley. Já não é mais aquela paisagem áspera quando se entra no parque. Seus topos e encostas, quando não encobertos de neve, apresentam-se atapetados por uma veludosa camada de grama. Lembram, por mais absurda que seja a comparação, as coxilhas gaúchas. Agora, estou na fronteira com a China, numa altitude de 4.700m. Um marco escrito em caracteres chineses assinala o limite entre os dois países. Distante uns 400 metros, há um edifício de concreto (deve ser a aduana) onde no topo a bandeira vermelha, com suas cinco estrelas amarelas, tremula ao vento. O céu, cinzento de nuvens, não deixa entrever qualquer rasgo de azul. Um frio horroroso. Chove e neva. Meus dedos sem luvas ressentem-se doloridos. A coloração do rio Khunjerab de bege passou a verde clara. Um grupo de jovens estudantes paquistaneses, também em visita ao lugar, pede pra tirar fotos comigo, um de cada vez: são três. Siddique, sorridente, nos clica pacientemente. Eles, não contentes, exigem nova foto, dessa feita, nós quatro juntos. Na volta, peço para pararmos (estou apertada pra fazer xixi) e descubro, observando Aqbar acocorado, um pouco mais além, que os homens, quando vestem as roupas típicas, fazem xixi igual às mulheres! Hahahahaha.....essa é boa! Meio cochilando, me dou conta de que o carro abandonou a KKH e sobe por uma estradinha de terra. Siddique avisa que vamos conhecer o lago Borith onde há um restaurante às suas margens. Pedimos chá com leite e ficamos, por uns 45 minutos, curtindo a paisagem, já totalmente desanuviada, revelando um céu azul claro. Já na van, rumo a Karimabad, Siddique ordena a Aqbar que estacione junto à beira da estrada onde um homem vende damascos secos. O guia oferece-me e eu provo: são uma delícia. Chegamos em Karimabad às 18 horas e minhas pernas doloridas - também pudera, um tempão paradas - exigem, urgentemente, exercício. Assim, me toco pra lan house. Nem dez minutos lá, checando meus emails, e, ploft, apagam-se os computadores. O atendente, um magrinho de fala melíflua, corre esbaforido de seca pra meca, tentando resolver a situação. Solícito, vem até minha mesa e avisa que em 5 minutos tudo se solucionará (dessa vez não foi corte de energia, garante, mas o gerador que pifou, acrescenta, fazendo um ar condoído). Após o retorno da luz, ele encosta-se à minha mesa e, juntando as mãozinhas em prece, suplica, revirando os olhinhos, que eu escreva, sei lá prá quem - às autoridades (?) (continuo não entendendo lá muito bem o inglês dos paquistaneses) - para que invistam mais no setor energético ao invés de nas bombas atômicas. Ontem, ele já protagonizara uma cena meio bufonesca (tive de me controlar pra não cair na risada) quando, pra reforçar que sesteara após o almoço, teatralizou a cena (!), juntando as palmas das mãos e colocando-as, ato contínuo, delicadamente, sob uma das orelhas. Uma figuraça ele!! Desisti de continuar escrevendo meus emails porque novo corte se impôs 10 minutos após o primeiro. Como o atencioso homenzinho não tinha troco, avisou que eu poderia pagar amanhã quando retornasse à loja. O gentil homuncúlo é despreocupadamente confiante...que gracinha!

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Hunza Valley

O dia amanhece bonito e quente como todos os de minha estadia em Skardu. Eu sinto-me triste porque o melhor da viagem terminou: o maravilhoso trek e a convivência com os porters, admiráveis na árdua labuta de transportar, em suas costas, 25 kg de carga ao longo dos 12 dias de caminhada. Embora rudes e pobres, são gentis, alegres e respeitosos. Lamento, ainda, abandonar a boa relação que se criou entre mim e meu guia. Uma pena Ali não poder ir pra Karimabad, infelizmente, ele terá de coordenar três expedições, duas a Concórdia e uma ao Biafo e Hispar Glaciares, motivo pelo qual deve permanecer em Skardu. Ali, um homem inteligente e sensível, super atento, procurou dar o melhor de si pra tornar minha viagem a mais agradável possível. Ontem à noite ele deu-me uma linda echarpe de lã, bordada com pequenas aplicações de pedrinhas brilhantes. E convidou-me para jantar no melhor restaurante da cidade! Nós disfarçamos nosso desânimo diante da separação e tentamos criar um clima alegre, o que não colou: soou forçada a tentativa. Eu sentia algo mais que um sentimento de camaradagem entre nós mas não sabia precisar exatamente o quê. Então falamos banalidades aguardando que o outro tomasse a iniciativa de dizer......sei lá o quê! Às 8:20, o ronronar do motor da van, no páteo do hotel, anuncia a iminente partida. Pespego um forte abraço em Ali e sopro-lhe um beijo de dentro do carro. Adeus....Ali.Tenho agora um novo guia, Siddique. O motorista, Aqbar, é o mesmo que me trouxera a Skardu há 16 dias atrás. O trajeto, na mesma perigosa estrada Skardu-KKH, dá a impressão de ser pior do que na vinda. Talvez porque meu estado de espírito não seja tão alegre. O tempo também não colabora: nublado e chuvoso. Abricós secam em cima de largas pedras bem como nos telhados de barro das casas. Siddique é simpático e bem educado, seu inglês é mais inteligível do que o de Ali mas...não é Ali. Umas duas horas antes de chegarmos a Karimabad, somos forçados a parar: um deslizamento de areia e pedras interrompe a estrada. Siddique informa que talvez demore cerca de uma hora. Tratores removem os entulhos, alguns engenheiros chineses, atarefados, passam de lá pra cá. Por falar em chineses, Siddique explica que a China é um grande parceiro do Paquistão. Segundo ele, o verdadeiro motivo de os Estados Unidos insistirem em procurar Osama no Paquistão, não passa de desculpa. Na real, os gringos querem mesmo é instalar uma base militar perto de Skardu a fim de monitorar aquele país. Em relação à Índia - comenta com um risinho -, o problema não são os indianos e sim seus governantes. Quanto ao Irã, acrescenta serem boas as relações entre as duas nações. Já com o Afeganistão, a dificuldade é administrar os milhões de refugiados que se instalaram junto à fronteira oeste de seu país. Nossa conversa ocorre, de pé, à beira da estrada, sob uma ligeira garoa, enquanto o trabalho de remoção dos detritos se processa mais adiante. Enfim, somos liberados a prosseguir e a longa fila de veículos começa a se mover. Paramos pra almoçar num restaurante situado em frente à magnífica Rakaposhi, uma linda montanha de 7.700 metros de altura, toda nevada. São agora 17 horas e já estou em Karimabad, capital de Hunza Valley, região situada à margem esquerda do rio Hunza. Do outro lado do rio, em sua margem direita, o vale é chamado de Nagar. Karimabad é uma encantadora vila verdejante abraçada por altíssimas montanhas cobertas de glaciares. Pertinho do hotel, descubro uma lan house a que se chega após subir uma inclinada ladeira. Estou eu lá batucando nas teclas do computador quando vejo adentrando a sala o grupo de tchecos conduzidos por Anwar e Mustafá. Dou beijocas em todos. Embora os europeus se mostrem divertidos com a recepção calorosa, retribuem, meio sem jeito, porém alegres, à minha efusiva saudação. Já os dois paquistaneses, encantados, demonstram toda sua satisfação e abraçam-me afetuosamente. Estão deveras felizes em me rever. Ao retornar ao hotel, a chuva recente que caíra, avivando os odores das abundantes plantas e flores que crescem ao longo das ruas, deixa no ar um cheiro de mato molhado. Gostoso demais esse cheirinho. O hotel está construído sobre uma colina e o cenário que tenho da varanda, onde há mesas e cadeiras confortáveis, é espetacular: as montanhas Rakaposhi e Diran, dignas de cartão postal. Infelizmente, não é possível visualizá-las com nitidez: algumas nuvens encobrem-nas parcialmente. Oxalá consiga vê-las em seu esplendor nem que seja no último dia de minha estada nesta encantadora vila.

domingo, 6 de julho de 2008

Lago Upper Kachura: o autêntico Shangrila

Ali, hoje, abandonou suas roupas de ocidental e veste shalwar qameez branco. O roteiro inclui visita a dois lagos: o Satpara e o Lower Kachura Lake, mais conhecido como Shangrila pois foi construído em seu entorno um complexo turístico chamado Shangrila Resort. Ali pergunta se Niaz pode ir conosco. Faço sinal para que ele se junte a nós dentro do jeep. O trajeto, curto, não dura além de uma hora. À entrada, cobram 200 rúpias (não dá 5 reais). Não entendo por quê, talvez pra impedir o ingresso dos paquistaneses pobres, já que esta quantia é significativa pra eles. Numa das pontas do lago, destaca-se um edifício de estilo pagode, nítida influência chinesa: é o restaurante e pode ser freqüentado também pelos não-hóspedes. O local é bem cuidado, gramado impecavelmente aparado, variedade de flores colore os canteiros, destacando-se rechonchudas rosas. Amplos chalés com varandas. Arrisco uma espiada pro interior de um deles, decorado com móveis de madeira escura, pesadões, sóbrios. A decoração de interiores aqui no Paquistão não é lá das mais atraentes, tudo de gosto....hummmm....meio duvidoso, vá lá, cafona mesmo! Shangrila é point no verão e os paquistaneses abastados adoram vir pra cá. Um bote singra as águas calmas do lago, conduzindo os remos um homem, vestido à ocidental; na popa, uma mulher e duas adolescentes, envergando as três shalwar qameez, conversam entre si. Uma elevação rochosa à borda do lago projeta sua sombra nas águas. Assemelha-se à figura duma colossal baleia. Caminhando nos jardins, um homem e duas mulheres, ambas vestidas de burkha preto. Elas lançam em minha direção olhares severos. Será porque não uso sutiã e tenho os braços desnudos? Só pode! Apesar de calmo, o lugar não me atrai. Já vi hotéis bem mais atraentes encravados em lugares mais belos. Contudo, pros paquistaneses, este lugar é considerado um deus nos acuda em termos de conforto e beleza.....enfim, cada um com seus gostos. Prefiro mil vezes o desconforto da barraca durante o trekking no Baltoro glaciar. Ali descobre, conversando com um segurança, o caminho pra outro lago, e lá vamos nós pro Upper Kachura Lake. Atravessamos uma ponte cujo rio, onde afloram enormes blocos de rocha, lambidos por céleres corredeiras, exibe esverdeadas e límpidas águas. À volta, montanhas e mais montanhas. Chegando à vila de Kachura, o jeep pára, e observo a conversa animada entre o motorista e alguns aldeães. Intuo que estão falando de mim. Não dá outra. Ali, meio constrangido, explica que tenho de cobrir os braços, não os permitem desnudos (olha só: e estou com camiseta de manga curta!). Prevenidamente, carrego sempre na mochila uma camiseta de manga comprida caso esfrie. Visto-a e somos liberados. Passam por nós algumas vans onde no tejadilho vão aboletados alegres passageiros. O 4x4 segue através duma estradinha de chão batido muito safada. Sacolejos inevitáveis durante o trajeto que se desenrola entre plantações de trigo já maduro pincelando de dourado a paisagem. Secam, sobre enormes pedras, damascos recém colhidos. O jeep pára e descemos. Enveredamos por uma estreita senda cercada em ambos os lados por altos muros de pedra. Adiante, algumas casas toscas, também feitas do mesmo material. Pra mim tudo é pitoresco, mesmo a pobreza das construções. Árvores e mais árvores de damasco vergam ao peso dos frutos cuja coloração alaranjada empresta um ar alegre ao dia cinzento. Desce-se por uma trilha íngreme em meio a uma luxuriante vegetação, árvores verdíssimas, flores silvestres de delicadas pétalas, e lá embaixo, esplendorosas, as águas azul turquesa do lago fazem com que eu solte exclamações deliciadas diante de tanta beleza. Esse lugar, sim, é um genuíno Shangrila! O gerente do lugar, muito gentil, informa que é permitido o banho. Sentados os três, lado a lado, cada um perdido em seus pensamentos, lá nos quedamos durante um tempo a contemplar a tranqüila e sedosa superfície azul-esverdeada do lago Upper Kachura. Não muito distante, à beira de um pequeno cais, curto a animação de um bando de garotos mergulhando e chapinhando dentro d’água. Seus gritinhos de prazer chegam até mim abafados. Tão bucólico tudo isso! Subimos de volta ao restaurante de onde se descortina o lago. Simples, o recinto é triacolhedor com cadeiras e mesas de vime cobertas com toalhas vermelhas. Uma agradável surpresa no cardápio: trutas. São trazidas cruas para que eu escolha a quantidade e tamanho. Ali sugere encomendar apenas dois pedaços. Uns vinte minutos de espera, e eis os peixes inteiros e grelhados soltando fumacinha. Mal espero esfriar, dou uma assoprada e mastigo, faminta, tal pitéu. Ali, ao ver que eu deixara de lado a cabeça, nem hesita, devora-a com olhos e tudo, fazendo cara de satisfação.....uiiii!!! Niaz, envergonhado, quase não come nada. Dá como desculpa uma dor de cabeça. Eu tenho cá com meus botões que o coitado, percebendo a pouca quantidade de comida, inventou a tal enxaqueca de modo a que não faltasse peixe pra nós. Eu não deveria ter ido atrás de Ali e ordenado dois ou três pedaços a mais de peixe. Para acompanhar, sabem o quê? O nosso indefectível chazito com leite (foi a única vez que senti falta de beber um vinhozito branco bem geladinho. No mais, a proibição de ingerir bebidas alcoólicas nem tem deixado saudades. E olha que curto uma birita!). De sobremesa, abricós colhidos do pé da árvore. Terminada a refeição, vamos conhecer o lago Satpara. O balneário não se mostra tão atraente quanto o de Upper Kachura. No jardim, à beira de suas águas, igualmente, azul-turquesa, há mesas e cadeiras onde o povo curte o domingão. Lamento, ao ser informada, que a construção de uma colossal represa, já em adiantados trabalhos, determinará a extinção desse atrativo turístico. A finalidade é sanar o precário sistema de energia elétrica da região onde ocorrem freqüentes cortes de luz quando menos se espera. O tempo continua nublado e agora venta bastante. Bate uma fome e peço chá com leite e biscoitos. Três homens, sentados à mesa ao lado, pedem licença e sentam-se à nossa. Um deles é professor. Está curioso e deseja conversar comigo sobre a Amazônia, as cobras, América do Sul, qual língua é falada no Brasil. Questiona, lá pelas tantas, se as cobras andam soltas nas ruas, hahahahaha. Essa é boa!! De volta a Skardu, após Ali me levar numa loja para eu comprar cd de música balti, vou numa lan house checar meus emails. Fico lá durante duas horas escrevendo pros amigos rodeada de....moscas.....arghhh!! E de quebra, uma trilha sonora animal: o mugido de uma vaca, alojada no estábulo, situado bem ao lado da loja onde estou. Com vontade de urinar, pergunto ao atendente se há toalete. Ele indica um a 50 metros, no piso superior de uma casa mais adiante. Acho tudo muito estranho mas vou lá. Estou eu arrumando minha mochila, já me preparando para descer quando vejo Ali e Mussa ao pé da escada me procurando. Ele havia ido à loja da internete me buscar porque está chovendo. E de carro! Tudo pra eu não me molhar! Não é um amor este homem?