sábado, 26 de novembro de 2016

0rdálio Praiano

Resolvida a fazer algo diferente em termo de pernada, escolhi encerrar o ano de 2016 com a pouca conhecida travessia Cassino-Chuí. A um, porque  tridiferente de tudo o que fizera: terreno plano calcorreando um litoral a perder de vista e, a dois, porque, tendo nascido em Rio Grande, seria uma forma de homenagear a terra natal onde a praia do Cassino se localiza. Não dei a mínima importância ao comentário de tia Janina quando a par de minha decisão. “Mas Beatriz é só água e areia”, pontuou ela dando uma risadinha zombeteira. As recordações da infância eram as que importavam, sem defeito que maculasse a reputação do balnéario aos olhos da criança que outrora fui. A menina apenas conhecia a faixa de litoral compreendida entre os molhes e Querência, ou seja, uma extensão de pouco mais que 8 km. Àquela época, tudo era grandioso: dunas enormes, ondas atemorizantes, golfinhos nadando a 100 metros da praia, castelinhos de areia e um céu sempre azul, pura e total felicidade, hahaha. Me toquei faceira da vida pro Cassino, no sábado, hospedando-me no icônico Hotel Atlântico, construído no final do século XIX!! Quando criança veraneava na casa de minha bisavó, no “quadro”, assim chamado o quarteirão de casas situado justo em frente ao hotel onde, em certas noites da semana, assistia, na companhia de minhas tias-avós, ao show de variedades apresentado por Ludio. Desde aquela época - e olha que já se passaram mais de 5 décadas -,  tem-se mantido o verdor da folhagem ostentado pelos plátanos plantados no pátio interno do Atlântico. Pra minha alegria, à tarde, um campeonato estadual de bandas e fanfarras acontecia no balneário. Fantasiei, como a tolinha romântica que às vezes sou, que o evento era em minha homenagem, pra comemorar o retorno da filha pródiga, hahahaha. Eu mais duas amigas riograndinas  permanecemos, por um bom tempo, curtindo o desfile que exibia numa das bandas - sinal dos tempos, aleluia – uma baliza gay, super aplaudido pela platéia. À tardinha, chegou o restante do grupo, 11 clientes, 2 guias, um cozinheiro e um motorista. Fomos todos a uma pizzaria onde a confraternização foi de pouca demora já que o toque de alvorada no dia seguinte seria tempraníssimo. No domingo, o tão aguardado primeiro dia iniciou com café da manhã servido às 5:30. Terminada a refeição, partimos pros molhes do Cassino, considerado o ponto zero da travessia com finalera na barra do Chuí distante 210 km. O que posso dizer de tal pernada? Foram 7 dias de clima irregular, ora nublado, ora ensolarado. Houve dias com vento sul fortíssimo, sendo que, num deles, impossível manter longas conversações senão ficaríamos com a boca cheia de areia (parafraseando o famoso ditado, “em boca fechada não entra terra”), em outros, um vento ameno atenuava a elevada temperatura daquele ambiente onde inexiste a benção refrescante duma sombra. À noite, contudo, o céu explodia de estrelas, baixando uma agradável friaca, lembrando um pouco as variações térmicas existentes em zonas desérticas. A paisagem, enclausurada, à esquerda, pela imensidão gigantesca do Atlântico e, à direita, pelas dunas - tão pequenas se comparadas àquelas de minha infância -, sofria superficiais modificações quando intervinham na, faixa de areia, ora animais mortos (uma baleia com o filhote ainda preso pelo cordão  umbilical, um boto e uma capivara quando passamos ao largo da reserva ecológica do Taim), ora a presença dos faróis Sarita, Albardão - o maior do litoral  brasileiro - e o do Chuí. Reforçando, mais ainda, tão desolador cenário meia dúzia de vestígios de cascos de barcos e navios que empurrados pelo vai-e-vem das marés vieram dar com os costados à beira mar. No litoral brasileiro, comum a existência de riachos e rios riscando o areal rumo ao mar. O nosso, o gaúcho, é claro, não foge à regra. Daí termos sido obrigados a vadear durante boa parte dos 7 dias de pernada  dezenas de córregos cujas nascentes, em sua maioria,  se originam do acúmulo das águas da chuva represadas entre as dunas, distantes poucos quilômetros da praia. Tais lugares, por óbvio, foram os escolhidos pra acampar onde podíamos nos banhar após a exaustiva jornada. Da turma, o destaque foi o carismático Alemão, um autêntico vira-lata que nos acompanhou dos molhes do Cassino até a barra do Chuí. Uma figuraça o dogue que, ao longo da pernada diária, ora avançava ora recuava como se fosse o zeloso guardião dum rebanho de ovelhas (não querendo ser maldosa mas sendo, hehe, pra mim, alguns “colegas” revelaram mais feição de lobos em pele de cordeiro). Do mulherio, pena, mas não consegui tirar nenhuma pra comadre, provavelmente, a falta de senso de humor me tenha afastado delas, sérias demais as gurias pro meu gosto; já dos homens, simpatizei com dois paulistas. Sublimamos tédio e cansaço sofridos durante a pernada em caçoada, compartilhada alegremente entre os três. Assim, por cada um de nós a travessia foi batizada de abismo horizontal, flagelo praiano e calvário à beira mar. E quando comecei a querer incluir o carioca no rol de meus afetos, este se revelou um pseudo místico: à noite não resistia ao voto de silêncio que se auto impusera e quebrava o mutismo contando piadas sem qualquer pingo de graça. O grupo, em matéria de experiência como caminhante, era díspare. Gente que nunca fizera trek na vida, outros que realizavam singelas incursões em fins de semana e, por último, aqueles com vivências mais relevantes tipo a pegada de Santiago de Compostela. Não dá pra deixar de passar em branco, 3 mulheres que estavam repetindo, repetindo (!!!) a travessia porque o mau tempo as obrigara a desistir em ocasiões anteriores. Porém a vocação de autoflagelação ou, vá lá, de bancar o estóico – se assim preferirem -  ao enfrentar tão exaustiva jornada, cuja distância média entre acampamentos batia frouxo nos 33 km diários, saltava aos olhos até dum cego. Será que todos estavam querendo pagar por pecados desta, de anteriores e quiçá de futuras encarnações?!! A pergunta que não quer quer calar: seria uma emulação inconsciente aos dos antigos mártires cristãos da Idade Antiga?! Com certeza, nin-guém foi poupado de sofrimentos físicos. Houve os que foram abençoados em só ganhar bolhas leves, outros, contudo, as tiveram purulentas entre dedos e sob plantas de pés, sem falar de osteítes nas canelas e bursites nos joelhos, acumulando algumas criaturas toda essa gama de machucados! Digno de menção o preocupante episódio de hipotermia sofrido por um dos participantes! Em 14 anos de canionismo, trek e montanhismo, calcando a botina em leitos de rios, florestas, serranias e altas montanhas, pela primeira vez fui “agraciada” com uma bolha no quarto artelho do dedo do pé esquerdo que me acompanhou desde o primeiro até o sétimo e último dia do trek. E não adiantava costurá-la ao final da jornada a fim de drená-la. Retornava impiedosa dia após dia decorrida 1 hora de caminhada. Como não há mal que sempre dure, no quinto dia, apenas no quinto dia, houve uma significativa quebra no jejum paisagístico a que fui submetida ao percorrer roteiro tão despido de atrativos. Foi a incursão até à beira da costa da lagoa Mangueira. Ao dar-se as costas ao mar a onipresente e insípida coloração arenosa da zona litorânea cede lugar - graças a deus! – a um verdejante solo coberto de gramíneas donde brotam delicadas e coloridas flores amarelas e roxas. Percorridas algumas centenas de metros, ingressamos numa espécie de grande anfiteatro, formado por cordões de dunas separados por vales que se sucedem num raio de 5 km, lembrando tal cenário uma miniatura dos Lençóis Maranhenses. Pequenas esculturas moldadas na areia pela ação do vento reafirmam minha crença de que o grande arquiteto do Universo é a indomável, criativa e ardilosa natureza. Um pouco antes de alcançarmos a margem da Mangueira, a inesperada presença de dois belos exemplares de centenárias figueiras quebram a monocromática brancura dos cômoros. Belo recanto “escondido” no meio do areal litorâneo! Pra mim a viagem valeu por ter conhecido esta parte da lagoa Mangueira que povoou minha imaginação infantil, juntamente com as lagoas Mirim e dos Patos. Entretanto, Mangueira se diferencia das demais por possuir características que a tornam única no Brasil. Ela não tem acesso ao mar, tampouco rio algum nela desemboca. São 123 quilômetros de extensão de águas provenientes da chuva bem como de lençóis freáticos, em uma área de 820 km². Por isso, tais condições garantem que sua água tenha uma coloração verde-clara quase transparente. Nem tudo porém foi só espinhos, bolhas e traumas musculares. Valeu o trek por testemunhar, ao longo de 210 km de litoral, o uso de energia eólica menos danosa ao ambiente que as demais modalidades de produção de energia elétrica. De quebra, as monumentais lâminas de aço remetem aos românticos moinhos de vento de antigamente tão combatidos pelo adoravelmente tresloucado Dom Quixote. Também valeu o trek por alguns belos, breves e vibrantes pores do sol e amanheceres.  Por ter conhecido Hermenegildo, apelidado carinhosamente de Hermena pelos nativos, em cujos jardins nascem onze-horas, flor que desencavou reminiscências infantis há muiiito esquecidas: as das coloridas imagens vividas no jardim da casa onde nasci há 64 anos. Por fim, valeu a viagem por conhecer, ainda que de relance, Barra do Chuí, o último balneário fincado no extremo sul do Brasil. Viajar é bom demais mesmo quando a pegada não envolve cenários espetaculares ou pessoas interessantes. Sempre algo manero ocupará um cantinho de meu coração já que esta alma não é assim tão pequena.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Pedal das Termas

Com meu niver se aproximando, resolvo comemorá-lo numa das atividades que mais curto: cicloturismo. Pra tanto contrato a Gramado Bike Trip que oferece um pedal de 3 dias na região noroeste do RS, chamada pelos locais Alto Uruguai, cuja cereja do bolo são águas termais. Ficaremos hospedados no balneário de Marcelino Ramos com incursões às cidades de Machadinho e Piratuba, esta fincada no sudoeste catarinense. No final da manhã, me toco pra Novo Hamburgo onde deixo meu carro e sigo no de Nadir que consome menos gasolina. Escolhemos ir pela RS 122, seguindo pela BR 470 até Lagoa Vermelha pra então pegarmos a RS 126, cruzando, assim, as cidades de Sananduva, São João da Urtiga e Maximiliano de Almeida, quando, à noitinha, alcançamos nosso destino final, o balneário de Marcelino Ramos. Cansadas dos 350 km e das 8 horas de viagem, deitamos logo após a janta porque dia seguinte o pedal será longo. Quando acordamos, no sábado, o sol brilha no céu, prenunciando um dia tudo de bom. Contudo, ao deixarmos o hotel às 9 horas, o céu nubla total e um ventinho insolente começa a soprar. Diante da temperatura fresca visto camiseta de manga comprida e jaqueta corta-vento. O pequeno balneário localiza-se à margem esquerda do rio Pelotas. Este rio juntamente com o Peixe forma o rio Uruguai, 4 km adiante, donde também se encontra a cidade. O plano é pedalar até Machadinho a fim de nos encontrarmos com a galera de Gramado e lá almoçarmos juntos. Dessa feita, rodamos pela RS 126 no sentido inverso, em direção a Maximiliano de Almeida. Ladeada de espessa mata atlântica, uma delícia pedalar na estradinha de chão batido cujo estado de conservação, razoavelmente bom, apresenta subidas e descidas inofensivas. Como estamos em plena primavera, nas casas, construídas às margens da estrada, destacam-se, além dos jardins exibindo profusão de roseiras e outras flores, o dourado dos trigais maduros ao lado do verde-escuro das plantações de milho que enchem de admiração meu olhar. Bichos cabeludos pendem dos galhos das árvores presos a finíssimos fios, pendulando pra lá e pra cá num rapel rumo ao chão, o que nos obriga algumas vezes a desviar deles. Nadir, medrosa, berra a cada vez que se depara com os cabeludos insetos. Paramos por uma boa ½ hora na propriedade dum casal simpaticíssimo. De meia idade, com filhos criados, por isso carente de conversê, se a gente estendesse a permanência mais um pouco, com certeza, teríamos sido convidadas pra almoçar. Porém urge chegar a Machadinho por volta das 14 horas, horário previsto da chegada do pessoal. Ao passarmos rapidamente por Maximiliano, cidadezinha desinteressante que não demanda maior atenção, o acinzentado céu, aleluia, já cedeu lugar à festiva coloração azulada onde brilha, enérgico, o sol. Pegamos o rumo da RS 208, cujos 18 km de asfalto em contínua ascensão torna bem cansativo o soca-bota. Afora isso, porque a rodovia não tem acostamento, o pedal faz-se tenso pois a maioria dos carros tá nem aí pros ciclistas, alguns deles tirando finórios sem dó nem piedade de nós. Antes das 15, já estamos reunidas ao grupo, 4 deles meus conhecidos quando fiz, ano passado, o pedal na região de Pinhal da Serra, também organizado pela competente Gramado Bike Trip. Assim, um prazer reencontrar o casal Quica e Ederson mais Arthur e Sid. Fazem parte ainda da galera Luciano, o casal Catiane e André Grande, além de André Pequeno e sua família: mulher, 2 guris e sogra. Voltamos de Kombi até Maximiliano, de modo a evitar pedalar na perigosa RS 208 onde, então, montamos nas queridas e pedalamos ao longo dos 28 km da encantadora RS 126, retornando a Marcelino, à tardinha. Tendo pedalado 74 km, nada melhor que mergulhar na piscina de águas calientes, construída no último piso do hotel, e encantar os olhos com o cenário das verdes colinas catarinenses situadas no lado de lá do rio Pelotas. No domingo, a pegada ciclística é leve, não ultrapassando modestos 15 km. Na ensolarada manhã, rumamos até a cidade de Marcelino Ramos, fincada no sopé duma verdejante colina. Pedalamos ao longo da bem cuidada avenida Beira Rio que acompanha o Pelotas até a entrada da sede do município, descendo uma ladeira íngreme até a margem do rio onde em 1903 foi construída a ponte rodoferroviária. A colossal estrutura de ferro permite assim a ligação entre RS e SC. Terminamos o rolê subindo até o mirante, situado no topo da colina, donde descortinamos ampla visão dos rios Pelotas e Uruguai e da verdejante paisagem além rio. Após o almoço, dedico-me à amena leitura do livro A Garota no Gelo, policial ambientado em Londres. Entretanto, não resisto ao sono e entrego-me aos braços acolhedores de Morfeu, desfrutando duma boa soneca. À tardinha, aproveitando a temperatura bem mais amena, aproveito e corro 7 km na calçada ao longo da avenida Beira Rio. Terminada a janta, o baile tem início, animado por um cantor que começa os trabalhos com música regional gauchesca. Quica e Ederson não se fazem de rogados e são os primeiros a estrear na pista de dança, bailando que dá gosto de assistir. Eu e Nadir ficamos só curtindo o dancerê. Enquanto lá permanecemos ninguém nos tira pra dançar, pode? Tsk tsk, tsk. Na segunda-feira, última dia de pedal, a pegada é atravessar a ponte, ingressar em solo catarinense, pedalando 24 km ao longo da SC 135, pra conhecer Piratuba e suas termas. Já de cara, há que se enfrentar a curta porém empenadíssima lomba. Porém o perrengue mal começou. A sucessão de subidas, embora não se revelem nem de longe tão ásperas quanto a primeira, se mostram intermináveis durante loooongos 9 km. As descidas, pra tristeza da turma, são   raras. O dia está magnífico: céu azulão, sem nuvens embaçando o sol, motivo por que a temperatura à medida que a manhã avança mais alta se torna. Quase nenhuma sombra à beira da estrada visto que o relevo de colinas alongadas e floresta de araucárias é distinto daquele entre Marcelino a Maximiliano em que prepondera a refrescante sombra da mata atlântica. A paisagem compensa todo o ardido esforço da contínua ascensão. Após 12 km calcando a bota em chão batido, ingressamos no trecho asfaltado da SC 135, alguns trechos, contudo, estão super esburacados e outros sem pavimentação, devido ao péssimo estado de conservação da via. A partir desse trecho, as subidas amenizam-se e agradável surpresa nos espera no trecho final do pedal: 4 km só de descida até Piratuba embalada em veloz pedalada. O parque de águas termais localiza-se no centro da cidade. Maior que o de Marcelino e Machadinho, conta com um complexo aberto e outro fechado, este com piscinas individuais para banhos terapêuticos já que a água tem propriedades sulfurosas. Damos uma banda pela cidade inteiramente voltada ao turismo com farta rede hoteleira. Nas lojas, os manequins enfeitados de papai e mamãe noel indicam a proximidade da super festa cristã. Porque hoje é meu niver – 64 aninhos uhuuu – ofereço, no almoço, espumante aos parceiros. Como a turma de Gramado tinha tomado aquele tragoléu ontem à noite - todos estão meios sequelados - o vinho não é devidamente apreciado por eles. Voltamos a Piratuba no meio da tarde, eu e Nadir, de táxi porque desistimos de retornar a Marcelino pedalando. E não nos arrependemos porque o trajeto é tão difícil quanto o da ida. À noite, pra fechar com chave de ouro tanto o pedal quanto meu niver, beberico, no terraço do hotel, outro espumante, dessa feita solita, sem compartilhar com ninguém, enquanto curto a super lua cujo reflexo prateado ilumina as águas quietas do rio Pelotas! E que venham outros nivers como este, conhecendo novos lugares com belas paisagens, desfrutando de agradáveis companhias e degustando boas comidas e muiiitoos vinhos!!

domingo, 3 de julho de 2016

A Verdadeira Indiada

Há horas tinha vontade de fazer essa pernada de fim de semana pra conhecer uma reserva indígena guarani. Por motivos que não vêm ao caso e os quais até nem lembro mais, não conseguira até então. Sábado, cedinho, reúno-me a um grupo de 16 pessoas com predominância do sexo feminino. Somente 3 são homens! De guias, Edgardo e Dieni, o casal que toca a Rota Sul Adventure (http://www.rotasuladventure.com.br/), agência gaúcha de turismo de aventura. Embarcamos na van, saindo de Portinho às 7:15 da manhã, com breve parada em Santo Antonio da Patrulha, famosa pelos sonhos e fabricação de cachaça (tão pura que chega a ser azulada, segundo os nativos). Numa padoca, enchemos o pandulho pra enfrentar a pernada. Contudo não é de Santo Antonio que parte o passeio. Por isso rodamos mais um tantinho de kms até chegar a Caraá, uma daquelas cidades que, na febre das emancipações, passou de distrito de Santo Antonio a município, oferecendo não mais que uma rua principal e pouco mais de 7 mil almas. A caminhada tem início às 10 horas, cruzando, inicialmente, uma bamboleante ponte de arame sobre o rio dos Sinos, logo embicando num estradão de chão batido. Decorrida 1 hora de caminhada, Dieni chama minha atenção prum cemitério em cujo original pórtico de madeira foi agregada uma pequena casinha, provavelmente pra servir de moradia ao coveiro. É claro que fotografo, sou louca por cemitérios embora não queira ser enterrada e sim cremada. Até então plano, o relevo passa a mostrar suas garrinhas na forma dumas compridas lombas. Em ambos os lados da estrada há bergamoteiras vergadas de frutas. Colhemos algumas e as provamos. Deliciosas e sumarentas estão as frutas. Enquanto subimos uma das tantas ladeiras, Di e eu aprendemos, com a psicanalista Rita, uma memorável aula da visão lacaniana a respeito de desejo, gozo e pulsão. Após 2 horas de caminhada, ainda em Caraá, paramos na frente duma igrejinha azul e branca prum belisquete. A partir daí, a pernada é numa trilha por onde só motos ou 4x4 conseguem trafegar. O restante da caminhada, em torno de 1 hora e 30 minutos, já no distrito de Barro Branco, município de Riozinho, é marcada por fortes subidas num terreno super irregular. O que compensa é desfrutar do frescor da verdejante mata atlântica que ameniza os 28º C dum veranico intempestivo em pleno inverno. Num claro de floresta, avista-se um dos muitos vales que separam as dezenas de serranias da região. Uma pena termos de sair da trilha e voltar a caminhar noutro estradão. O bom é que, pouca demora, às 14 horas, cá estamos na Pousada Nhum Porã (Campo Bonito, em guarani). Somos recebidos pelo dono, Paulo Fernando, há mais de 10 anos auxiliando os guaranis que vivem nos arredores. A pousada é um grande galpão de madeira cujos quartos exibem portas à semelhança de baias de cavalos. No meio da ampla peça, uma baita lareira indica que se esfriar podemos contar com o conforto dum belo fogo. Apesar de rústico, o espaçoso cômodo, super acolhedor, arranca entusiasmados elogios do grupo. São servidos cachorros quentes, sucos e refrigerantes pra repor as energias consumidas em nem tão longa porém exigente caminhada devido à predominância de ardidas subidas. Terminado o almoço, vou com Arianne, Zé, Cris e Debora até o topo duma colina donde se avista parte do litoral cujos destaques são Tramandaí e as torres eólicas de Osorio. E ali permanecemos um tempinho curtindo a verde paisagem pespontada por picos de formatos variados: desde os bem pontudos, passando pelos femininamente arredondados até os desgraciosamente achatados. Tracejam o céu finas nuvens que quebram assim sua azulada monocromia. E ficamos de papo, uns dentro da casa, outros ao ar livre. É difícil dar conta de tanta gente. Adoraria participar de todas as rodinhas de conversas que se formam mas é impossível porque infelizmente não tenho o dom da ubiquidade. Às 17 horas, todos se mobilizam rumo ao morrão a fim de assistir ao pôr do sol. O sentimento de confraternização com a natureza torna as mentes, agradavelmente relaxadas, rolando uma energia gostosa entre nós. Na beira do penhasco, temos a frente uma encosta de serra e a magnífica cachoeira da Linha 7. Às 17:30, o espetáculo do sol poente tem início. Momento encantador assistir à bola de fogo se esconder atrás das serras deixando um rastro de tonalidades alaranjadas sobrepostas umas as outras. Uma salva de palmas em louvor à natureza cala momentaneamente a animada conversação. Já na pousada, proclamo a abertura da hora do angelus. Em bom português, a empolada expressão nada mais é do que “gente, estão abertos os trabalhos, vamos ao tragoléu”. Garrafas de vinho são desarrolhadas, amendoins e pipoca quentinha são servidos de aperitivo. Tudo de bom esse happy hour rural!! Pra culminar o festerê, na janta, o prato principal são 3 travessas de lasanha mais salada de alface, tomate, beterraba e cenoura cruas raladas. Durmo na sala, deitada em rede ao lado da lareira. O único senão é o ronco poderoso do Ed....deus que me perdoe, mas que vontade de arrolhar aquela “boquinha”. Sorte dele que não sou psicopata!

Dia seguinte, graças a deus, não fico isolada na crítica aos roncos emitidos pela escandalosa garganta do Ed. Alguns companheiros também fazem coro aos meus reclamos......hahaha......toma, Mau Ed!! Terminado o café, nos despedimos de Paulo Fernando, um cara super zen, e às 10 horas pegamos um estradão de chão batido. Cacau e outro cachorrinho nos acompanham correndo faceiros a nossa frente. Volta e meia param e nos esperam sentados no meio da estrada. Graças a deus deixamos o estradão pra entrar em uma picada aberta na mata atlântica percorrendo 6 km em terreno fácil até à reserva indígena Mbyá. Bom Ed entra na aldeia e pede permissão ao cacique José. Eu que aprendera com Paulo Fernando duas frases em guarani, diante do afável índio, bem exibida, lasco “araporã (dia bonito)...jaudio (bom dia)”, no que sou corrigida por José quanto à pronúncia desta palavra. Imediatamente sou abraçada por sua filha que fala algo em guarani. Quando ela traduz a pergunta, que significa se estou bem, mais uma vez me abraça efusivamente quando respondo sim. Permissão dada, filmo e fotografo porém com moderação. Povoam a pequena aldeia cerca de 40 pessoas e as casas só lembram ocas pelo telhado coberto com fibras de palmeira. Artesanatos feitos da casca da imbira estão à venda. A maioria das pessoas, é claro, compra um ou mais itens. Um tal de cachorro, chamado Guri, de tanto incomodar, latindo e pulando em cima das pessoas, é preso numa casinha. Do lado de fora, um outro dogue fica, segundo interpretação de Jo, consolando-o....hahaha, essa é boa! Uma índia, fanática gremista, informa que o grenal está 1x0 pro Grêmio.....ebaaaa!!!! Percebo que este trek é a verdadeira indiada, tá ligado? Despedimo-nos dos índios e continuamos ao longo da mesma trilha na mata atlântica durante 3 horas e 30 minutos, alternando subidas e descidas suaves até alcançarmos um lindo lago. Sob um frondoso pinheiro, nos acomodamos e descansamos um pouco após beliscar algo. O dia está tão lindo quanto ontem e o calor ainda que atinja 28º C é suportável. Do lago em diante, mais 2 horas e 30 minutos numa trilha ladeira abaixo que se estreita à medida que vamos perdendo altitude. Os 45 minutos finais exigem atenção constante porque a descida, num terreno crivado de pedras, muitas delas resvaladiças pra caramba, é mega íngreme. Após um desnível de 900 metros desde a pousada, chegamos em Linha Pinheiro, Barra do Ouro, distrito de Maquiné às 16:00, suados, cansados pero mui felizes. O dia termina com uma festiva celebração no restaurante de Dodô, no morro da Borussia, em Osorio, comendo gigantescos pastéis e brindando com a indefectível cervejinha.....tintim e até a próxima!!

sábado, 18 de junho de 2016

Enfim, las Yungas

Acordo às 5 da manhã com o galo cocoricando a milhão, tarefa que ele cumpre diligentemente até 8 horas quando então levanto e saio da barraca. Nem acredito no que vejo: após 2 dias de céu nublado eis o sol exibindo-se meio sem graça, mas não importa, tudo é melhor do que aquele ambiente cinzento que nos acompanhou durante 2 dias inteiros!! No desaiuno, liquidamos o resto do queijo que sobrara da janta. Os dois cachorros de Feliciana espertamente estão sempre enrodilhados diante do fogo de chão. Volta e meia ela ralha com Peluce, hilário! Aproveito que a fofa da velhinha está quietinha, mateando, pra puxar conversa. Queixa-se de que o dedo envolto em curativo dói. Indago, então, como conseguiu se machucar. Ela responde que rasgou o dedo num prego que prende a ferradura à pata do cavalo tentando sei lá se tirá-la ou se tentando raspar o casco do animal.....coitadinha! Partimos sem que eu consiga me despedir de Jose porque ele foi buscar mula e cavalo campo afora, descuidadamente deixados soltos ontem à noite. E sabemos, depois, quando o arriero telefona pra Fernando, que a demora foi bem mais duma hora até resgatar os 2 bichos! Feliciana nos leva até o final do páteo e, na despedida, lembra Fernando – pela décima vez, haja paciência - que não se esqueça de transmitir ao filho as encomendas que o guri deve lhe trazer quando vier visitá-la. Já afastados da casa, ouvimos sua vozinha fazendo as mesmas recomendações: "pilhas pro rádio, que o filho não esqueça de trazer". Um amor essa Feliciana! Às 9:30 já nos encontramos subindo o morro e à medida que ganhamos altura, aparece com nitidez a Quebrada Cuesta Grande e mais adiante a Quebrada Calderilla. A manhã, embora muito fria, está estupenda, céu claro e um charmoso colar de nuvens rodeia os cerros em frente. Paramos na Abra Sarapura onde há outra casa pertencente à Feliciana. Um lindo gato cinza e branco, super carinhoso, arqueia o lombo e se esfrega em mim, miando. Não deve estar mal de ratazanas nesta banda porque o bichano se mostra bem nutrido. O visual daqui de cima é estupendo, o mais bonito pra mim de todo o trekking. Dá pra visualizar o trajeto feito desde o 2º dia a partir da Abra de la Cruz e os cerros que se sucedem, alguns deles formando outro tanto de pequenas quebradas. Porque distantes os mananciais de água, não se acampa neste posto. O que é uma pena porque seria beleza pura acordar e dar de cara com tal cenário! Do posto Sarapura,  percorremos, não por muito tempo, suaves colinas onde preponderam gramíneas. Um mar de cerros verdejantes é o que tenho diante de mim. Adentramos, finalmente, na famosa yunga, que vêm a ser bosques nebulares característicos das montanhas andinas. Tão úmido este ambiente que pedras, troncos e galhos de árvores estão fartamente cobertos por musgos.  Paralelo à trilha, escuto vindo do estreito córrego, pontilhado de minicascatinhas, o incessante e agradável rumorejar da correnteza batendo nas pedras. Nada fácil caminhar nesta trilha aberta em meio à cerrada vegetação, o que me traz à lembrança nossa mata atlântica. A maioria das pessoas temem subidas, eu, entretanto, me cago nas baixadas. Esta, além de íngreme, tá cheia de pedras soltas. Como tem chovido muito, graças ao El Niño, o terreno em diversos trechos revela-se bem enlameado. Entre um bosque e outro, zonas descampadas onde domina descolorido capinzal. Aproveitamos pra comer algo quando chegamos ao posto de Calixta, abandonado após sua morte. Numa das janelas, o costume regional de desenhar a giz uma cruz rodeada por corações indica o recente falecimento da proprietária. Dramática mudança de tempo a partir do posto de Calixta. O céu nubla repentinamente e a neblina toma conta da atmosfera. Sucede-se a uma curta e áspera subida nova descida que desemboca numa clareira. Aqui acontece o imbróglio onde Fernando se perde e não encontra a continuidade da trilha. Começa então uma sucessão de entra-e-sai no que ele supõe seja a trilha principal. Triste engano: revelam-se apenas picadas abertas pelo gado, super fechadas, porque pouco transitadas, maior chatice percorrê-las, galhos barram o caminho e espinhos se agarram à roupa. Nada paciente, começo a me irritar com aquela galharia infernal e não vejo a hora de terminar a pernada. Após uma hora perdidos saltando dum filo a outro filo, como fala Fernando, acertamos o rumo e engrenamos lomba abaixo, avistando, finalmente, San Lorenzo e mais adiante Salta....ebaaa! Devido a outra desorientação de Fernando damos não em San Lorenzo, conforme o programado, e, sim, em Las Costas, um de seus distritos. Tadinho de Fernando, mais uma vez, se perde, nos fazendo descer por uma piramba do outeiro de La Cruz Blanca. Eu, pensando que a aventura terminara, percebo, louca de medo, que posso num vacilo despencar e quebrar o pescoço. Enfim, às 17 horas, após 14 km de pernada, alcançamos a estrada onde Pancha nos resgata. Hospitaleira, a mulher de Fernando, trouxe café (graças a deus não adoçado) e um delicioso pão feito em casa, receita de família. Estou super cansada razão por que recuso o amável convite de meu guia pra comermos empanadas regadas a cerveja preta numa bodega de San Lorenzo. Dou minha missão por cumprida e o que quero é singelo: um banho quente e caminha assistindo televisão, hehehe!

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Mulheres

Choveu durante a noite. Quando acordo, as gotas de chuva cristalizaram em cima da barraca. Faz um frio como há muito não sentia. Os homens encilham os cavalos, animadíssimos, preparando-se para a iminente cavalgada. Juan alvoroçado já está num alegre tragoléu. Mistura numa garrafa de 1,5 litro de refri vinho e coca cola guardando-a num dos alforjes que Fernando lhe trouxe. Ontem quando o guia lhe entregou o par de bolsas, ele se mostrou tão encantado como criança em dia de aniversário. Agora 10 horas as nuvens que encobrem o cerro Verde dispersaram-se  um pouco embora o céu continue nubladíssimo e o frio não dê trégua tanto que os dedos das mãos ardem de dor embora eu use luvas. Terminados os preparativos, os rapazes despedem-se cerimoniosamente estendendo as mãos ao passo que João me pespega uma beijoca na bochecha. E lá vão eles descendo o cerro rumo ao rio Calderilla numa animação juvenil. Pergunto a Pascoala se não se sentirá só sem o marido. De pronto, responde "me hace falta en las tareas domesticas", e trata de entrar no curral onde se encontram as ovelhas, ordenhando-as para com o leite fazer queijos. No desaiuno, ela coloca à mesa um belo naco de seu queijo de coloração branca e sabor suave. Enquanto bebo meu chá com leite, lembro do que Berta contou hoje pela manhã quando me convidou pra ver as ovelhinhas recém paridas. De que há ovelhas-mães que se recusam a alimentar suas crias, o que obriga o dono a apartá-las do rebanho, encerrando-as juntamente com os recém-nascidos num espaço à parte de modo a forçá-las a alimentá-los. Neste posto também o rádio fica dia e noite ligado porque pode algum parente de Juan ou Pascoala enviar alguma mensagem. Entretanto, a notícia que o locutor transmite é um pedido prum tal de Calixto levar 2 cordeiros pro velório duma senhora de nome Modesta. Vai ter festão pelo visto no bota-fora da defunta! Deixamos o posto Reinaga às 10:45 percorrendo por 2 horas uma baixada. Durante a descida, dá pra ver perfeitamente o rio Vuelta Grande serpenteando pela quebrada homônima formada pelos cerros Verde e Loma Grande. A paisagem perdeu bastante sua aridez, e a vegetação toma conta dos campos donde brotam gramíneas e coirones. Cruzamos um pequeno bosque de alisos, árvore de médio porte e tronco fino, cujos galhos a esta época do ano se encontram desfolhados. Abre-se no céu uma pequena janela de azul que nos dá esperança de que o tempo irá melhorar. Pouca demora, o olho azulado cede espaço novamente ao insosso acinzentado. Maldade das grossas esse falso alarme de bom tempo, ala putcha! Paramos na outra casa que Juan tem à margem do rio Calderilla onde se encontra uma de suas filhas. A moça mais os 3 filhos está se preparando pra subir o morro e visitar a mãe durante o fim de semana. Aproveito e retiro minha calça impermeável porque desconfio que se não choveu até agora não choverá mais. Como este tipo de calça esquenta muito o corpo, fazendo com que eu transpire em abundância, é melhor me precaver da perda de fluído corporal. O nevoeiro se dissipou de vez, o que restam são flocos esparsos de nuvens apesar de o céu permanecer com aquele aspecto pesado, como se tivesse com gana de encostar na terra. Caminhamos, então, por uma estrada onde é possível veículos transitarem. Segundo Fernando é a parte menos atrativa da jornada. Encravado no alto duma colina, o guia aponta o que parece ser um cemitério. Explica que os nativos da região constroem cemitérios em lugares altos de modo a perpetuar costume herdado dos incas em deixar os espíritos dos mortos mais perto do rei sol. Ao chegarmos a uma encruzilhada, Fernando indica o lugar não só como ponto de resgate se necessário como o término da versão de 3 dias do Trek de las Nubes. Saímos da estrada e passamos a caminhar no irregular terreno da margem coberta de pedregulhos do rio Calderilla. Como temos de passar pra sua outra margem, cruzamos a correnteza se equilibrando numa improvisada ponte feita de tronco de árvore. A partir daqui a paisagem muda radicalmente: não há mais vestígio algum daquele descampado árido que percorri durante 2 dias consecutivos, a vegetação é onipresente, forrando de verde os cerros do cume ao sopé. E surgem arbustos com delicadas e pequenas flores amarelas e vermelhas. Nem bem ultrapassamos o Calderilla, temos de cruzar outro rio, o Cuesta Grande, sem sinal de tronco ou pedras improvisados de ponte. Fernando procura no rio uma passagem que seja rasa >porém não encontra nenhum trecho onde possamos cruzar sem molhar os pés. O jeito foi arrastar um pedaço de tronco e jogá-lo sobre o leito empedrado do rio. Paramos pra almoçar e assim que terminamos de comer recomeçamos a andar. Com este tempo úmido, o frio se faz sentir assim que se fica muito tempo parado. Mais uma hora e 30 minutos de caminhada em terreno plano seguida duma subida leve duns 40 minutos ao longo do rio Cuesta Grande, quando então passamos a enfrentar um íngreme ascenso de curta duração morro acima. O que compensa é parar vez por outra e apreciar o rio lá embaixo confinado na quebrada Cuesta Grande. Após 5 horas e 20 minutos de pernada, calcorreando em torno de 12 km, estamos finalmente no posto Sarapura pertencente à Feliciana, ostentando recente viuvez. Há duas versões sobre a causa mortis do marido. A oficial declara infarte. Já as más ou boas línguas (depende do ponto de vista) apontam asfixia por ingestão de folhas de coca, morte nada incomum nestes ermos. Isso ocorre porque os homens, que passam o dia mascando coca, lá pelas tantas se embriagam e deitam esquecidos do que levam na boca, se engasgando com a maçaroca de erva durante o sono.  Mora com Feliciana uma vizinha, menina duns 13 anos. Tímida em nossa presença, a guria só fala quando algo lhe é perguntado e mesmo assim por monossílabos. A anciã é magrinha, de pequena estatura, e seus pequenos olhos escuros miram profundamente o interlocutor. Fala sozinha enquanto faz as tarefas domésticas. Irrequieta, nem bem senta já levanta pra fazer sei lá o quê. Sua risada, contudo, é surpreendente: forte, alegre, contagiante. Na igualmente enfumaçada cozinha de Feliciana, enquanto Jose prepara uma janta supimpa - massa com chuletas de porco ao molho barbecue - degustamos uma picada do queijo de ovelha que Fernando comprara da querida velhinha, regado com o delicioso tinto saltenho. Que happy hour!!

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Brumas na Quebrada Vuelta Grande

Quem dorme em barraca, sabe bem quão entrecortado é o sono. Cada vez que me viro, acordo, mas graças a deus volto a dormir rapidinho. Por causa desse dorme-acorda-dorme, escuto fortes rajadas de vento durante a noite. Quando acordo, o dia continua bonito como ontem: céu azul com fiapos de nuvens que não empanam o brilho do sol.  Jose veste-se com os trajes típicos de vaqueiro: uma proteção de couro que cobre a parte anterior de ambas as pernas, tipo uma saia sem a parte de trás. É um homem alto e forte com uma bela pança. Já Fernando é mignon e magro. Vaidoso, queixa-se de que está com sobrepeso na região abdominal. Eu, também, digo pra ele, hehe. Berta, quando chego na cozinha pro desaiuno, está escutando rádio. Como aqui não pega celular, o rádio é o meio com que as pessoas se comunicam entre si nestes ermos. Em sendo assim, Berta, a sorridente, tem como companhia o radinho de pilha enquanto lava a louça. Não para de sorrir nem quando conta que o marido a abandonou por uma paraguaia. Fala um bom espanhol porque viveu em Buenos Aires trabalhando como doméstica durante 20 anos. O fogo de chão já está aceso de modo a esquentar a água pro café. Saímos às 11:00 e o trajeto é praticamente plano até a Abra de la Cruz.  Quando lá chegamos, me viro pra apreciar o vale onde fica o posto de Berta e a  Quebrada Incahuasi;  bem ao fundo os nevados Acay e San Miguel de la Poma, dois cerros de 5 mil metros muito procurados por montanhistas. A partir da abra uma pequena descida até a paragem Vuelta Grande onde há uma casinha e um curral feitos de pedras onde dois cavalos nos miram com olhares sossegados. A partir dali entendo porque o nome do trek é de las nubes. Não só o vale de Lerma como a cidade de Salta, se não fosse por isso, dariam pra ser vistos daqui de cima das montanhas, contudo, se encontram encobertos por uma massa compacta de nuvens. Uma pena que não dá pra se distinguir nadica de nada sob a espessa bruma. Parece um gigantesco lago branco suspenso no ar! Dois grandes cerros que não se deixaram ainda envolver pela neblina se defrontam, o da esquerda é cerro Loma Grande em cuja encosta é visível um sendero por onde subiremos; já o da direita chama-se cerro Verde. Ambos formam a quebrada Vuelta Grande cuja abra recebe o nome de Planchones. Quando iniciamos a subida do Loma Grande, a cerração se instala de vez na paisagem, Caminhamos praticamente o resto do tempo dentro de nuvens, tanto que Fernando em tom jocoso observa “estamos dentro de un gigantesco nebulizador, Beatriz”. Parada para almoço quando então, inevitavelmente, discutimos sobre o clima. Fernando adverte-me que se chover forte amanhã será obrigado a pedir resgate via telefone satelital com o que será enviado um 4x4 até uma estradinha cujo acesso está a 15 km. Consultado, Jose, um pessimista, opina, é claro, pela possibilidade de chuva no decorrer do período. Eu, absolutamente desencanada quanto à questões meteorológicas – pode estar cinzentézimo o céu e até garoando que nada disso me afeta ou impede de fazer as coisas -,  assevero que San Pedro não vai nos deixar na mão. Jose limita-se a me lançar um olhar descrente sem nada comentar. Rebanhos de ovelhas ao longo do caminho são cuidados por cães vigilantes que rosnam pra nós quando passamos. Basta, contudo, um gesto de mão e um xô xô pro animal recuar. Ainda em meio à forte cerração, o que baixou muito a temperatura, só descida até o posto Reinaga onde chegamos às 14:30. Pelos meus cálculos devemos ter caminhado uns 6 km. O destaque na paisagem são pedaços ainda sangrentos da ovelha recém carneada pendurados em ganchos presos nos galhos duma árvore. Sobre o muro de taipa, que rodeia a residência, um conjunto de 3 casas de pedra em formato de U, a pele da ovelha jaz estendida exibindo o couro branquinho. Juan, o proprietário, é um setentão baixote, gorducho e alegre. Já sua mulher, Pascoala, é séria e mal consigo entender seu espanhol. Não rola entre nós a mesma química que rolou com Berta. Possui outro temperamento a roliça senhora cuja idade, 74 anos, aparenta menos. Ali já se encontram oito jovens, amigos de Juan. Vieram a cavalo de San Lorenzo para amanhã buscarem um gado. Sentados ao redor duma mesa, embaixo dum telheiro, o frio é acabrunhante menos pra eles que bebem pra caramba. Num caldeirão, um dos jovens acendeu um braseiro que transmite um pouco de calor ao ambiente aberto. Uma caneca passa de mão em mão. Não resisto e peço pra provar a beberagem, resultado de erva mate e água, coada, mais um tanto de graspa. Taí, gostei! Jose, num fogãozinho de 2 bocas, prepara uma panela de lentilhas com batatas e linguiça. Com fome e porque o prato está saborosíssimo, peço bis. Juan, já bem altinho de tanto beber uma mistura de vinho com coca cola, nos oferece assado de ovelha. Macia e suculenta, a carne está nota 10. E, mais uma vez, Fernando enche meu copo com aquele tinto saltenho muito bem vindo pra acompanhar tão agradável ceia. Eu adoraria ficar mais tempo usufruindo de tão alegre companhia mas o frio está mesmo de renguear cusco. Por isso, me despeço desejando boa noite a todos e me toco pra minha barraca, armada um pouco adiante das casas, abrindo alas em meio à névoa e à escuridão das nove da noite. Como foi super tranquila a pernada sem nenhuma subida ou descida forte, leio algumas páginas de Fundação, livro escrito pelo mago da ficção científica, Isaac Asimov. A voz alta de Juan se destaca entre as demais seguindo-se estrondosas gargalhadas. Ala putcha, vidinha bem boa esta!

quarta-feira, 15 de junho de 2016

Sendero de las Nubes

Saída da estação rodoviária às 08:00 com o guia Fernando, um mendocino, sessentão como eu, que se estabeleceu em Salta após ter sido guia de montanha na região do Aconcágua, tendo acumulado a marca de 10 cumes na mais alta montanha das Américas. Inicialmente, iria fazer o trek com uma família porteña mas sei lá o motivo de eles terem adiado pra julho o programa. Entramos no busão e percorremos 70 km ao longo da Ruta 51 até o ponto donde iremos começar a caminhada. Esta ruta, super transitada, em especial por caminhões, termina no Paso Sico fronteira com Chile, daí continuando com outro nome até o porto de Antofagasta, motivo de sua importância pros argentinos. Excitada com a aventura, dormira pouco a noite, daí porque cochilo quase todo o trajeto perdendo a bela paisagem oferecida pela Quebrada del Toro, garganta com aproximados 90 km de extensão. Tanto que lá pela tantas escuto Fernando chamando minha atenção para ver os trilhos suspensos do famoso Tren de las Nubes. O busão nos larga na frente da Finca Incamayo às 10:15 onde o arriero Jose já ali se encontra. Irá transportando a bagagem uma mula (o bicho suporta em seu lombo até 60 kg), ao passo que ele irá a cavalo. Enquanto os homens finalizam os preparativos de prender as sacolas no animal, curto o impressionante barranco ocidental, uma das paredes que forma a Quebrada del Toro, e a coloração avermelhada de sua rocha permeada de canaletas como se fossem minigargantinhas.  O Trek de las Nubes por mim rebatizado Sendero de las Nubes (soa mais simpático, não é mesmo? afinal, estou num país onde o idioma é espanhol), erroneamente apontado como um recorrido na pré-cordilheira andina, em realidade, percorre serras subandinas. Fernando, como não me conhecia, tomou a decisão de não iniciar a caminhada a partir do posto da gendarmeria Ingeniero Maury, como é costume, desistindo de entrar pela Quebrada del Toro, e, sim pela paragem da Finca Incamayo, 18 km antes, penetrando via Quebrada Incamayo. Por quê? Quis com isso me poupar 200 metros a menos de desnível. Andamos pouco tempo dentro da Quebrada de Incamayo porque logo se torna impraticável caminhar ali dentro: estreita, tem saltos que não se pode contornar. Assim, começamos a subir seu flanco oeste, bem íngreme e com muita pedra solta. Alcançamos sua crista percorrendo-a por bom tempo enquanto à esquerda avistamos a sinuosa Ruta 51, a Quebrada del Toro e vários cerros de 4 mil metros que se situam além como Bayo, Redondo, Camara e Manzana. À direita, o Cerro Pacuy domina a parede oposta da Quebrada Incamayo. A paisagem é árida, predominando cactus (coirones), alguns com quase 5 metros de altura. Em toda esta zona há muitas ruínas incas como corrales e uma antiga mina explorada pelos incas e posteriormente pelos espanhóis. Contudo, remonta a 600 anos e, portanto, pré-incaica, a bem conservada pukara, localizada estrategicamente entre as Quebradas del Toro e Incamayo, para o exato propósito de servir como torre de vigilância. Embora friozinho, o dia está lindo, céu azul cujas nuvens baixas emolduram as encostas dos cerros.  São mais de 2 horas de intensa subida até que pelas 14 horas paramos para almoçar. O menu é um baita sandu com tomate, alface, queijo e frios mais bolachinhas doces e salgadas. Após mais 2 horas ganhando altura, enveredamos a leste, iniciando a descida e retomando a caminhada pelo interior da Quebrada de Incamayo. Cruza-se diversas vezes o leito mirrado e estreito do córrego Incahuasi e, como num passe de mágica, a paisagem muda, passando a se exibir mais verdejante. Abundam arbustos de pequeno porte e chama a atenção a interessante yareta, planta que chega a ter até 3 mil anos de existência. Ignorante em Botânica quando olho penso que se trata duma pedra recoberta de musgo, hehe. Logo a vegetação mais "abundante" cede novamente lugar à aridez. E sobre uma colina, outras ruínas, estas declaradas monumentos históricos, o chamado sítio arqueológico Incahuasi. Destaca-se pela boa conservação a Silla del Inca. Trata-se duma casa de banhos onde os incas construíram um sistema de encanamento, puxando água dum córrego, de modo a que pudessem se banhar sob um cano que lhes servia de ducha. Pensa que eles, os incas, tomavam banho de pé? Hahaha, só não!! Sentadinhos confortavelmente num banco de pedra, daí a origem do nome silla del inca. Também dura 4 horas a segunda metade da pernada, a da baixada, porém sinto um cansaço incomum. E me queixo pra Fernando que estou realmente começando a sentir o peso dos anos. Ele põe os pingos nos "is", esclarecendo a razão: ascenso de quase 1000 metros já que da Finca Incamayo, situada 2.400 metros estamos agora a 3.370, aqui, no posto de Berta.....ufa, que alívio, nem me tocara dos efeitos da altitude!! Foram 8 horas de atividade com poucas e breves paradas: saída às 10:45 e chegada às 17:45, percorrendo bem uns 14 km!! O local de nosso acampamento tem até algumas árvores, desfolhadas, todavia, nesta época do ano. Mais adiante, 3 edificações de pedra com tetos e portas feitas de cardones secos, técnica de construção herdada dos antepassados incas. A falante e simpaticíssima Berta, nascida Bernabia, vive mais solita neste ermo que acompanhada porque o sobrinho sempre que pode se manda pro vilarejo mais próximo. O falante Jose, além de arriero atua também como cozinheiro. Prepara uma galinha deliciosa, super bem temperada, na grelha ao passo que Fernando se encarrega da salada e Berta cozinha papas andinas, pequenas e saborosas. De bebida,  o guia apresenta uma garrafa de vinho salteño...que requinte...uau!! A única coisa que estraga um pouco a ceia é a fumaça desprendida pela yareta, usada como combustível pra alimentar a fogueira acesa no chão batido da pequena cozinha. Arde pra caramba os olhos. A única que não se abala é a sorridente Berta. A noite, iluminada por uma quase lua cheia, está super estrelada, tanto que nem preciso usar lanterna pra me locomover.  Cansada, janto e me mando pra barraca, nem vontade de ler tenho. A temperatura está fria mas não o suficiente pra que eu precise dormir de gorro ou de luvas...ebaa!!