sábado, 28 de dezembro de 2019

Rolê no Sahara

O deserto do Saara, um dos cartões postais do continente africano, ocupa perto de 8 milhões e 600 mil km². Cerca dum quinto é areia, o restante inclui vastas extensões planas de rocha, cascalho e algumas montanhas como a cordilheira de Hoggar, na Argélia. As culturas de vegetais e legumes se dão em 90 grandes oásis. Porém somente uma pequena parte do Sahara está no Marrocos, a maioria na fronteira com Argélia. Assim, no dia 27, vamos eu e Raul dar um bandaço naquela região, contratando para tal uma agência de turismo perto de nosso riad. O falante dono, machista como a maioria dos homens, quando lá vou sozinha me trata meio desdenhosamente, mudando o tom quando levo Raul. Ah, esses macho...cados!! A viagem de ida - 560 km - é dividida em 2 etapas: pernoite no primeiro dia na vila Ait Sedratejbel El Soufla, seguindo viagem no segundo dia até as dunas, ponto final da trip, quase na divisa com Argélia. Atravessamos diversas cidades de médio e pequeno porte, limpas e com boas construções. Marrocos, aparentemente, não é um país pobre, não!! Bueno, nosso grupo com gente de vários países é bem legal. No 1º dia, trafegamos inicialmente pela excelente Rota Nacional 9 (aliás todas estradas pelas quais circulamos foram boas) donde se vêem as montanhas do Atlas, algumas com as encostas nevadas, outras verdinhas de vegetação. Estamos atravessando um dos 12 estados marroquinos: Draa Tafilalet. Sua principal atividade econômica baseia-se na agricultura e na pecuária que, contudo, vem sendo impactada pela crescente desertificação da região. À medida que entramos em território bérbere, as casas se confundem com a paisagem ora de coloração ocre ora parda. Os bérberes chamam a si próprios Imazighen, que significa "homens livres" ou "homens nobres". Esta interessante junção de várias etnias, exclusivamente africanas, espalha-se pelas montanhas e desertos do noroeste da África donde é originária. Sua presença na região remonta há 5 mil anos. A população atual está em torno de 15 milhões de pessoas. Diz-se que 70% dos marroquinos descende deste povo. Nosso anfitrião, por exemplo, é bérbere pelo lado materno, ao passo que árabe pela linhagem paterna. Os tuaregues, o mais conhecido dos 3 principais grupos bérberes, são pastores nômades que ainda vagueiam pelo deserto do norte de África. Na sua maioria, são muçulmanos, mas conservam suas línguas e dialetos próprios que mudam conforme a região. Nossa primeira parada é Ait Ben Haddou, considerada Patrimônio da Humanidade, tornada famosa devido a dezenas de filmagens, destacando-se a série Indiana Jones e Game of Thrones. Constituída por um grupo de pequenas fortalezas (kasbahs ou alcáceres), com dez metros de altura cada uma, o primeiro alcácer foi fundado em 757 e começou como a residência duma única família. Em alguns alcáceres, há 4 torres destinadas cada uma a servir de habitação às 4 mulheres permitidas pelo Alcorão aos homens de posses. Simmm, tinha de ter grana pra ter mais duma esposa. Ao homem pobre só era permitido uma mulher. Oito famílias ainda vivem nos alcáceres; o restante dos habitantes mora agora numa aldeia mais moderna, no outro lado do rio Ounilla cuja água é inacreditavelmente salgada já que o oceano está a centenas de kms!! Subi até o alto duma colina donde se tem uma visão do altiplano marroquino com uma fileira de montanhas do Atlas pontuando a paisagem. Aqui a paisagem se torna cada vez mais árida prenunciando a área desértica que está por vir. E a viagem continua até Ouarzazate, cidade de médio porte, limpa e com boas construções, chamada "porta do deserto", já que se situa numa zona de transição entre as montanhas do Atlas e o deserto do Saara. A região em volta é um dos locais de Marrocos mais usados como cenário por realizadores de cinema de todo o mundo. Nos anos 1960, começou a ser um lugar de rodagem de filmes históricos, entre os quais o célebre Lawrence da Arábia. A cidade é sede dos estúdios Atlas Corporation e tem um museu do cinema onde são expostas peças dos cenários e vestuário usados em alguns filmes rodados na região. Após a breve parada em Ouarzazate, seguimos até a velha Kasbah de Todgha, situada no vale do rio Dades. Aqui, somos guiados por um guia, parecido com Al Pacino, metido a engraçadinho, que nos leva a visitar uma cooperativa de tecelãs bérberes. Fabricantes artesanais de tapetes, as mulheres trabalham apenas 3 horas, demorando de 5 a 6 meses pra finalizar 1 peça. Usam pelagens de camelo baby e adulto, bem como de ovelha. O do camelo baby parece veludo de tão macio. As técnicas de tecelagem são passadas de geração a geração. Vejo ao longo da rodovia placas de cooperativas femininas agrícolas e de artesanatos. Bom saber que as mulheres aqui também sabem se organizar. Seguimos então até a espetacular parte final do canyon Todgha, resultado do trabalho de erosão do rio Dades. Aqui a garganta se estreita de tal modo que em certo trecho tem apenas 10 metros de largura. Somente na estação da seca é possível atravessá-lo porque na época das chuvas a forte correnteza do rio impede sua visitação. Enfim, chegamos na vila Hassi la Bied, uma das portas de entrada às excursões no deserto Merzouga. Aqui deixamos a van e embarcamos numa 4x4 até nosso acampamento, um dos muitos situados entre dunas cuja coloração é avermelhada. Entretanto, não chegamos a passear em Erg Chebbi, o maior conjunto de dunas de Marrocos porque a agência, manipulando nossa ignorância, nos iludiu ao dar a entender que iríamos adentrar Sahara adentro. Assim, o que vimos foram dunas um pouco maiores que as das praia do Cassino e não aquela monumentalidade a que assistimos nos filmes e fotos. Raul e eu ficamos muito aborrecidos por termos sido enganados pelo esperto marroquino, dono da agência. Enfim, não foi de todo mal, afinal não é qualquer um que pode dar um rolê no lombo de camelos à tardinha no sol poente. À noite, show de música bérbere com homens tocando seus instrumentos tradicionais e cantando canções típicas ao pé duma fogueira pois a noite está muiito fria. Dia seguinte, acordamos cedo e após o desjejum, vamos dar outro rolê nos camelos. Faz um frio terrível, em torno de 4ºC!!, minhas mãos congelam porque estou sem luvas. Depois duma ½ hora, os guias param num lugar situado a 2 km do acampamento e fazem uma fogueira pra nos esquentar. Dali embarcamos no 4x4 e voltamos até a vila Hassi la Bied onde embarcamos na nossa van retornando a Marrakech. Embora tenha sido uma trip convencional, daquelas que a bunda achata de tanto ficar sentada dentro dum carro e parando 1 hora se tanto nos lugares, Raul e eu concordamos que valeu não só pelas lindas paisagens e vilas milenares visitadas, como ainda por termos conhecido um pouquinho deste tão interessante povo bérbere!!

sábado, 21 de dezembro de 2019

Marrakech

Como faço há 2 anos desde que Raul, meu único filho, se mudou pra Bissau, capital de Guiné Bissau, vou no final do ano ter com ele. Aproveitamos então pra conhecer alguns países, africanos. Assim sendo, só permaneço 2 dias em Bissau, justo pra renovar meu visto. Dia 20 de dezembro nos tocamos pra Marrocos, um dos países (os outros são Argélia e Tunísia) pertencentes ao Pequeno Magreb, situado no noroeste da África. Na época do Império Romano, era conhecido como África menor. Em 1956, Marrocos que, até então, era protetorado francês, tornou-se independente, constituindo-se atualmente numa monarquia constitucional. Nosso primeiro destino em solo marroquino é Casablanca onde nos hospedamos no ape de Omar, amigo de Raul. Embora não seja capital do Marrocos, é sua mais populosa cidade com cerca de 5,5 milhões de habitantes. Situada à margem do Atlântico, tem o maior porto do norte da África, sendo o centro financeiro e industrial do país. Moderna, com amplas avenidas, a cor branca prevalece nas construções, daí a origem de seu nome. Ao estilo mourisco entremeia-se o legado arquitetônico francês. A ampla variedade de restaurantes, cafés e bistrôs oferece, além da culinária marroquina, a de outros países, dando à Casablanca certa feição cosmopolita. Quando chegamos ao apartamento de Omar, sua mãe, a carinhosa e hospitaleira Zeina, nos espera com um tacho de cuscus, tradicional comida árabe feita com sêmola de trigo, ao contrário do nosso cuscus feito com milho. Dia seguinte à nossa chegada, vamos com Omar a uma cafeteria onde provamos um tradicional desjejum marroquino. Lá se encontram além da mãe de nosso anfitrião, Rabiaa e Ali, respectivamente, cunhada e irmão de Omar. O nome da moça significa primavera. Provo harira, a sopa nacional marroquina. Trata-se dum caldo de muita sustância feito com carne, tutano, lentilha, grão de bico, aletria temperado com diversas especiarias. Terminada a refeição, passeamos no boulevard La Corniche onde só é permitido ver o lado externo da Mesquita Hassan II, construída parcialmente sobre o mar, sendo a segunda maior mesquita do mundo islâmico. Com seu teto retrátil permite que os fiéis rezem tanto à luz do dia como sob a luz da lua e das estrelas. No retorno pra casa, vejo alguns mendigos nas calçadas. E o véu muçulmano, o hijab, continua sendo muito usado no país, tanto que Zeina só o retira quando Raul não se encontra no ape. Como é usual, em qualquer cidade muçulmana, os minaretes das mesquitas sobressaem entre os prédios, ouvindo-se o chamamento dos muezins 5 vezes ao dia, convocando às preces os fieis. No terceiro dia, deixamos Casablanca num confortável ônibus rumo a Marrakech percorrendo uma excelente autoestrada. Marrakech, a cidade vermelha, assim chamada pela coloração de suas construções, situa-se no sopé da cordilheira do Alto Atlas. É a quarta maior cidade do país com cerca de 1 milhão de habitantes. Chegamos à tardinha na cidade marroquina que mais atrai turistas no Marrocos. A sua parte antiga, conhecida como Medina ou Almedina é cercada por muralhas com 19 km de perímetro, cujo propósito nos tempos dantanho era de proteger a antiga cidadela. Classificada como Património Mundial desde 1985, a Medina de Marraquech abriga o maior mercado (souk) tradicional bérbere, composto por um labirinto sinuoso de ruas estreitas, muitas delas cobertas por telhados de pedra ou madeira, exibindo centenas de lojas. Chatos vendedores de rua quase arrastam os turistas pra visitarem seus bazares...que pentelhagem....socorro Alá!! Aqui, são vendidos, desde os tradicionais produtos de couro e tapetes bérberes até eletrônicos de última geração. Em algumas tendas, a estonteante oferta de ervas aromáticas, destacando-se rosa mosqueta, pedra de granada, canela e macela. A oferta de doces tanto nas ruas quanto em confeitarias tira a gente do sério. Ali e acolá vendedores em cujos carrinhos espigas de milho assam em braseiros sempre acesos. Entretanto, um perigo o movimento incessante de motos nas apertadas ruas sem calçadas da Medina. Os motoristas tiram fininhos impiedosos dos pedestres. Aliás, os marroquinos não são lá muito bem educados no trânsito assim como os brasileiros. Além de laranjeiras e bergamoteiras, enfeitam as calçadas das avenidas centrais, canteiros com pés de roseiras em diversas colorações. De qualquer ponto da cidade se vê a Mesquita Koutubia, e nos seus arredores, vendedores de água paramentados com seus trajes típicos oferecem o líquido. Na praça Jamaa Lafna, coração da Medina, impera o comércio de comidas: tendas de frutas com romãs, caquis, laranjas, bergamotas, maçãs, melões e manga bem como de frutas secas. Mais adiante, tendas de carnes, peixes e frutos do mar. Competem lado a lado quiosques de comidas regionais. Se à noite o espetáculo das lamparinas acesas dispostas no chão da praça é de encher os olhos, durante o dia quem faz a festa são os macacos e as cobras oferecidos por seus amestradores para tirar foto com os turistas. Embora medrosa, pago pra tirar foto com uma cobra tipo naja. Adorei!! Igualmente, se paga se quiser filmar músicos tocando seus instrumentos típicos enquanto homens dançam ao som das melodias no interior da roda formada por turistas e nativos. E contadores de estórias desfiam as façanhas e lendas do povo bérbere. Pena que que eu não entenda patavina da língua. Disponíveis pra se dar um rolê na cidade há, a duas quadras da praça, caleças de aluguel conduzidas cada uma por 2 garbosos cavalos enfeitados com flores de plástico coloridas na cabeça. Estamos hospedados na Medina, num riad que vem a ser aquela construção árabe com pátios internos em seu interior. Nosso riad é um hostal bem legal, sendo que os hóspedes, em sua maioria, são jovens oriundos de várias cidades europeias, exceto uns pouquíssimos africanos. De seu terraço, ao final da tarde, dá pra curtir o canto dos muezins chamando pra penúltima prece enquanto o sol se põe no ocidente tingindo de rosa a neve acumulada no topo das montanhas do Atlas. Durante os 5 dias em que permaneci em Marrakesh conheci atrações turísticas super interessantes como Jardin Majorelle comprado por Ives Saint Laurent e seu companheiro, Pierre Berger. Restaurado, foi aberto ao público após a morte do casal. No jardim, além duma coleção de cactus trazidos de vários pontos do planeta, há o interessantíssimo museu bérbere mostrando a cultura deste povo que constitui 70% da população marroquina. Numa das muitas pernadas dentro da Medina, dei de cara com o maravilhoso Museu de Arte Culinária Marroquina onde, em duas salas voltadas para um dos jardins, há a exibição de 2 mulheres demonstrando como se faz cuscus e extração de azeite de oliva. Aqui desfruto um típico almoço com 3 saladas de entrada: tomate caramelado, pasta de berinjela e taktouka, mais briwat (tipo de pastel) de vegetais com queijo e sekare. Prato principal, tajine de frango com confit de limão. Sobremesa, pastilla au lait. Bebida, chá. Uma observação, o feijão com arroz dos marroquinos é tajine, que pode ser bem simples, apenas usando legumes e verduras, até os mais sofisticados que levam carnes e peixes. Perto dali fica a Kasbah, região movimentada, ainda dentro da Medina, pra onde me toco a fim de visitar as Tumbas Saadianas. Neste mausoléu coletivo estão sepultados cerca de 60 membros da dinastia saadiana, que reinou em Marrocos nos séculos XVI e XVII. Roseiras brancas e arbustos de camélias vermelhas foram plantados ao pé das sepulturas cavadas no chão, enfeitadas com ladrilhos coloridos. Um lugar muito tranquilo se se desconsiderar a quantidade de turistas assanhados em tirar fotos diante dos túmulos. Ainda na Kasbah, passo ao largo da mesquita Moulay El-Yazid a caminho da Porta Bab Al Agnaou, um imponente portão do século 12 em forma de ferradura, decorado com inscrições do Alcorão. O último lugar a ser visitado foi o Jardim Menara, casa construída por 1 sultão para seus encontros amorosos. Do jardim Menara tem-se uma bela visão das montanhas que abraçam Marrakech com seus picos ainda nevados nesta época do ano. Deixamos Marrakech, após o natal, porque estamos Raul e eu super a fim de fazer um tour no famoso Sahara....simbora pro deserto!!