domingo, 4 de agosto de 2019

Abraçasso no Brasil 2019: Poeta, Camões do Jalapão

E lá vamos nós, eu mais Pedro Emilio, rumo ao destino final da trip: Jalapão. Hoje, segunda-feira, coincidentemente, 1º de julho, saímos cedinho da vila São João porque temos pela frente quase 600 km até Palmas. Embora curta muito a capital do Tocantins, a permanência é vapt vupt. Jalapão me aguarda. Trato então de aproveitar muito bem o dia na cidade, pedalando até Luzimangues, num solaço de 34º C. Banho-me nas águas mornas e transparentes do lago Tocantins, jantando à noite, eu e Pedro Emilio, saboroso tucunaré na praia da Graciosa enquanto assistimos Brasil x Argentina pela Copa América. Na quarta, constato com satisfação que a TO 130 que liga Palmas a Ponte Alta está boa ao contrário do ano passado quando se apresentava exasperantemente esburacada. A partir de Ponte Alta, o horror começa: a TO 255, de chão batido, cheia de costeletas, é uma provação física e emocional. Os 105 km até a sede da fazenda Progresso é como se estivéssemos dentro duma britadeira e não dum carro. Milma e Antonio ficam contentíssimos quando me vêem, se tornando amigões de Pedro Emílio instantaneamente. Penduro a rede perto da densa mata que se espalha ao longo do córrego Frito Gordo embora Antonio me alerte sobre o risco da passagem de onças à procura de capivaras que costumam se banhar no rio Novo, distante 30 metros. Pois certa noite, lá pelas 3 da madruga, escuto, após os latidos nervosos de Pluto, o ruído pesado das patas do felino correndo na mata. Santo deus, que medo! Chamo Pedro Emílio e peço-lhe “rápido, criatura, acende a fogueira!”, o que ele faz em 10 segundos. E de olhos bem abertos, acordadíssimos, esperamos ansiosos o dia clarear! Com tal cagaço, rapidinho, mudamos as redes de lugar! Bueno, meu objetivo ao retornar pra cá, não é turistar e sim construir uma tapera no talhão por mim adquirido ano passado quando cá estive. Pra tanto, vou a Mateiros, distante 70 km, enfrentando outro trecho tenebroso da TO 255, coberto de areia fofa. À medida que nos aproximamos das dunas, vai se agigantando o inconfundível formato de rolha de espumante do morro Sacatrapo. O movimento de veículos com turistas é intenso já que estamos no mês de julho, férias escolares. Em chegando a Mateiros, procuro Poeta, especialista na construção de taperas. Promete que, terminado o rancho que está construindo, começará o meu. Quando retorno à fazenda Progresso, vou dar um vistaço na minha chácara. Nem lembrava quão linda é, estou encantada. Com sua pequena praia de areias douradas à beira do rio Novo que, de tão limpo, ainda é reduto dos exigentes patos mergulhões, vislumbra-se além da mata ciliar extensa vereda de buritis onde o capim dourado já começa a dar pinta. Meus deus, que incrível, sou dona dum pedaço lindo de puro cerrado, nem acredito! Batizo a chácara de Vereda Dourada!! Antonio e Milma que venderam parte da fazenda Progresso prum deputado de Palmas se mandam, contentes, pra Porto Nacional onde começarão vida nova. Deixado pra cuidar do lugar, Rubens. Natural de Ponte Alta, fala mansa, cuida com capricho do restaurante, preparando saborosos pratos caseiros, em especial peixes por ele pescados no rio Novo. Narra que, fugindo da aridez do sudoeste do Piauí, seus pais vieram pra cá em busca duma vida melhor. Montada em jumento a mãe, e o pai em mula, o jovem casal alcançou após 5 dias de cavalgada Mateiros. Após descansarem dois dias, seguiram viagem, atravessando a serra da Muriçoca pra se estabelecerem duma vez por todas em Ponte Alta. Na década de 60, explica Rubens, Mateiros e Ponte Alta eram carentes de certos recursos, o que obrigava os nativos a longas incursões ao Maranhão, carregando nos lombos de mulas rapadura, toicinho e cachaça trocados por sal, querosene e outros víveres. Após a partida do casal Antonio e Milma, nós nos mudamos pra chácara vizinha cujo dono mora em Brasília porque o deputado e seus amigos promovem festas ruidosas quando vêm passar o findi aqui. Queremos sossego... xô som alto até as 3 da madruga tocando sertanejo sem parar. Enquanto aguardo a chegada de Poeta, os dias seguem deliciosa rotina: lavo louça e roupa à beira do rio Novo; sobre pequenas fogueiras improvisadas por Pedro Emilio no meio do terreiro, cozinho pros desjejuns mingaus de aveia com melaço de cana e sopões de legumes nos almoços e jantas; chapatis, feitos por Pedro, reforçam as refeições. Vez por outra, deliciosas fritadas de lambaris, pescados pelo Xamã Sideral, são regadas a cachaça da terra! À noite, uma raposa passeia blasé do outro lado da cerca olhando de canto de olho pra nós. Na escuridão, seus olhos luzem no meio do mato, nos observando. Pedro Emilio não para de ver estrelas cadentes riscando o céu sem nuvens. Invejosamente, acuso-o de estar inventando, impossível tanta estrela despencando céu abaixo assim, caramba!! Pura inveja minha, porque não consigo ver uminha!! Hoje, 17 de julho, quarta-feira, vou pras Cariocas, praia distante 500 metros donde estamos, juntar-me ao pessoal da 4 Elementos que opera no Jalapão um combo de raft no rio Novo mais passeios pelos fervedouros e dunas. Conheci Galera, um dos sócios desta empresa de ecoturismo, através do Antonio, e me “convidei” pra fazer o raft. Quando chego ao acampamento, os guris da equipe chamam minha atenção pro eclipe parcial da lua que se delineia no azulado céu de fim de tarde. No 1º dia, parte-se das Cariocas e após 6 horas chega-se ao acampamento nos Buritis Pelados, após enfrentar dezenas de corredeiras cujos níveis variam de 1 a 4, destacando-se pelo grau de dificuldade Icion, Coice da Anta, Pata da Onça e 4 Elementos. Inúmeras praias de areia dourada ora ladeadas por densa mata ora descortinando a vastidão das veredas de buritis. Patos mergulhões flutuam na correnteza enquanto martins pescadores e biguás dão rasantes nas transparentes águas do rio. As queimadas são uma constante durante os 23 km do percurso. Embora curto o trajeto do 2º dia, o raft reserva emoções de tirar o fôlego e provocar frio na barriga!! Após os guias portearem o bote vazio até o remanso após a Velha, nós damos um balão nela caminhando por uma trilha que conduz à beira rio. Reembarcamos no bote e remamos em direção à gruta situada numa reentrância da cachoeira, que despenca sua espessa cortina d’água diante de nós. Agora sim, começa a verdadeira adrenalina: enfrentar as turbilhonantes corredeiras Frankstein, Índio e Éxtase que se sucedem vertiginosamente uma após a outra. Infelizmente, este curto e emocionante trecho de raft termina na prainha do rio Novo onde Pedro Emilio me aguarda. Como urge comprar mais víveres, dali vamos pra Ponte Alta onde nos hospedamos na Pousada Progresso cuja gerente, Vanda, narra sem pressa, a cabeluda estória de sua vida. Mulher guerreira sustentou os 9 filhos fazendo quitutes pra fora. Dos 3 maridos, apenas com o segundo foi feliz. Como alegria dura pouco, ele morreu, deixando-a viúva eternamente saudosa. A mando dum genro de olho nas suas terras, foi enviado pistoleiro contratado ao custo de R$ 1.500,00 pra matá-la. Mas não é que o cabra se encantou por Vanda e desistiu de dar cabo de sua vida, só não matando a peste do genro porque ela o impediu?! E os dias se sucedem tranquilos. À tardinha, costumo ir até Rubens pra carregar o celular porque onde Pedro e eu estamos não há energia elétrica. Contra a infernal mosquitama que ataca impiedosamente de manhã cedinho e ao pôr do sol, nada melhor que armar um fumacê feito com folhas secas. É tiro e queda! Finalmente, no dia 22, chega Poeta, pilotando sua motoca, cheio de energia, pronto pra fazer a tapera. Natural de Mateiros, o cinquentão, de físico aprumado, é trisimpático e muito falante ao contrário de seu ajudante, Jesuíno, do tipo que entra mudo e sai calado dos ambientes. O apelido Poeta se deve ao gosto de conversar em forma de repente, quando baixa a inspiração. Pedro, que se hospedou em sua casa quando estivemos em Mateiros, me conta encantado que Poeta antes de adormecer e ao acordar escuta música de ninar. Aproveito e acrescento ao seu apelido Poeta, Camões do Jalapão, porque, assim como o bardo português, ele também é caolho. Perdeu seu olho direito numa emboscada armada por um cabra malvado que, despeitado por ter perdido 3 partidas de sinuca, o feriu, gravemente, permanecendo o pobre 28 dias em coma. Embora o bandido não tenha sido punido pela justiça dos homens, morreu num acidente de carro, “com a espinha partida”, acrescenta Poeta sem qualquer pingo de triunfo. Poeta mais Jesuíno levam 1 dia derrubando a golpes de machado os sassafrás pretos e as pindaíbas que serão usadas na construção da tapera. No dia seguinte, esse material é arrastado, literalmente, não só pela minha camionete como pelas motos de Poeta e Jesuíno até a clareira onde será erguida a tapera. Acompanho dia a dia o processo de construção. Não há como não ficar apreensiva com o trabalho duro e arriscado de Poeta e Jesuíno quando escalam os 4 metros de buritis pra cortar do alto das palmeiras as folhas a serem usadas na cobertura do telhado. Em 6 dias, eis erguidíssima a “casinha”!! E Poeta se torna, além de Camões, o Niemeyer do Jalapão!! Pedro Emilio mais eu penduramos ali as redes, passando nossa última noite no Jalapão na tapera recém construída!! Paralela à construção da tapera, muito festerê com Igor e família que pra cá vieram desfrutar alguns dias na sua chácara, vizinha à minha. Com eles chega também o casal Maria Emilia e Lucas mais os filhos Antonio e Francisco. Aqui é assim, tudo muda quando menos a gente espera: da calmaria à agitação, num piscar de olhos. Antes de retornar a Palmas, vamos a Mateiros pela última vez onde tenho a oportunidade de conhecer a família de Poeta, comandada pela amorosa tia Maria. Matriarca da família, além das 2 filhas, criou um tanto de sobrinhas e sobrinhos, incluído aí Poeta. Em sua espaçosa residência, vive uma penca de parentes entre adultos e crianças. Hospitaleira, oferece talhadas de melancia pra quem chegue na casa. Após a breve permanência em Palmas, justo um fim de semana, em que me hospedo na casa de Maria Emilia, desfrutando boas conversas regadas a cachaça, muito pedal e pôres do sol inesquecíveis às margens do Tocantins, volto a toque de caixa pra casa, antes passando em Cuiabá pra pegar minha amiga Osnilde que  também retorna ao sul. Pra finalizar tal relato, confesso que durante os 30 dias vividos no Jalapão me senti tal qual sucuri em brejo....feliz demais!!!