domingo, 31 de outubro de 2010

Vielas da Thamel

Após uma noite de sono bem dormida, vou encontrar Caroline e Nima no Pumpernickel, lanchonete e point da turistada descolada em Kathmandu. O lugar tem uma área ao ar livre já que a temperatura média gira em torno de 23º C. O céu nublado assim permanece o dia todo. Durante a refeição, Nima e Nora elaboram juntos uma lista de mantimentos e utensílios que levarão no trekking enquanto eu e Caroline conversamos. O lugar, lotado, deve sua fama aos bons quitutes servidos, ao asseio, não levado muito a sério neste país e à presteza dos funcionários. Terminada a refeição, vamos às compras. Das padarias, um cheiro gostoso de pães assando nos fornos. Músicos tocam instrumentos de corda com timbres desconhecidos ao meu ouvido. Além das milhares de lojas, vendedores ambulantes num assédio constante, crianças vendendo cartões postais e mendigos doentes rastejam na calçada, esmolando com as mãos estendidas em concha. E começa a tediosa e cansativa procura de roupas e equipos tanto pra comprar quanto pra alugar. Nima entra e sai de lojas, apalpando tecidos, conferindo preços enquanto conversa com Caroline. É um entra e sai de lojas, frenético. Em algumas, só provamos, nada adquirindo. Tudo depende do preço e da qualidade. Numa das tantas lojas visitadas, enquanto espero Nima terminar sua compra, entabulo conversa com um nepalês que se encontra acompanhado duma mulher e três crianças que não disfarçam sua curiosidade em relação a mim. Fico sabendo que o homem, jovem, passou os meses de junho e julho no Alaska, contratado pelo governo americano para fazer parte do grupo de resgate no MacKinley. Esteve também na América do Sul, escalando, dentre várias montanhas, o Aconcágua, tanto sua face sul quanto a noroeste. Reservado, responde com um dar de ombros quando pergunto que tal achou as escaladas no Aconcágua. Terminamos as compras numa pequena, escura e acanhada loja especializada no aluguel de equipamentos para trek e escalada. Alugo saco de dormir, arnês, mosquetão, freio oito, piqueta, botas de plástico e crampons. Não acho que valha a pena comprá-los porque pesam e ocupam muito espaço na mala. E algumas agências, como acontece na Bolívia, fornecem grátis tais acessórios. Ganho da FarOut Nepal uma sacola impermeável de plástico da North Face que já tinha namorado dum basco quando estive no Peru ano passado. Loucos de fome, já que passam das 15 horas, entramos num restaurante. Peço um sanduíche com um bizarro acompanhamento: frutas cortadas em pedaços!! Descubro então que Nima e Caroline curtem um love affair. Eu estava achando meio íntima a relação deles durante as compras mas como sou distraída não pensei muito no assunto. Agora, no restaurante, a relação fica transparente, escancarada. Não há como não notar que ambos estão, evidentemente, apaixonados. Terminada a refeição, tratam de se despedir de mim. Nem tentam disfarçam a urgência de sair dali pra saciar a tesão que paira entre eles. Um pouco confusa, sem saber ao certo o trajeto até o hotel, Nima me aconselha a pegar um riquixá caso me perca. E entra no táxi, rapidinho, partindo com Caroline pro hotel onde ela está hospedada. Resolvo encarar e enfrentar as labirínticas ruas apinhadas de gente e veículos. Não me perco, pra minha surpresa. O hotel encontra-se a apenas 4 quadras do restaurante. Durante o trajeto, vejo um músico dedilhando num sarangi (instrumento de cordas) uma bela melodia. Paro e filmo. Dou uma gorjeta assim que ele cessa de tocar. O homem reclama que isso não paga sequer um café. Dou-lhe mais 5 rupias. Ele acalma-se um pouco. Entretanto, não desiste, sacando da sacola um cd de música regional. Respondo que no money, no money, motivo por que não posso comprar o cd. Ele nem se abala. Conduz-me até um caixa eletrônico....dá pra acreditar? Hahahaha...essa foi boa!! Retiro, então, 10.000 rupias (o equivalente a 140 dólares), entregando-lhe 1.000 rps. A quantia provoca outra onda de indignação porque, segundo ele, o cd vale 1.500 rps. Aí finco pé e barganho, argumentando, já meio irritada, que ele dissera inicialmente que o cd custava 1.000 rps. Percebe, então, que não sou tão trouxa e aceita a nota que lhe entrego. Pra coroar nossa transação, entoa mais uma vez a mesma canção acompanhado por seu instrumento. Outro músico que, aliás, nos seguira quando eu fora ao caixa automático, faz um acompanhamento batucando uma espécie de atabaque. Não dou cinco passos e o homem vem atrás de mim, querendo vender seu instrumento. Chato, insistente demais, só desiste após levar um incisivo fora. Se tu fica no nhem nhem eles não largam do teu pé mesmo. É necessário o uso de muita energia pra espantá-los. Eles são altamente caras de pau. Insistem, insistem e insistem ad nauseam. Atraída por um par de brincos de prata com engaste de pedra da lua, entro numa joalheria e compro o adereço que penduro na hora, um em cada orelha. Muito tri meus brincos, ficaram ótimos em mim. Embora baratas as coisas, há que regatear. E depois que pego o jeito, não compro nem pipoca em carrocinha sem dar uma barganhadinha. Adquiro, ainda, dois mapas, um do Nepal e outro do trek ao Mera Peak, obtendo mais descontos. Volto toda prosa pro hotel, me achando. Três da madruga, e eu ainda acordada, de olho bem aberto, sem conseguir pregar olho e dormir. Também pudera, na primeira noite, tresnoitada do jeito que eu estava, dormi bem porque estava exausta. Hoje, contudo, a diferença de fuso tá pegando, já que no Brasil são apenas 7 da noite. Daqui a pouco vai amanhecer enquanto no Brasil a noite ainda é um bebê engatinhando. Pra piorar meu desconforto, um mosquito zumbe ao redor da cama enquanto um galo emite o seu cocoricó, anunciando um tanto quanto prematuramente um novo alvorecer. E na tevê, os musicais seguem exibindo os mesmos cantores e cantoras da noite passada.

sábado, 30 de outubro de 2010

Kathmandu

Depois dum vôo meio angustiado, pensando no caos que minha vida será caso as autoridades de imigração nepalesas barrem minha entrada no país, em razão de restar apenas 4 meses de validade em meu passaporte, em vez dos 6 exigidos pelas leis do país, chego a Kathmandu, após 22 horas de viagem, com uma breve escala de 4 horas em Doha, capital do Qatar. Na fila, esperando minha vez pra ser atendida pelos funcionários do departamento de imigração, no Tribhuvan International Airport, suo frio só de pensar no vexame de ser deportada pro Brasil após muito chororô e apelação. Mastigo mentalmente a expressão have pity on me, aprendida enquanto assistia a um filme indiano durante o longo vôo de 14 horas entre Sampa e Doha. E pela enésima vez repasso a frase que vou dizer ao funcionário caso ele barre minha entrada: “Please, have pity on my situation, mister, don’t send me back to Brasil, please!!” Minha dúvida é se choro ou se junto as mãos em súplica enquanto falo essa frase ou se faço as duas coisas ao mesmo tempo. Não à-toa meu nome é BeATRIZ. “Mas é claro que tu vai chorar, mulher, nem precisa fingir, tu vai te debulhar se eles não te deixarem entrar e te mandar embora daqui mesmo do aeroporto pro Brasil, ah, se vai!!”, exclamam sem dó nem piedade os meus botões. Bah, já pensou? Eu, no Brasil, explicando que do Nepal só conheci o aeroporto? Que mico vou pagar!! Ai que horror!! Não gosto nem de pensar!! Tento não perder a pose e elaboro em minha cabeça um plano B (será uma viagem ao Peru pra conhecer o canyon Colca, antecedida por uma permanência de 4 dias em Campinas com minha prima, lambendo minhas feridas). Mas, graças a JC, aos deuses indus (são mais de 32 milhões) e ao Buda, não dá nada. Passo na boa, com meu passaporte sendo carimbado – uufaaa - por um amável funcionário com cara de chinês. E faceira entro na sala onde estão sendo descarregadas as bagagens me sentindo o ó do borogodó. Em Kathmandu, o fuso horário são 8 horas a mais, então isso quer dizer que, enquanto vocês, meus compatriotas, ainda estão no passado, euzinha estou no futuro, tão ligados? Vocês no bom do sono ou iniciando a balada do final de semana, e eu a caminho do meu hotel, numa bela e azulada manhã de sábado, tendo como cenário o Anapurna com suas cumbres cobertas generosamente de neve. Espera-me, segurando um cartaz onde se lê Ms. Azevedo, um simpático Sonam, sócio de Sunir, dono da FarOut Nepal, agência que contratei, via internete, pra organizar meu trekking de 14 dias até o Mera Peak. Ele me leva até o Kathmandu Resort Hotel, onde ficarei hospedada durante minha permanência de 4 dias na cidade. Localizado num beco do famoso bairro Thamel, o hotel tem terraços com mesas e cadeiras, jardineiras floridas, e até coelhos. Um mar de bandeirolas coloridas de orações budistas estão penduradas duma ponta a outra do amplo terraço. Sonam explica que houve ou haverá (não entendi direito o inglês dele) recentemente um festival budista motivo por que a cidade se encontra tão engalanada. Conversamos enquanto espero que arrumem meu quarto. Encantada com tudo, inclusive com o ar sujo e encardido das ruas que entrevira durante o trajeto aeroporto-hotel, assim que tomo posse de meu aposento, largo lá minhas bagagens e me mando pra rua. Thamel, um bairro estritamente comercial, é um labirinto de estreitas e sinuosas ruas. Uma loja ao lado da outra, onde são vendidos belos artesanatos, jóias, roupas, comidas, enfim, tudo o que se possa imaginar. É um grande bazar onde fervilham ambulantes que te atacam na rua pra vender bugigangas, como colares, pulseiras e instrumentos musicais típicos. Os comerciantes quando vêem algum turista olhando a vitrine já saem do interior de suas lojas, numa insistência carinhosa pra vender suas mercadorias. Um cheiro de incenso paira no ar. Nas apertadas ruelas, uma quantidade incrível de riquixás, motos, bikes e carros buzinam sem cessar, alertando os transeuntes de sua passagem, já que calçadas praticamente inexistem. Sinto-me no mundo da lua, um pouco pelo fuso horário, outro por só ter dormido 2 horas desde sexta-feira, e outro tanto pela psicodelia da cidade. Como algo e vou pro hotel tirar um cochilo antes de sair pra jantar. Acordo às 18 horas com Sunir e Sonam batendo na porta de meu quarto. E lá vamos nós os três, caminhando em meio àquela balbúrdia de fim de tarde, até os jardins do Narayanhity Royal Palace onde há um restaurante. Sou apresentada a Caroline, a inglesa que fará o trekking comigo. Alta, magra, loira e de olhos azuis, vestida elegantemente com um slack branco e blusa idem, cheira a perfume francês. Como toda falante, é simpática. Conheço, ainda, Nima, o trekking guide, e Nara Dorji, o cozinheiro. Durante o jantar, regado a Moet Chandon e vinho francês, fico sabendo que além dos já conhecidíssimos sherpas, há outros cinco grupos étnicos, a saber: Tamang, Magar, Grurung, Rai e Limbu. Tanto o guia como o cozinheiro são tamang. De volta ao hotel, já deitada, assisto a musicais cafonérrimos em que os personagens são retratados de forma pueril, tudo regado com tímidas pitadas de sensualidade. Os clipes não se resumem só à cantoria, há dançarolas animadíssimas com os cantores e as cantoras sacudindo muito a parte superior do tronco. Lembram-me os musicais da Hollywood dos anos 40, altamente bregas, entretanto. Num dos clipes, adorna a cabeça do cantor, cuja cara de cafajeste é de filme de terceira categoria, uma peruca semelhante à que o falecido Didi dos Trapalhões usava quando vivo. Adormeço, assim, em meio a juras de amor cantadas em indiano. Outra vez na Ásia! Namastê!!

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O regresso

Acordo tarde, no sábado, por volta das 8. Kaloca, deitado ao lado, comenta que gemi durante a noite. Também pudera, fazia horas que não caminhava tanto. O corpo reclamou com razão do esforço despendido, uai. O tempo apresenta-se com melhor aspecto. Oxalá não entre numa de imitar a carranca de ontem. Quando vou ao banheiro, situado na casa dos caseiros, vejo Bia deitada na cama. Aproximo-me do quarto e pergunto “Vendo tevê, é Bia?” “Não pega, não”, responde ela. Então viro pro aparelho e o que vejo? Aquela habitual criatividade dos filmes pornôs, exibindo a indefectível cena do homem transando com uma mulher por trás. Meu deus, filme pornô no café da manhã! Encabulo, acreditam? Bia que, aparentemente, não estava nem aí pro tal filme, nem se abala; Diga, contudo, escapole porta afora, com um sorrisinho meio culpado meio safado no canto da boca; já o tal amigo de infância de Bia que se encontra deitado na cama do casal, com a cara voltada pra parede, se vira e alonga pernas e braços preguiçosamente. Que cena, que cena!! Bueno, após várias confabulações, se Itapiroca ou Caratuva, decidimos pelo segundo, considerando que é o segundo maior da região sul, com 1.860 m. Se o tempo permitir, iremos, então, ao Itapiroca. Após um café da manhã reforçado, outra vez nós aí perneando Getúlio arriba. Dessa feita, tá duro subi-lo. Meus músculos, ressentidos da ascensão ao Pico Paraná, movem-se com vagar, pesados que estão do desgaste físico. A trilha lembra muito a de ontem, com o mesmo tipo de mata atlântica ombrófila densa montana, onde se vêem dezenas de orquídeas sophronitis agarradas nos galhos das árvores revestidos por espessas camadas de musgo. Sua fisionomia sombria e úmida seria cenário perfeito pra filmar uma Bruxa de Blair tupiniquim ou um dos aterrorizantes filmes de Zé do Caixão. Íngreme, o aclive, em alguns trechos, apresenta trepa-pedras mais ásperos cuja escalaminhada é facilitada pelas agarras formadas pelas raízes que emergem abundantes terra a fora. Quase no topo do pico, a vegetação vira campo de altitude, com o terreno coberto de caratuvas, plantas pertencentes à subfamília dos bambus, cuja pequena estatura não ultrapassa 1 m de altura. Uma de-si-lu-são o cume do Caratuva. Nem apetece tirar fotografias. Pra que posar em frente a torres repetidoras de sinais de radioamadores e de telefonia? Ou diante da “atraente” casinhota de cimento? Putz, meu, montanhista algum merece os ecos dum cenário tão “civilizado” assim. Vade retro, urbe, vade retro!! O tempo que, até então estava nublado, fecha totalmente e nada se vê novamente da paisagem ao redor. Nos unimos a um grupo de 5 gurias e um guri, todos curitibanos, e lanchamos no interior duma nuvem, formada por uma insidiosa poeira, não a cósmica, mas a aquosa, num clima bastante..........úmido! Trocamos lanches. A galera, muito agradável, contraria a fama de que o curitibano é fechado e pouco acessível. Aliás, não encontrei unzinho curitibano antipático, nem mesmo na capital, quando fui me informar sobre o bairro Santa Felicidade onde moram meus amigos. Pode até ser que a galera montanhista seja diferente da galera urbana, mas o fato é que todos foram super prestativos e pra lá de atenciosos conosco. Ficamos ali justo o tempo de lancharmos. Já recuperada de minha fadiga, desço serelepe a trilha, ultrapassando Kaloca que, cavalheirescamente, ajuda uma das gurias a descer um trepa pedras. Quando ultrapasso o encruzo, saindo da mata, percebo que o tempo começa a abrir. Pra minha alegria, vejo descobertos os picos Itaipabuçu, Caratuva e Itapiroca. Piro com o primeiro, lindíssimo, com três cumes e um lindo canyon que rasga uma de suas encostas. São as únicas fotos que consegui das montanhas da região, fazer o quê, né? Conversando com um casal que acampara no Itapiroca, soubemos que eles também não conseguiram ver nada da paisagem hoje pela manhã. É, realmente, São Pedro aprontou uma peça pros turistas no feriadão!! Eita santinho bem ruinzinho este!! A caminhada, leve, não ultrapassa 5 horas de pernada. De volta ao acampamento, conheço o dono da fazenda, o Dílson, gente fina, profundo conhecedor da região. Entro na casa e Bia, pra variar, deitada na cama vê tevê. Pergunto da porta do quarto se o filme ainda é aquele da manhã. Ela faz um gesto pra eu sentar na cama. Está passando Alice no País das Maravilhas. “Já vi 7 vezes”, comenta a guria. Bonitinha, está no terceiro casamento embora só tenha 18 anos. Voz mansa, conta sua vida em rápidas pinceladas. Casa aos 12 porque o padrasto é chato. Embarriga aos 14 mas o bebê, quando ela faz exame pré-natal aos 6 meses de gestação, está morto há 5 dias. Permanece casada quando, aos 16, se separa e vai viver com outro rapaz. Como bebe muito, ela larga dele. O cara, deprimido, toma um tragoléu e morre atropelado na BR. Daí ela conhece Diga com quem vive atualmente. No primeiro dia que chegamos, ela nos convidou pra dormir numa cama de solteiro que fica aos pés da cama de casal. Diante da minha recusa, ela comenta “ah, vocês se debatem muito é?” O cabeça do casal é ela; Diga, um cara manso, só obedece, sem discutir, hehe. E o resto da tarde aquela garoinha azucrinando...tsk tsk. À noite, o céu abre-se e as estrelas dão pinta brilhando sobre nós. “Que raiva, Kaloca, justo no dia que vamos embora, vai começar a fazer bom tempo”. E quando acordamos na segunda-feira, a mesma garoinha pegajosa dá bom dia pra nós. Deixamos a fazenda bem cedinho, e, já às 7 e 30, estamos deixando o restaurante do Tio Doca onde paramos pra tomar café e provar os doces e salgados de fabricação própria que levam a galera das montanhas a cometer o pecado da gula após o término de suas aventuras. É point obrigatório pra todo montanhista que se preza fazer um pit stop no posto de gasolina pra comer os quitutes. Por sugestão de Emerson, descemos a serra da Graciosa, enevoada, coberta de brumas. Uma pena, mesmo assim deu pra sentir a beleza do lugar com sua estradinha calçada de paralelepípedos, muretas de pedras e bicas d’água ao longo de seus 33 km. E numa das tantas curvas da mimosa estradinha, sabem o que salta diante do carro? Um ratinho apressado! Célere, cruza a estrada vindo, adivinhem donde? Das bandas da Fazenda Pico Paraná! E levanta uma patinha em nossa direção como se estivesse abanando! Ah, só pode ser ele, o nosso ratinho larápio! Pois não é que o querido gatuno, gratíssimo pela merenda que lhe proporcionamos durante o findi, veio se despedir de nós?! Fofucho demais ele! No que saímos da serra, o tempo já está bem desanuviado e quando deixamos Morretes pra trás, num distrito chamado Floresta, o céu exibe-se todo azul, revelando, no horizonte, uma sucessão de picos cujo destaque é a bela formação piramidal, chamada Pico do Inglês. E outras interessantes montanhas vão se sucedendo ao longo da rodovia paranaense. Graças a Daniel, seguimos até Guaratuva, evitando assim ter de subir a serra novamente pra pegar a 101. Embora a viagem tenha durado 11 horas, foi super legal conhecer o litoral paranaense e fazer a bela travessia de Caiobá-Guaratuva num ferrry boat. Quando entramos em Santa Catarina, deslizam através da janela morros e picos bastante atraentes. Só entramos na 101 em Garuva, perto de Joinville. Paramos pra almoçar em Governador Celso Ramos onde Kaloca pretende fazer um salto de paraquedas, desistindo, entretanto, porque demoraria muito até chegar sua vez. Em Garopaba, uma espiada na Mormai pra comprar neoprene. E, às 17 e 50, chegamos em Praia Grande, saudados pelos canyones Malacara e Churriado de cujas gargantas vibram alegres boas vindas!!

sábado, 9 de outubro de 2010

O ratinho larápio do Pico Paraná

Kamon, simbora fazer o pico Paraná, a maior montanha da região sul com 1.877 m, encravada na serra do Ibitiraquire!! Munidos com informações fornecidas por Pedro Hauck e Parofes, eu e Kaloca pegamos o rumo da BR 101, deixando Praia Grande pra trás numa sexta, 4 e 30 da madruga, pra curtir o feriadão de N. Sª Aparecida no estado vizinho. Parecemos dois moleques gazeando a aula, tal o grau de contentamento em largar na frente de todo mundo. Sorrisão no rosto é pouco pra descrever nossa alegria. Paramos em Cabeçudas, numa pracinha à beira da BR, pra tomar café trazido por Kaloca numa térmica. Ah, tudo de bom essa vida on the road, mesmo que dure justo um feriadão. Em 7 horas, vencemos os 700 km que nos separam de Curitiba, percorrendo uma 101 tranquila, sem muito tráfego pesado, já que a maioria das pessoas só começa a viajar a tardinha ou sábado pela manhã. Paramos na capital paranaense e almoçamos com Emerson e Elenice, dois amigões curitibanos que conheci em Praia Grande há dois anos. Aproveitamos e vamos conhecer a Decathlon, ciceroneados por Elenice. Compro, é claro, uns itenzinhos básicos: lanterna de testa, meias e luvas de neoprene pra proteger da água gelada das cachus, equipos necessários na prática do canionismo. Feitas as compritchas, pegamos, agora, a BR 116, aqui chamada Regis Bittencourt. À medida que nos aproximamos da Fazenda do Pico Paraná, a serra do Ibitiraquire (significa Serra Verde em tupi guarani), avulta, ao norte, exibindo um serrilhado impressionante de picos. Tem como resistir: exclamações entusiásticas ressoam dentro do Peugeot. O dia, com poucas nuvens, prenuncia bom tempo amanhã. Oxalá se confirme! À direita da ponte que cruza o rio Tucum, entra-se na tal estradinha que leva à fazenda. Os 6 km de chão batido, relativamente bem conservados, exibe ao longo de seu percurso algumas casas e um que outro armazém. Em lá chegando, conhecemos a Bia (minha xará) e o Diga, seu marido, caseiros do lugar. A área de camping é bem legal e escolhemos um lugar próximo a umas pedras onde Kaloca trata de armar nossa barraca. Enquanto ele está preparando a janta, observo um movimento no chão junto ao saco plástico cheio de nozes, amêndoas e castanhas do pará e de caju. Pois não é que um ratinho do mato rói diligentemente o invólucro pra pegar as frutas? Kaloca espanta o gatuno que escapole rapidinho por entre o pedrario. Mas como é rapaz de bom coração, põe uma castanha do pará perto da toca. E o guloso ratinho não se faz de rogado, abocanha-a e se manda rapidinho pro seu covil. Coisa mais querida esse ratinho larápio!! Lá pela meia noite sou acordada por um berreiro. Penso com meus botões “deve ser gente no tragoléu, só pode”! No sábado, bem cedinho, nova gritaria me desperta. Daí não há outro jeito senão levantar, embora sejam apenas 7 da manhã. Não demora muito, conheço o cabeça da tchurma dos "animadinhos". Chama-se Daniel. Fortíssimo, seu peso ultrapassa os 100 kg. Devido ao físico avantajado, trabalhou de segurança em boate durante 4 anos. Detesta a noite exatamente por isso. “Vocês devem estar putos pelo alarido, né?" Esboçamos tímidos sorrisos amarelos. Nem a farofagem da galera curitibana tampouco o tempo emburrado consegue afetar meu humor. Estou zen. Daniel sentindo o clima leve, sem esperar convite, senta-se, escorando-se num tronco de árvore em frente a nossa barraca e fica ali de papo furado até a hora em que levantamos acampamento rumo ao pico Paraná. Com uma garrafa de Martini no meio das pernas e um cigarro pendendo dos dedos grossos e largos, conta que, quando ele e sua galera chegaram ontem na madruga, foram até o mirante do Getúlio pra curtir a noite. Acelerado devido à bebida não chega porém a ser agressivo ou inconveniente. Nos despedimos do falante Daniel e metemos o pé na trilha. Nem tão ruim assim a subida até o topo do morro do Getúlio. E olha que tô carregando mochila com 4 kg! Claro que o grosso da matalotagem quem carrega é Kaloca. Nem que eu quisesse poderia carregar mais que 5 kg. Seria penitência inútil, não avançaria mais que 1 km, e me esborracharia no chão, vergada ao peso do tralharedo. Bueno, tergiversações à parte, eu tava bem receosa porque, segundo informações de Parofes, o trecho seria chatinho. Qual o quê! Tiro de letra até o encruzo onde uma placa anuncia Caratuva pra esquerda e Pico Paraná à direita. Ali tiramos fotos com três integrantes da Arpa. Sigla bem louca esta, né? Pois não tem nada a ver com instrumento musical. Trata-se da Associação de Radio Amadores do Paraná. Um deles, um coroa barbudo, falante pra caramba, chamado Van Halen, suscita um comentário da sem noção que vos escreve “ah, tu tem o nome do cara do Jethro Tull, né?” Bueno, só nessa social, já perdemos um tempinho. E eles não foram os únicos com quem batemos papuchos durante a pernada! Ultrapassado o Getúlio, já bem nas entranhas da mata, a trilha começa a se tornar deveras cansativa. Com troncos de árvores caídos e altas raízes a cada 5 m, a pernada não rende. Eu diria que setenta por cento do trajeto é feito dentro duma mata ombrófila densa, entremeada por dois curtos trechos de campo aberto onde as caratuvas (um tipo de bambu parecido com os que têm no Itatiaia), dentre outros pequenos arbustos, abundam. Embora nublado, o céu exibiu, durante a subida até o Getúlio, breves clareiras de sol. Agora, entretanto, o ensimesmamento é total. A chuva verte ora em forma de delicadas gotículas ora em forma de gordos pingos. Rapidinho, nossas calças empapam-se d’água. Quando atingimos o acampamento 1, um campo aberto, a visibilidade é zero. Nadica de nada daquela linda paisagem anunciada nas fotos vistas antes da viagem. Tanto que nem sinto tesão de fotografar. A um, por causa das brumas que encobrem tudo ao redor, e a dois, porque deixara a Olympus à prova d’água no carro (que cabecinha essa hein?!), levando no bolso da jaqueta impermeável a Nikkon já querendo pifar devido à umidade. E toca a subir e a descer íngremes ladeiras. Sorte nossa que não está frio e tampouco venta. Em certos trechos, cuja aclividade é um tanto quanto áspera, foram colocadas barras de ferro de modo a auxiliar na subida e, consequentemente, na descida. Essa iniciativa originou uma baita celeuma. Forte, a discussão esgrime enérgicos argumentos. Defendem os mais pragmáticos a necessidade de tais aparatos; já a segunda, mais purista, combate o uso de tais “muletas”. Chegamos ao acampamento 2 onde foram erguidas quatro paredes feitas de pedra bruta a que chamam casa de pedra. É....alguém, um dia, tentou construir um refúgio, mas sabe-se lá por que só ficou no esboço. Será coisa da corrente purista que só quer montanhistas bivaqueando ou abrigados em tendas? Bueno, resolvemos deixar ali as mochilas de modo a subir até o cume sem peso algum. Nossa intenção é pernoitar, no acampamento 2, e voltar, novamente, ao topo pra ver, ao menos, o famoso amanhecer, já que sem chance, hoje, de assistir ao pôr do sol. A chuva sem pausas cai firme e forte. “Tempo de merda, fudeu com os belos panoramas”, choramingo eu pros meus botões. No caminho, encontramos três curitibanos que, em conversa com Kaloca, dão a letra de que o tempo permanecerá ruim todo o findi, conforme indicaram os matutinos boletins meteorológicos acessados por eles em Curitiba antes de vir pra cá. Alcançamos o cume, um largo platô rochoso quase despido de vegetação. Sem livro algum, a caixa de metal contém diversos bilhetinhos. Nem tive saco de lê-los. Kaloca não se faz de rogado e deposita seu..........cartãozinho de guia! Hahaha!! Figuraça este guia! Faz jus ao ditado “a propaganda é a alma do negócio!” Tanto é verdade que, durante os dois dias de estadia na fazenda, distribuiu cartõezinhos a torto e a direito. Damos uma banda pelo cume e vemos um grampo P, daqueles antigos, bem comprido, encravado perto da borda do precipício. Como não se enxerga nada além de dois palmos de distância, ficamos na dúvida se a via é de rapel ou de escalada. Quando retornamos à casa de pedra, decidimos que não vamos mais acampar na montanha. E empreendemos a descida. Calculamos que alcançaremos a fazenda o mais tardar às 9 da noite. Damos um ligeirão pra evitar pegar, no escuro, o trecho de mata cheio de raízes. Tô pra ver uma descida com tanta subida na minha vida. É um tal de subir, subir e só subir. E nada de descer, que merda! Começo a ter faniquitos de raiva. Irritada pelo cansaço, brigo com as lombas: “merda, puta que os pariu, quando vai começar a descida, porra!!” Nunca vi uma montanha que mais sobe do que desce quando se sai do cume. Difícil este pico Paraná. A mais cansativa de todas as montanhas feitas por mim até agora, por deus! O bate e volta dura 12 horas: 7 de subida e 5 de descida. Nós até poderíamos ter feito em 6 horas o ascenso mas parávamos pra olhar a paisagem, fotografar, filmar e conversar com pessoas que encontrávamos na trilha. Embora cansados, vamos dormir lá pela meia-noite. Kaloca ainda tem pique - que energia! - e faz uma fogueira onde cozinha nossa janta. E antes de dormir, eu e Daniel (assim que nos viu, veio nos visitar) bebemos chá de maçã com canela, saboreando biscoitos recheados com chocolate enquanto uma poeirinha aquosa permanece no ar. Eita chuvinha marrenta essa! Sei lá se alguém na madruga, gritando endoidecido de trago, aportou no acampamento, porque dormi dum tiro só!