sábado, 26 de novembro de 2005

Chapada dos Guimarães

Passados trinta anos, reencontro uma colega dos tempos de ginásio que mora agora em Cuiabá. Vai daí que, em novembro, aproveite a oportunidade pra revê-la e conhecer de quebra a Chapada dos Guimarães, distante da capital apenas 65 km. Após passar dois dias com Osnilde (ela ganhou este nome graças à combinação criativa de seus pais ao juntarem Osvaldo, do pai, mais Venilde, da mãe) botando o papo em dia (se é possível falar em tão curto período de tempo do que nos aconteceu num intervalo de trinta anos!), me toco de ônibus pra Chapada, distante 1 hora e 30 minutos de ônibus. A cidade é pequena com 15 mil habitantes, bem simpática, pousadas pra todos os bolsos e gostos, um número razoável de restaurantes, lojas de artesanatos, alguns bem interessantes, como uns uns colares de sementes feitos pelos índios da região, além de uma padaria na frente da praça cujo grande atrativos são os quitutes, muiiiito saborooosos!! Quando eu chegava de meus passeios à tardinha, me sentava lá e comia algo pra restaurar minhas forças após um dia caminhando. Hospedei-me num hotel, perto da rodoviária, simples mas limpo, com diária de 40 reais incluído café da manhã. A temperatura, bem como eu gosto: 30º C durante o dia, à noite refresca em razão de a cidade situar-se a 600 metros acima do nível do mar. Daí por que essa cidade foi eleita o lugar preferido de veraneio dos mato-grossenses de posses, sem falar na tribo de esotéricos que também a escolheram por ser considerada o ponto geodésico da América, emanadora, assim, no entender deles, de altas energias cósmicas. Como sói acontecer em todo lugar elevado, surge, muitas vezes, uma densa cerração, como a que me envolveu a noite passada, enquanto eu jantava no Bar Maloca, um restaurante maneiro situado na esquina da Fernando Correa: mesas ao ar livre, um telão em que são projetados show musicais, afora sempre ter alguém simpático pra bater papo. A especialidade são os espetinhos de carne, galinha, peixe ou camarão, acompanhados de arroz, molho de vinagrete, farofa de banana ou de alho e mandioca cozida, custando cada um, com a guarnição, uma média de 7 reais. A 15 minutos de carro da cidade, localiza-se o Parque Nacional da Chapada dos Guimarães (há uma linha regular de ônibus, partindo da rodoviária de hora em hora, no período das 08:00 às 17:00). Há inúmeras trilhas cortando o parque, não se necessitando de guia pra percorrê-las (eu só contratara o guia Gilberto, porque, pra visitar a Cidade de Pedra e a Caverna Aroe Jari, inexiste transporte público). Como não é um parque muito grande, possível percorrê-lo em um dia, claro que naquela correria. O ideal, contudo, é permanecer uns cinco dias na cidade pra visitá-lo calmamente. Dos seis dias em que permaneci em Guimarães, curti cinco indo ao parque. Saía de manhã e voltava à tardinha no último busão que passa na rodovia, distante 500 metros da portaria do parque. Tomei belos banhos nas cachoeiras que se sucedem uma após a outra, iniciando pela Sete de Setembro ou Sonrisal, depois vem a do Pulo, a dos Degraus, seguida pela Prainha, Piscinas Naturais, e por fim a Andorinha e a Independência, formando o circuito conhecido como Caminho das Águas, uma seqüência de quedas d’águas formadas pelo rio Sete de Setembro. Uma das belas coisas em lá estando é visitar a caverna apelidada de Casa de Pedra: um trabalho de erosão fluvial feito pelo onipresente rio Sete de Setembro cujo curso d'água atravessa o parque de ponta a ponta. Espalhadas ao longo do trajeto até a Casa, há inúmeras formações rochosas interessantes, algumas lembrando gigantescos cogumelos. Não só o parque como a região ao redor é formada de rochas areníticas apresentando a paisagem uma vegetação típica denominada cerrado (há três tipos de cerrado no Brasil: o cerrado, o cerrado anão e uma transição entre o cerrado e a floresta amazônica, situado mais ao norte de Mato Grosso) que consiste em árvores e arbustos pequenos e retorcidos recobertos com uma casca bem grossa, cuja finalidade é servir de isolante térmico para as altas temperaturas existentes na região. Estas formas retorcidas dos galhos e troncos são produtos de um solo ácido, que assim se mantém, pobre em nutrientes, devido à autocombustão do cerrado. Resulta este curioso fenômeno da produção, por certas plantas - como o candombá - de uma substância oleoginosa que se inflama em contato com o calor. Com isso, evita a mãe natureza que as folhas depositadas no solo, apodreçam e sirvam de nutrientes, perpetuando-se, portanto, mirrada e introvertida a vegetação do cerrado. Sábia a natureza, hein? Impressionante foi conhecer a caverna Aroe Jari - na língua dos bororos, significa morada das almas penadas -, localizada em terras particulares, distante 40 km da cidade. Quando se chega a sede da fazenda, são fornecidas perneiras e o uso obrigatório deste acessório surge da necessidade de proteção contra a grande quantidade de cobras existentes no lugar (só no final do passeio, enquanto estávamos eu mais Gilberto bebendo cerveja num barzinho de beira da estrada, foi que avistei de longe uma enorme jibóia pendurada em uma árvore: pra meus olhos desavisados eu a teria confundido com um cipó ou qualquer outro tipo de vegetação similar, hehe). Com um enorme salão inicial medindo 300 metros de largura, a imensa furna tem uma extensão de mais de 1 km. É permitido aos turistas adentrá-la somente nos seus 100 metros iniciais porque dali em diante a água que goteja continuamente das paredes e do teto chega a atingir mais de 2 metros de profundidade. Como a formação é predominantemente arenítica inexiste formação de estalagtites. A visão que se tem do exterior, quando se está saindo das entranhas da caverna onde reina absoluta a escuridão, é impactante pois os olhos são invadidos por uma explosão feérica de tonalidades diversas de verde pertencentes à abundante vegetação que nasce no entorno de sua entrada. Lá eu pude escutar à exaustão o trinar das maritacas - espécie de periquito cujas penas são absolutamente verdes - que enchem o saco com sua gritaria estridente, meio histérica. Não é de graça que as mulheres que azucrinam muito com seu falatório, são assim chamadas no Mato Grosso. Pertinho da Aroe Jari, Gilberto me levou pra conhecer a Lagoa Azul, uma gruta em que a água adquire coloração azulada devidos a certos minerais depositados no fundo de seu piso. Um pouco mais adiante, conheci a linda cachoeirinha da Martinha por onde fluem as águas do rio Casca, com suas intermináveis corredeiras, cujo desaguadouro termina no rio Cuiabá. Outra formação rochosa espetacular é a Cidade de Pedra, situada também a 40 km da cidade da Chapada mas em direção oposta à da Caverna Aroe Jari. Fomos num final de tarde pra poder admirar o pôr do sol que costuma ser lindo ali de cima. De longe, avistei Cuiabá já pontuada por miríades de luzinhas preparando-se para receber a noite que não tardou muito em cair. Sentada na borda do penhasco, meus olhos não cansavam de admirar o contraste exuberante do arenito avermelhado com o verde da vegetação....um deslumbre! O barulhinho bom das águas do rio fluindo lá embaixo aliado ao trinado de várias espécies de pássaros compunham uma música pra lá de benvinda aos meus ouvidos estressados dos ruídos dissonantes da cidade grande. Conversando com Gilberto fico sabendo que os índios fazem suas canoas da casca do jatobá-mirim, uma árvore com mais ou menos 10 metros de altura. Eles cortam a casca em semi-círculo obtendo assim a forma naturalmente arredondada apresentada pelas canoas indígenas. Gilberto colhe de uma árvore a mangaba, uma frutinha pequena com delicadas sementes, de gosto muito agradável. Pequi, outra fruta típica da região, não me foi possível provar porque ainda não está madura; entretanto, dei uma bebericada no licor de pequi, doce pra caramba, chega a dar um travo na garganta, arghhh!!! O forte da culinária matogrossense são os peixes, todos de rio, é claro, sendo os mais usados o pacu assado, a ventrecha (vem a ser a costela frita do pacu) e a mojica de pintado, menos gorduroso que os anteriores. E como não podia deixar de ser, a gauchada que pra lá migrou deitou raízes na culinária matogrossense, rebatizando e adaptando o carreteiro para "arroz maria izabel", em cujo preparo não se usa charque e sim carne fresca. Nos doces, cito o furrundum, uma mistura de rapadura derretida com doce de mamão e os delicados francisquitos, uns biscoitos feitos de trigo, que se come sem sentir de tão bons que são. Xiiii, tem tanta coisa gostosa nessa boa terra: a farofa de banana e o pixé - farofinha de milho torrado mais açúcar e canela -, vendido em canudinhos de papel. Outra coisa adorável desse lindo estado foi o rasqueado, um ritmo musical que se dança bem ligeirinho. Música muito, muito legal!! E foi assim que visitei a minha primeira chapada brasileira e resgatei uma bela amizade que se encontrava perdida lá no centro-oeste deste Brasil tão maravilhoso!!

sexta-feira, 8 de abril de 2005

Hostal Real San Felipe

Hoje, dia em que estaria partindo rumo a San Pedro de Atacama, via Tacna e Arica, encontro-me ainda deitada nesse quarto de hotel no centro histórico de Arequipa, em repouso quase total, a não ser imprescindíveis idas ao banheiro. No sábado passado, quando fui fazer o rafting, no Urubamba, senti umas pontadas no quadril, nada assim tão alarmante, apenas um tanto quanto desconfortáveis. Durante a longa viagem até Arequipa, a dorzinha persistiu. Imaginei que seriam gases causados pela alimentação. E, agora, eis-me aqui, nesse estranho quarto. Embora haja três paredes normais de tijolos, a quarta, que se volta para o corredor, foi construída com vidro....e transparente! Vedando-a, há cortinas que, se cerradas, protegem nossa intimidade. Em resumo, estou hospedada num quarto-aquário (não é à toa que meu ascendente é Peixes....hehehe). Na cama, desde segunda- feira, excetuando a terça, quando visitei o belíssimo monastério Santa Catalina de Siena, mantenho permanentemente a tevê ligada (pelo menos estou a aprender bastante vocabulário em espanhol). Trato de estabelecer uma certa rotina, ótima, pra afugentar o tédio. Seja por causas das dores, seja pela minha imaginação - esta boa companheira -, acreditem-me! as horas nem custam, assim, tanto a passar. Desde 4ª feira, Marlene, mulher de Dom Carlos, tem feito a comida pra mim. Como diz Ronald – de dieta. Sempre pollito com arroz mais salada de alface e tomate. De sobremesa, gelatina, a não ser ontem que foi maiz morada, típica sobremesa peruana que lembra nosso sagu. Hoje resolvo pedir delivery vindo arroz chaufa com frutos do mar (é uma espécie de risoto, variando tão-somente o tipo de carne, que pode tanto ser de gado, de porco ou galinha) mais salada de brócolis, cenoura, vagem e ervilha torta, cozidos ao dente. Tudo muito bom. Aproveitando que estou a falar em comida, abro aqui um parentêsis pra falar da culinária peruana. Provei tudo que foi possível em termos de comida típica, desde a palta rellena (abacate recheado com cenouras, salsa, ervilha e vagem), à palta jardineira (abacate recheado com legumes mais galinha desfiada). Outra comidinha legal é o ají de gallina (galinha desfiada com molho de pimentão, leite, pão e alho). Dos bichos do mar, adorei o ceviche, feito de peixe, camarão ou frutos do mar marinados durante 30 minutos em suco de limão. Come-se com uma batata doce de coloração alaranjada (há mais ou menos 1.400 espécies de batata no Peru). Rocoto relleno é um pimentão recheado com carne, cebola e ovo. Há também o chupe de camarones, uma sopa ancestral, oriunda, vejam vocês, dos tempos dos incas. Considerada um prato típico da cozinha arequipenha é feita com camarão, peixe, ají, alho, pão ralado, leite evaporado, milho, batata, tomate, aipo, acelga, arroz, ovo e cebola. Das bebidas menciono a chicha, um refresco obtido a partir da fervura do milho, acrescido de suco de limão, maçã, casca de abacaxi e canela, enquanto a chicha morada é o mesmo refresco usando-se no entanto uma espécie de milho de cor roxa. São popularíssimas por aqui, servidas em jarras, e substituem os refrigerantes durante as refeições. Das frutas, provei a tuna, oriunda da família dos cactáceos, vendida nas ruas (duas por 50 centavos de sol), cor amarela ou verde, formato oval, cheia de sementes pequenas e escuras, sabor suave, insípido. Dos doces, cito a leche assada, outra sobremesa típica arequipenha: trata-se de um flan. Feito com leite é levado a cozer no forno em pequenas tigelas. Apresenta um leve sabor cítrico. Não posso esquecer de mencionar os sorvetes, outra especialidade arequipenha. Como estava curiosa de prová-los, Ronald, que sempre sai ao meio dia e retorna às 16 horas, foi encarregado de trazer a meu pedido 3 pedaços de torta helada: uma pra mim, e as outras duas pra ele e Rufo. Fecho, então, os parentêsis e volto ao mundo real: as dores, controladas pela medicação, tornam-se, portanto, mais suportáveis. O pessoal do hotel tem sido tão, tão legal, que talvez por isso nem me revolte com minha mala suerte. Em especial, Ronald, gerente do estabelecimento, sempre tranqüilo; como muitos peruanos, expõe, quando sorri, um fino friso de ouro emoldurando os dois incisivos superiores. Alto e levemente encorpado, usa óculos que lhe dão um ar sério embora tenha apenas 23 anos. Formado em Turismo e Hotelaria, em suas horas livres, dedica-se a servir de voluntário no Corpo de Bombeiros pois este serviço público não é remunerado, vivendo de doações e verbas governamentais (por isso ele conseguiu a ambulância desta instituição pra me remover pra lá e pra cá......pensando bem, nem tanta má sorte eu tive, não é mesmo?). Os donos do hotel, Dom Carlos e Marlene, preocupadíssimos com meu bem estar, têm sido incansáveis e gentis durante minha permanência de 10 dias no hotel, e olha que eu tive momentos bastante impertinentes, exigindo bolsa de água quente diversas vezes ao dia pra colocar na perna dolorida (seguindo orientação médica). Os demais funcionários são Rufo, misto de camareiro e faxineiro, sempre de bom humor, prestativo, atende aos meus chamados quase instantaneamente, e o Alex, recepcionista do turno da noite, conversa comigo nas madrugadas, me chamando carinhosamente de mamacita. Só fico sozinha quando quero! Escrevendo agora sobre esse episódio de minha vida, sinto uma saudade pungente de todo esse calor humano, dessa bondade e generosidade, daí por que nem me lastimei, tampouco me revolteicom o fato de as minhas férias terem sido interrompidas assim tão abruptamente. Fazer o quê, né?!

quarta-feira, 6 de abril de 2005

La turista desdichada

Eu transferira minha excursão ao Colca para quarta-feira. Entretanto, quando volto da visita ao convento Santa Catalina percebo que as dores retornaram. Tão incomodada me sinto que nem consigo sair pra jantar. Peço a Dom Carlos então que me faça um sanduíche. O bom homem faz dois, enormes. Mal dou conta dum pois a dor não dá quase trégua. Durmo mal nessa noite e de manhã, cedinho, vou me arrastando pra recepção do hotel; aguilhões incessantes de dor percorrem a perna esquerda além dum formigamento que torna a coxa dormente. Entro em pânico. Gemo sem pudor algum. Dom Carlos, apavorado, corre atarantado de um lado para outro. Enfim, chega o táxi e lá me vou mais Dom Carlos para a Clínica San Juan de Dios. Ao sair do táxi, carregada nos braços do motorista, urro de dor. Realmente, meus gritos são - como se diz nos romances - lancinantes. Posta numa maca, logo acodem vários enfermeiros, provocando sem querer um pequeno rebuliço no hospital. Sem demora, Dr. Zeballos surge atraído pela gritaria. Aplica-me uma infiltração com analgésico e antiinflamatório que alivia um pouco a dor. Ronald, gerente do hotel, chega logo após, comunicando que está à minha disposição uma ambulância do corpo de bombeiros pra me remover ao hotel já que eu não consigo sentar. Caso tente, aí mesmo as dores me fazem ver estrelinhas. E lá me vou eu de ambulância rodeada por quatro muchachos bombeiros, muy guapos, oh, oh, oh (a má sina, graças ao deus sol, não é assim tão completa), mais Ronald segurando minha mochila como um precioso tesouro (ele sabe que ali estam os meus documentos e dinheiro). É um dia de dores hor-ro-ro-sas, hor-ri-pi-lan-tes, te-ne-bro-sas, apunhalando a coxa sem um minutinho de trégua sequer (quando de volta ao Brasil, o diagnóstico do meu ortopedista foi certeiro: síndrome do piriforme, que vem a ser uma inflamação do nervo ciático). Não quero saber de comida; à noite, Ronald convence-me a ingerir algo argumentando que os remédios e injeções que estou a tomar são muito fortes, e, caso eu não me alimente, meu estômago sofrerá as conseqüências. Mal e mal engulo um purê de batata mais uns naquinhos de galinha. Ronald, sem desanimar, insiste paciente, más una cucharada, Beatriz (o querido Ronald até me dá comida na boca!). Cada ida ao banheiro é um suplício, sentar é extremamente torturante (os advérbios aqui têm de ser usados no aumentativo e mesmo assim não expressam toda a verdade). Quase nem durmo de 4ª para 5ª. Então, aciono o seguro de viagem, a Cia Aliança, sendo assim autorizada a realizar todos procedimentos médicos que se façam necessários ao meu pronto restabelecimento. Na quinta-feira, percebo que minhas férias foram pro beleléu. Lá vou eu novamente de ambulância - graças ao querido Ronald - fazer uma tomografia. Tão eficientes quanto simpáticos, os bombeiros trasladam-me com o maior cuidado da cama para a maca, de modo a evitar que eu sinta qualquer desconforto. Claro que é tarefa impossível, independe de qualquer habilidade, a dor existe, está lá, aguilhoando minha perna esquerda de forma tão cruel como nunca na vida eu sentira (poxa, nem o parto de meu filho foi assim tão doloroso). Terminado o exame, sou outra vez removida para a ambulância já com o resultado do exame pronto. Tomamos o rumo da Clínica Juan de Dios pois lá já me aguarda um neurocirurgião, acionado pra me examinar afim de descartar ou não qualquer doença que requeira seus cuidados. Insatisfeito com o resultado da tomo, exige seja feito um raio-x da região pélvica para se certificar de que eu não tenho nenhuma hérnia de disco. Sexta-feira, volto a mesma clínica onde havia feito a tomo e tiro um raio-x. Retorno à Clínica Juan de Dios. Dr. Gutierrez, o neurocirurgião, (mesmo na minha aflição, consigo observar que ele é um homem deveras atraente) examina as chapas e me diz que, de fato, hérnia de disco está descartada. Crê tratar-se de um traumatismo na região sacro-ilíaca. Dr. Zeballos examina-me novamente e concorda com o diagnóstico do colega, com certa relutância. Solicita, então, para maior acuidade no diagnóstico, a realização de uma ressonância magnética, feita neste mesmo dia. Outra infiltração (as duas infiltrações foram aplicadas na espinha - região lombar - demandando certos cuidados porque se mal aplicadas, meu deus, pode até paralisar o sujeito, no caso, euzinha). Ainda na clínica, pergunto ao bom doutor se posso tomar banho (desde 2ª feira não me lavava). Concorda e brincando comigo (é um senhor de seus 60 anos) acrescenta que se eu precisar de ajuda para tal, ele está a minha disposição, pode? Respondo: "sem problema, doutor, desde que o auxiliem esses queridíssimos muchachos bombeiros" (eles ficam durante o tempo em que dura o exame ao lado da cama onde eu estou deitada). Demos risadas e o ambiente se descontrai. Volto ao hotel, passo a tarde vendo tevê (programas de culinária, meus favoritos), e à noite Dr. Zeballos me visita, comunicando que a seguradora telefonou-lhe duas vezes discutindo meu retorno ao Brasil. Como eu estava em Arequipa seria necessário ir a Lima pra de lá então pegar o avião que me traria ao Brasil. Numa maca, dentro do avião, impossível, anuncia Dr. Zeballos, a não ser, pondera o amável doutor, que eu fosse até Lima de ambulância (não consigo, ainda, me sentar de jeito algum), hipótese essa descartada, de plano, por mim (apavoro-me com tal perspectiva porque a distância entre as duas cidades é mais ou menos 1.000 km). Dr. Zeballos sugere que eu vá de 1ª classe pois as poltronas reclináveis num ângulo maior do que as da classe econômica permitirão que eu não sofra muito desconforto durante a viagem. Assim é feito (meu primeiro soutien não foi tão emocionante quanto voar naquela cabine cheia de confortos e privilégios). Em todo esta via crucis, Ronald sempre tem me acompanhado, deixando de lado seu trabalho no hotel (lógico que autorizado por Dom Carlos). O rapaz é tão incansável, amável e querido que ocupará sempre um lugar em meu coração. Minha tia Janina, quando hoje me telefonou (sábado), comentou que conhecer pessoas boas vale mais que apreciar belas paisagens. Concordo em parte com a minha boa tia, prefiro, entretanto, conhecer ambas, hehe.

segunda-feira, 4 de abril de 2005

Convento de Santa Catalina

Acordo bem cedo porque o guia vem me buscar às 8 da manhã pra irmos ao canyon Colca com pernoite em Chivay onde eu ficarei 2 dias. Enquanto espero, começo a sentir fortes dores na região lombar, na parte posterior do quadril esquerdo. Dom Carlo e eu pensamos que é pedra nos rins. Como a dor é realmente insuportável, cancelo a viagem a Chivay e vou consultar na Hogar Clínica San Juan de Dios. Em lá chegando, tratam como se fosse cálculo renal. Recebo de imediato Buscopan na veia e sei lá mais o quê. O exame de urina não acusa qualquer infecção. Vem o médico de plantão e conversa vai conversa vem, chega à conclusão que meu problema é na coluna. Entra em ação o ortopedista, Dr. Juan Alberto Zeballos que me conforta exclamando alegremente: gran deportista es esa señora! Diagnostica hérnia de disco. Volto ao hotel com recomendação de guardar repouso durante 2 dias. Caso melhore posso então ir na quarta-feira ao tão sonhado trekking no Colca. Na terça, acordo bem melhor mas não consigo ficar muito tempo sentada. Sigo então a sugestão de Dr. Zeballos e vou visitar o monastério Santa Catalina. Ah, esse convento de clausura é qualquer coisa de lindo! É uma cidadela que ocupa um enorme quarteirão, tendo sido fundado por freiras dominicanas no final do século XVI. Tem 3 claustros, 6 ruas, 80 casas que serviam de moradia às religiosas (em regra, quarto, sala para orações e uma cozinha, além de um pequeno jardinzinho, o que não deixa de ser uma suíte bem arranjadinha, não é mesmo?), uma praça, a igreja, o cemitério, um locutório (utilizaram na construção desta peça uma pedra que filtrava a luz do exterior de modo a impedir que se visse com nitidez o rosto das freiras) dotado de uma roda permitindo assim a troca de alimentos sem que houvesse contato físico entre os visitantes e as monjas. Todas as peças têm o teto abobadado. Afora o dote tinham as monjas de contribuir com alimentos para suas refeições diárias. Levavam ainda um enxoval que, entre outros itens, incluía objetos como travesseiros e 2 colchões (achei tão curiosa essa exigência!). As monjas se distinguiam entre as que usavam véu preto e aquelas que vestiam o branco. As que usavam véu preto eram provenientes da classe alta arequipenha e deveriam ser virgens. Mas a exigência da virgindade como um dos requisitos para o uso de véu negro se abrandava diante de viúvas e separadas que possuíssem grandes dotes a serem doados à instituição religiosa (ah, o poder do vil metal! Por supuesto derruba barreiras). Durante o noviciado, as noviças não podiam manter contato com amigos e familiares. Tinham direito a uma serva somente as monjas de véu preto. Já as beatas eram mulheres que, em tudo imitavam as freiras, sem contudo jamais lhes ser permitido o privilégio de professar os votos religiosos. Na verdade, os conventos eram lugares onde as mulheres desfrutavam de relativo conforto caso tivessem dinheiro para sustentar tais regalias. Se de origem humilde, suas habitações eram coletivas, sendo-lhes imposta a execução de serviços grosseiros. Às de véu preto eram reservadas tarefas nobres como a confecção de bordados delicados em vestes sacerdotais e àquelas destinadas às imagens sacras. As roupas confeccionadas por elas são lindamente enfeitadas com rendas e bordadas com pedras preciosas. Passeando pelas ruas daquela cidade-convento imagino como seria a rotina de suas moradoras: acordar cedíssimo, ainda noite escura, rezas, realizar as tarefas diárias, rezas, costurar, rezas, cozinhar, rezas, bordar, mais rezas, até que chegasse a hora de dormir (com certeza ainda dia claro, já que saiam da cama lá pelas 3 da madrugada) com nova bateria de rezas. Rola um boato - sem qualquer comprovação, viram? - de que elas sofriam de problemas nos joelhos, as coitadas. Imagino que se deva ao fato ficarem tanto tempo ajoelhadas entoando suas preces, pobrezinhas! As cores com que são pintadas as casas e ruelas passam do azul genciana ao amarelo, tornam-se brancas, e num arroubo mais circunspecto transformam-se em ocre, tudo muito, muito colorido apesar da austeridade do lugar. Canteiros e vasos de gerânios floridos enfeitam as vielas e os peitoris das janelas. Sinto ganas de aqui viver, o lugar incita mesmo à reflexão e desconvida à pressa ansiosa, um mal do nosso século. Eu aposto que se algumas das boas freiras sofreram de gastrite não foi causada pela ansiedade, e, sim, talvez, por comerem demais.

domingo, 3 de abril de 2005

Ciudad Blanca

Meu objetivo em ir a Arequipa é o de conhecer o canyon Colca, o segundo maior do planeta. Fazer um trekking lá e depois seguir até Atacama pra conhecer o famoso deserto chileno. Então saio de Cusco às 7 da manhã. Umas duas horas depois de iniciada a viagem, entram duas índias vendendo um pão redondo, bem quentinho e achatado, apontando o desuso do fermento na massa. Praticamente todos os passageiros compram pão. Sou só eu de turista no ônibus, o resto dos passageiros são peruanos. Senta do meu lado uma velha mulher vestida com trajes típicos. Não demora muito inicia uma conversa contando, orgulhosa, que vai visitar seu filho, muito bem estabelecido numa outra cidade, não muito distante de Cusco. Escuto a simpática senhora desfiando loas sobre seu rebento e com pena me despeço dela, vendo-a descer do veículo com certa dificuldade já que é muito gorda. E o ônibus para em várias cidades pegando e largando gente, mas era vapvupt, nem dava pra descer e esticar um pouco as pernas. Quando chega a hora do almoço, entram mais duas mulheres vendendo comida: pedaços de carne de porco assada e batata doce cozida envoltas em sacos plásticos (há dois tamanhos, um maior custando 3 soles e outro menor de 2 soles) mais um pequenito contendo um molho picante. Grande parte dos passageiros compra a comida e assim vão comendo, vagarosamente, usando as mãos, bem tranqüilos. Limpam as munhecas ora em guardanapos de papel ora nas próprias roupas, como posso bem observar. Não ouso comer tal alimento. Dessa vez banco a típica turista enojada, louca de medo que mais tarde possa me causar transtorno gastrointestinal. Vou beliscar algo só quando surge a oportunidade de descer numa das cidades por onde passamos, daí compro um pacote de biscoitos salgados. Durante a longa viagem (quase dez horas dura o trajeto Cusco-Arequipa) observo a transformação na paisagem: de Cusco a Juliaca, os grandes cerros cobertos de mata verdejante; a partir daí, as montanhas perdem altura, suas encostas suavizam-se e a vegetação rareia até ceder lugar a um terreno árido pontuado aqui e ali por cactos. Surge, então, Arequipa - um oásis encravado num vale de montanhas andinas desérticas - eleva-se a 2.300 metros acima do nível do mar. Em seu entorno, avistam-se três vulcões, o mais conhecido é El Misti. Os outros dois apresentam seus cumes nevados. A cidade é coberta por uma névoa que esmaece os contornos dos cerros que a cercam; muitos de seus edifícios são construídos com uma pedra de origem vulcânica, o sillar, cuja coloração branca produz um efeito luminoso quando neles incidem os raios solares. É uma cidade plana e como todas as cidades peruanas tem uma Plaza de Armas rodeada por prédios com arcadas (ironicamente esta marca espanhola na arquitetura reflete, por sua vez, os anos de dominação árabe na península ibérica) onde em restaurantes ao ar livre se desfruta o bulício da plaza e o verdor das palmeiras que a enfeitam. Num de seus lados, ergue-se, imponente, a catedral ocupando um quarteirão. No lado oposto, ergue-se, na esquina, a igreja da Companhia de Jesus com sua fachada em sillar ricamente esculpida. Como hoje é domingo, o movimento nessas duas igrejas é intenso e a plaza ferve de gente passeando por suas alamedas e sentadas em seus bancos. Observo que os habitantes de Arequipa são mais tranqüilos que os cusquenhos. Praticamente inexistem mulheres e crianças te abordando nas ruas, como em Cusco e Lima, com aquela arenga suave e constante tentando vender alguma quinquilharia. Os táxis entopem as ruas estreitas da parte histórica da cidade. Parece haver um veículo pra cada três habitantes. Espanto-me com a quantidade, será que os taxistas ganham um bom dinheiro com tal concorrência? Assim também os restaurantes, quatro ou cinco em cada quadra, com os garçons te aliciando pra degustar o arroz chaufa ou um ceviche. E as confeitarias, ah, as confeitarias! chamam a atenção com suas vitrines exibindo faceiros antojitos de arequipa (cones de papel pardo contendo bolachinhas recheadas com doce de leite), orgulhosos bolos coloridos, enormes, altos, enfeitados com casquinhas de sorvete recheadas com mousse, merengue ou nata, e....ah, sim, os trêmulos leches assados. Comi pelos olhos, e como!! Arequipa tem uma temperatura agradável nessa época do ano. Um solzinho gostoso produz um calor ameno durante o dia, permitindo o uso de bermuda e manga curta. Lá pelas quatro, cinco da tarde, o céu fica nublado e a temperatura diminui. Hora de trocar a roupa por outra mais quentinha. Volto ao hotel, coloco uma calça comprida, pego minha jaqueta e vou atrás de um restaurante pra provar os famosos ceviche e pisco sour, aliás, de-li-ci-o-sos!! Não é só japonês que sabe fazer peixe cru, não! No Peru (até que rimou, mas não era essa a intenção, viu?), fazem às mil maravilhas. Pra quebrar o sabor forte do peixe cozido no limão e temperado com sal e pimenta, surpreendam-se: deliciosas batatas doces cujo colorido fortemente alaranjado contrasta com a branca tessitura do peixe. Rebatendo tudo isso o gostosésimo pisco sour...dos deuses, gente, muchomucho bom (só bebo uma taça, quando viajo sou bem comportada). Durmo feliz e reconfortada nessa noite, sabendo que o dia seguinte irá ser melhor ainda já que eu irei lá pras bandas do Colca, onde os condores planam graciosamente sobre a grande garganta deste famoso canyon. Mal sabia eu que só o conheceria de fotos assim como muitos de vocês que me leêm....porém essa é estória pra ser contada outro dia!

sábado, 2 de abril de 2005

Rafting no rio Urubamba

Antes de partir pra Machu Picchu, já deixara agendado um rafting no Urubamba pra quando retornasse a Cusco. De manhã, o pessoal da agência me busca no hotel e lá me toco com mais um bando de jovens estrada afora. Chegando ao local, num certo ponto do rio, nos é servido um almoço leve. Comemos e descansamos um pouco. Começam os preparativos para a descida rio abaixo. Capacetes e coletes salva-vidas são colocados. Não é meu primeiro rafting. Eu já houvera feito um no Rio Paranhana, situado perto de Três Coroas, município do Rio Grande do Sul. Sabia mais ou menos o que tinha de ser feito. Mesmo assim presto atenção às orientações do instrutor. Embora a agência, nos prospectos, garantisse que os guias são bilíngues (espanhol e inglês), o cretino do guia fala o tempo todo em inglês, já que do grupo todo, composto de europeus e americanos, só tem eu de latinoamericana. Mas bah, não deixo por menos. Estrilo. O nojento do guia nem aí pra mim. Ignorando meu protesto, mantém a prosa em inglês (foi o único peruano realmente antipático e rude de toda a viagem). E dê-lhe a se fresquear o tempo todo prumas inglesas Eu me sinto deveras aborrecida e desrespeitada com aquela atitude e, não sei se por isso ou porque já sentia uma dorzinha apontando na região lombar, não curto muito o rafting. Ademais, a paisagem ao redor do Urubamba não é lá essas coisas e suas águas amarronzadas nada tem de atraentes. Ouso dizer que o rafting do rio Paranhana é bem mais excitante, já que o cenário avistado em suas duas margens – uma mata atlântica pra lá de linda – dá de dez a zero na do rio peruano. Ambos os rios são de nível II, portanto não oferecem grandes riscos, porém o brasileiro é bem mais estreito e raso, de águas límpidas e esverdeadas. Afloram à sua superfície, amiúde, rochas ora pontiagudas, ora arredondadas, seja a beira de suas margens seja atravessadas no meio de seu leito. Ora, isso provoca maior carga de emoção porque você fica com medo de se chocar contra elas. E dê-lhe se desviar dos rochedos durante a navegação. Sem falar do medinho que se sente ao imaginar que o barco possa virar numa manobra inapta. Terminado o passeio, voltamos pro ônibus. Durante a viagem de volta pra Cusco sou solenemente ignorada pelo guia que convida a todos - exceto eu - para ver a filmagem do passeio na sede da agência. Como se eu me importasse muito com isso....pufff! Quero mais é distância daqueles boçais que me trataram como uma turista de terceira categoria. Quando chegamos em Cusco contrato um chollo táxi e dou uma banda pela cidade pra me desforrar da frustração do malfadado rafting no Urubamba.

sexta-feira, 1 de abril de 2005

Banhos nas Termas

Há em Águas Calientes, como o próprio nome indica, várias fontes termais onde se pode tomar relaxantes banhos após a trilha. Na sexta-feira, acordo e me dirijo a uma delas. Lá fico por uma hora deixando meu corpo cansado imerso nas águas tépidas. Como tenho de pegar o trem de volta a Cusco, saio das termas e vou passear um pouco pela cidade, situada ao sopé da colina onde foi construída Machu Picchu. É uma cidade nova, nada tem de antiga, lembra-me vagamente o Rio de Janeiro, já que cercada por abruptos morros pontudos deixando entrever, em meio à espessa vegetação que os cobrem, a coloração escura de suas rochas. A cidade situa-se, na verdade, no canyon do rio Urubamba (vem a ser este rio nada mais nada menos que um dos tributários do nosso Amazonas), dando por isso a impressão de ser quase sufocada por essa sucessão circular de morros em cujo meio ela se encontra. Rasgada em duas pelo rio, cujas espumentas águas amarronzadas escorrem céleres e barulhentas por entre os grandes blocos de rocha de seu leito, unem as margens, onde se localizam os dois setores da cidade, duas ou três pontes. Caminho pelas ruas estreitas parando aqui e ali pra tirar fotos, percorro ladeiras de algumas ruas transversais à avenida que margeia o Urubamba, avistando num ângulo de 360º as imponentes formações rochosas, algumas exibindo um denso círculo de nuvens que encobrem seus topos. Estou a 2.300 metros acima do nível do mar. Escolho um barzinho simpático com telhado de palha e cadeiras de vime dispostas ao ar livre pra bebericar uma cervejinha enquanto curto umas galinhas e um galo que por ali ciscam em plácido sossego. Às duas da tarde meu trem parte para Cusco e lá vou em direção à estação de trens. Não demora muito, o trem vermelho e amarelo apita anunciando sua chegada. A gare regurgita de turistas, numa babel de línguas e pessoas entusiasmadas com as recentes aventuras vividas. Embarco em meu vagão e, por sorte, sento-me num banco à direita de onde posso durante boa parte do percurso enxergar o Urubamba cujo ímpeto nervoso só arrefece depois de transcorridos dezenas de kilômetros. A ferrovia atravessa vários túneis escavados nas rochas. Ao longo dela, mais ruínas incas, algumas situadas perto de seus trilhos, construídas nas encostas dos cerros, à esquerda da via férrea. Não muito longe de Cusco, o Urubamba cede lugar a um de seus afluentes, cujas águas chamam atenção devido à sua tonalidade avermelhada oriunda dos resíduos de argila que sua correnteza arrasta dos cerros por onde atravessa. Para me entreter durante a viagem de 4 horas, recordo da emoção que havia sentido na sexta-feira santa em Cusco, quando à noite tive a oportunidade de admirar a procissão de Nosso Senhor de Los Temblores. O cortejo solene, formado por uma multidão de fiéis, orava com fervor em voz alta. No centro desfilava, seguro por vários homens vestidos de preto, circunspectos, um magnífico andor onde, estendida, jazia uma imagem do Cristo, protetor da região contra os tremores de terra que tanto a abalam. Chego a Cusco à noite, o brilho das luzes das casas e dos postes de iluminação das ruas indicam que mais uma vez retorno à urbe.

quinta-feira, 31 de março de 2005

A cidade oculta

No quarto dia da caminhada, último, portanto, somos acordados às 4 da madrugada, noite fechada; após o desjejum, seguimos viagem. Uma lástima essa parte inicial da trilha ser feita neste breu, não dá pra curtir nada da paisagem. Se hoje eu fosse novamente fazê-la, sairia com luz do dia para poder admirar a belíssima paisagem que se tem ao descer esta etapa final da trilha. Eu comprara uma lanterna de testa pra facilitar a caminhada. Infelizmente, lá pelas tantas, as pilhas acabam e eu faço a trilha no escuro. Não sozinha, graças a deus, pois Moisés ordena a um dos carregadores que me acompanhe no trecho escuro. Começa a chover, não aguaceiro como o do dia anterior, porém uma chuva miudinha que torna o caminho mais perigoso pois escorregadio. Não me deixo abater, sento e continuo a descer de bunda aqueles infindáveis degraus talhados na rocha. Quando os primeiros raios de sol apontam percebo que do lado direito há um profundo precipício, sinto aquele frio na barriga, estaco louca de medo (o carregador já se mandara assim que o dia clareara), o austríaco, que está um pouco mais à frente, percebe minha aflição e estende-me a mão. Ultrapassada a tal curva estreita com uns degrauzinhos bem inclinados, isso sem falar do tal buracão que me espia guloso lá do fundo do precipício, agradeço mais uma vez ao deus sol. Alcanço, por fim, meu grupo (sou sempre a última a chegar) que já se encontra em Intipunku, a porta do sol, um espaço retangular de onde se avista uma panorâmica de Machu Picchu, situada mais abaixo, num platô de montanha. Esse sítio foi, ao que parece, uma espécie de alfândega cuja finalidade seria a de controlar o ingresso de quem chegava ou saia da cidade sagrada. O dia, inicialmente chuvoso, se transformara: o céu desenfarruscou e o sol nos contempla em todo o seu espendor. E lá vou eu cansada e feliz, cansada porque este está sendo, pra mim, o dia mais difícil. Também, pudera, caminho há 4 dias enfrentando sobes e desces constantes, numa sucessão vertiginosa de degraus! Felizmente, daí em diante, os degraus cessam e a estradinha calçada de pedras facilita em muito o passeio. Enfim, avisto a linda Machu Picchu, tendo ao fundo o cerro Wayna Picchu (a vista lá de cima é sen-sa-cio-nal). Esta cidade, construída sob o comando do grande líder inca Pachacutec, em 1438, foi preservada do espírito saqueador dos espanhóis porque seus habitantes, quando sentiram a aproximação dos invasores, muraram suas portas, conseguindo, dessa forma, protegê-la por séculos a fio, façanha esta em muito facilitada devido à densa vegetação existente. Em 1911, Hiram Bingham descobriu-a, acidentalmente, revelando esse tesouro para os olhos de todos que queiram se aventurar até lá. Machu Picchu é dividida em dois setores, o agrícola, com seus terraços destinados ao plantio, e o urbano onde se localizavam os templos, palácios e ruas. Construída sobre a superfície estreita e desnivelada de uma colina rodeada pelos precipícios do imponente canyon do rio Urubamba que serpenteia 400 metros abaixo, essa magnífica cidade impressiona pela perfeição técnica e arquitetônica, mantendo-se praticamente intacta até os dias de hoje, ressalvada, é claro, a ação deletéria do tempo. Como estou muito cansada, passeio brevemente por algumas de suas ruelas e decido ir pra Águas Calientes descansar un ratito, comer algo e retornar à tarde, com calma, pra poder melhor admirá-la. Faço o trajeto caminhando apesar da existência de transporte regular entre as duas localidades. Não me arrependo, o percurso é muito bonito (dá mais ou menos uma hora), encontro flores belíssimas, além das lindas orquídeas e bromélias que ladeiam os degraus da estradinha, porque, sim, mais degraus me acenam pra dar um alô final às minhas já, confesso, exaustas pernocas. Mesmo cansadíssima, ainda, flano um pouco por Águas Calientes, almoço um lanche rápido e procuro meu hotel. Em lá chegando, peço pro recepcionista me acordar às 14 horas já que tinha intenção de voltar a Machu Picchu. Qual o quê! Afundo na cama e só acordo no dia seguinte às 8 da manhã. O rapaz da recepção me explica, no dia seguinte, que batera à porta do quarto no horário combinado mas que eu nem tchuns pra ele. Putz...que merda, e no dia seguinte, eu tenho de voltar pra Cusco....fazer o quê?

quarta-feira, 30 de março de 2005

Deitada sobre nuvens

Atualmente, são autorizados a percorrer os 48 km do trajeto apenas 500 turistas por dia (à semelhança de nossa Fernando de Noronha). Oriundos de vários pontos do planeta, a maioria, são, claro, jovens. Daí ser perfeitamente visível em alguns trechos do trajeto, aqueles onde as trilhas são ascendentes e livres de vegetação em ambos os lados, uma fila de pessoas subindo por ela. Bueno, quando chegamos ao nosso acampamento, no segundo dia, por voltas das cinco da tarde, servem um lanchinho com pipoca mais um tipo de massinha doce frita polvilhada com açúcar e canela, de bebida um chá bem quentinho. Eu havia conhecido um grupo de jovens paulistas, enquanto trilhava a famosa subida dos 1.200 metros, que me haviam convidado para visitá-los em seu acampamento (ao longo da trilha inca há diversos lugares demarcados onde são permitidas áreas de camping, ocupando cada excursão um lugar já previamente definido). Convido Debi pra ir comigo e lá vamos nós procurar o local onde os muchachos estão. Suas barracas distam das nossas uns 500 metros. Como está escuro e nós não conhecemos o caminho, demoramos uns 15 minutos para encontrá-los. É nos oferecido uísque, bebemos um pouco, jogamos conversa fora e retornamos porque quase hora do rango. O tal de lanchinho já foi há muito digerido, considerando-se o enorme dispêndio de energia gasto naquele dia. Após o jantar, nosso grupo fica de bate papo, não tardando contudo que busquemos cada um nossas barracas já que os corpos pedem encarecidamente um bom descanso. Ah, o terceiro dia, este dia. Este pra mim é o mais belo de todos. Parte-se do acampamento, subindo por uma estradinha de chão batido, para então se entrar noutra, calçada de pedras. De novo, começa-se a subir. Eis que de repente, surge, no meio do caminho, nada mais nada menos que um túnel escavado na rocha, com aproximadamente 18 metros de comprimento, largo o suficiente para permitir a passagem de animais e pessoas (e pensar que tudo isso foi feito por homens que habitaram nosso planeta há centenas e centenas de anos atrás e construíram todas essas maravilhas sem a ajuda de quaisquer equipamentos, apenas usando a força de seus músculos). E a longa calçada de pedras serpenteia pela encosta da montanha, num sobe e desce constante. A vegetação torna-se luxuriante. Vejo campos de violetas cobrindo uma pequena planície ao longo da estrada. Mais adiante maciços de margaridas pintam de amarelo o verde da grama. E as orquídeas, ah, as orquídeas! Variedades delas, muitas variedades, numa diversificada cartela de cores. Bromélias enxeridas penduram-se nos galhos das árvores, e o sol radioso lança seus raios mornos nesta esplêndida tarde de outono. O que mais eu posso deseja hein? O silêncio é música nos meus ouvidos, motivo por que acelero o passo e deixo Debi pra trás: não posso permitir que nenhum conversê quebre este momento mágico e único que estou vivenciando. Chegamos então a outro grupo de ruínas, Phuyupatamarca, situado num local privilegiado de onde é possível avistar-se uma grande extensão de terras. Em razão da altitude, 3.700 metros, esse conjunto de construções paira sobre nuvens que se formam nos vales ao redor. A-que-la pa-i-sa-gem: sob meus pés aquele nuvaredo branco, espesso, tal qual um fofo tapete feito de algodão. Que vontade de deitar e lá ficar, admirando o céu azul, azul, sussurro pros meus botões. Dou um basta em minha veia fantasista e retomo a descida que conduz a uma planície onde paramos para o almoço. Debi mais eu resolvemos seguir em frente, deixando pra trás nosso grupo. Logo, entramos numa zona de densa vegetação. A trilha retoma seu chão de terra (a bela estradinha pedregosa ficara há muito para trás), em ambos os lados da estrada, árvores centenárias, samambaias gigantescas enfeitam espinhentos pés de xaxim, muito verde, tudo verde, e o céu azul lá em cima pisca cúmplice pra mim (basta de fantasias, por hoje, mulher!). Atravessa-se outro túnel, menor que o anterior, porém igualmente encantador. O caminho é qualquer coisa de belo, mágico, e nem a chuvarada forte que desanda a cair tira meu bom humor e alegria. Até alcançarmos o local onde deveremos acampar, o aguaceiro é bastante severo (quase uma hora embaixo de chuva torrencial), busco, então, abrigo num posto de vigilância, onde aguardo o resto do grupo totalmente encharcada e batendo queixo. Os carregadores, sei lá por quê, se atrasam (a regra é eles chegarem antes dos turistas, de modo que já encontremos as barracas montadas), e temos de aguardar, molhados e famintos, até que tudo fique pronto. Comemos nossa substancial merenda e vamos conhecer Wiñaywayna (jovem para sempre, em quéchua), outro grupo de ruínas construído às bordas de um precipício suspenso sobre o rio Urubamba. Mais um dia que finda.

terça-feira, 29 de março de 2005

Sayacmarka

Acordo com um dos porteadores batendo palma diante da barraca e estendendo uma xícara de chá de coca (nos demais dois dias, o mesmo ritual irá se repetir), sinal de que é a hora do desjejum. Levanto feliz do meu saco de dormir e vou para o refeitório onde sobre a mesa estão dispostos pão, biscoitos, bolo, geléia, manteiga, queijo, leite, saquinhos de chás de vários sabores, sem falar na tigela de mingau bem quentinho que é passada de mão em mão por sobre uma lona que divide o refeitório da cozinha. Saímos, deixando pra trás os carregadores embalando todo o material da excursão (não é que algum tempo depois eles ultrapassam a gente levando no lombo mais de 20 kg de utensílios?!). O caminho torna-se mais íngreme, percebe-se com nitidez a trilha sulcando a encosta da montanha num risco ziguezagueante cor de areia. Dum lado o paredão rochoso protege, do outro, o precipício amedronta um pouco. Por incrível que pareça não me abate a altitude, nem tenho ataques de pânico, a trilha é larga o suficiente de modo que me sinto segura. Subo calmamente, olho vez por outra para o alto onde sei que atingirei uma altitude, pra mim inédita, de 4.200 metros, mas sempre ligada no cenário ao meu redor: delicadas flores duma belezura ímpar, em que o colorido de suas pétalas pulam do roxo ao amarelo, passam pelo vermelho, detém-se no carmesim, rápido momento rosa e ao final o branco imaculado cintila ante meus olhos castanhos. Esta parte do trek me assustava muito: relatos lidos na internet consideravam-na o ponto crucial. Entretanto, venço com facilidade os tão temidos 1.200 metros de subida (a pobre Debi passa mal nesse trecho. Moisés, inclusive, tem de socorrê-la, dando-lhe um remédio contra o soroche) e alcanço Abra de Warmiwañuska que, significa em quéchua, passagem da mulher morta. As mudanças no clima, logo, logo se fazem sentir. Nuvens cinzentas abocanham o brilho do sol. Escondido o astro-rei, a temperatura até então amena, declina, um ventinho começa a soprar e a paisagem adquire um tom espectral. Abaixo de nós um vale magnífico descortina um pequeno riacho. Para alcançá-lo não mais uma estradinha de chão batido a enfrentar, e sim uma impressionante escadaria de largos e altos degraus que não acaba nunca. Confesso, é mais duro descer que subir! Depois de descer 500 milhões de degraus, volta-se a subir, dessa feita, por uma trilha pavimentada de pedra quando surge no meio do caminho uma pequena construção ovalada. Supõe-se tenha esta ruína servido de hospedagem aos incas que iam visitar o templo sagrado de Machu Picchu. Uma névoa cobre boa parte da paisagem imprimindo-lhe um ar claramente fantasmagórico. Continua-se a trilha não subindo, porém escalando estes degraus de pedra (degraus altíssimos, gente, ou então minhas pernas é que são muiiito curtas), quando então se avista à esquerda uma lagoa, mais adiante, à direita, outra. Tão lindo, belo e inesquecível este lugar! A escadaria cede lugar a uma trilha de chão batido para novamente ceder lugar a uma estreita e inclinada estradinha de pedra, onde se avista outra lagoa, essa de cor esverdeada, pra finalmente se alcançar Sayaqmarka, cidadela inca situada aproximadamente a 20 km de Machu Picchu. Beleza pura essa ruína embora pequena. Situada sobre um promontório, chega-se a ela através de uma estreita escadinha de pedra que pende do lado direito para o precipício (aqui eu levo medo, quase desisto de visitá-la, entretanto meu pânico de altura é vencido pela curiosidade). Ando por suas ruas, entro em salas e faço questão de me perder em seus desvãos, curtindo as flores que colorem de amarelos seus muros de taipa. E lá de cima, novo vale se abre formado pelas encostas dessas magníficas montanhas peruanas.

segunda-feira, 28 de março de 2005

A caminho de Machu Picchu

E a segunda-feira traz o tão sonhado trek! Havia passado uma noite de cão com indisposição intestinal (só pode ter sido responsável por tal desconforto o leitãozinho comido na sexta-feira). Só depois que alivio as tripas de toda a porcaria, consigo dormir e acordo inteira, graças ao deus Sol! Saímos de Cusco lá pelas 9 horas chegando no km 88, perto de Ollantaytambo, de onde iniciaremos a caminhada. Descemos e almoçamos num espaço especialmente destinado aos caminhantes que farão a trilha de 4 dias. Nosso grupo de 5 pessoas compõe-se da Debi e Laurie, típicas americanas, joviais e bem dispostas, mais um casal de austríacos, cujos nomes não fiz questão de guardar, introvertidos embora educados. O guia, Moisés, um índio pequeno e magro, é correto, nada de excepcional. Bacanas mesmos são os quatro carregadores – porteadores – que levam todo o equipamento: mochilas, barracas, acessórios de cozinha, mesas, bancos, mantimentos e até um botijão de 30 kg! A simpatia e bom humor desses homens, sua força, vigor e agilidade demonstrados ao longo do trajeto me impressionam e comovem, inda mais sabendo quão pouco ganham. E sempre atenciosos e gentis quando servem nossas refeições. Já são quase duas horas quando iniciamos a caminhada. Eu sinto um frio, na barriga, de tão excitada. Atravessamos a ponte sobre o rio Urubamba e entramos numa trilha estreita cercada de densa vegetação. No primeiro dia ainda carrego minha mochila de 15 litros, no segundo pago a um dos rapazes, porque não estou a fim de castigar minha coluna. Apoiada no cajado (comprara um que lastimavelmente esqueci num táxi em Arequipa), suspiro de prazer, enquanto admiro a paisagem ao meu redor. Após a trilhazinha inicial dentro do mato, Moisés nos mostra uma pequena ruína inca - Patallaqta - situada à beira do rio de barulhentas e rápidas corredeiras. Abre-se então a trilha para o vale, situado abaixo, podendo se curtir a grandeza das montanhas que se perdem no horizonte. Ao longe, Moisés aponta o nevado La Verônica, um cerro esplêndido com o cume coberto pelas neves eternas. Ao longo deste primeiro dia, há diversas casas onde vivem nativos, encontrando-se vários moradores indo e vindo pela estrada, além de banquinhas vendendo água, refris e salgadinhos. Decepciono-me um pouco, não imaginara a trilha tão povoada assim. O terreno liso, de chão batido, não apresenta maiores dificuldades, já que o ascenso nesse dia não vai além de 400 metros de altitude. Venço com facilidade as cinco horas de caminhada até chegarmos a Waillabamba, onde há algumas casas de camponeses e uma escola. Nosso acampamento é montado ao lado de uma delas que funciona como armazém e chicheria (local onde se vende a chicha). As barracas já estavam armadas quando chegamos. Há uma grande, usada como refeitório, (além de dormitório dos carregadores) e mais quatro onde ficamos, eu, com uma barraca só pra mim, outra para as duas americanas, a terceira pro casal de austríacos e a quarta pro Moisés (o guia como é hierarquicamente superior aos carregadores e ao cozinheiro, desfruta duma barraca só pra ele). Descanso um pouco antes do jantar que se revela uma delícia: sopa, galinha, massa, salada, sobremesa e vários tipos de chá, a escolher. As refeições, afora serem muito gostosas, são fartas: quatro por dia, meus queridos, sim, sim!! (nosso cozinheiro, um dos carregadores, acumula dupla função, o que o torna na escala social de um acampamento superior aos outros três). Bato papo com as americanas, descobrindo que Debi fala um espanhol razoável. Fico sabendo que namora um peruano, daí seu interesse em conhecer o país; já Laurie, corredora, está treinando para uma maratona quando retornar aos USA. Ela se recusou a mascar coca durante os 4 dias porque temia, caso fosse exigido dela exame antidopping, que acusasse ainda a existência de traços da erva em seu organismo. Eu comprara um saco cheio dessas folhas que masquei durante a caminhada. Assim, ao encontrar, no segundo dia, o velho senhor índio, um amor de pessoa, impossível negar, quando pede com voz sussurrante: mamacita, dame un poquito, por favor! O pobrezinho está se sentindo fraco conforme revela. A noite cai e quem eu vejo no céu brilhando bem lampeira? A lua, cheia, cheiíssima, ilumina o acampamento. Que felicidade, meu deus! Durmo com a porta da barraca semiaberta pra poder curtir e reter aqueles lampejos de prata em minha retina.

domingo, 27 de março de 2005

Domingueira no Vale Sagrado

Domingão, esplêndido o dia, pra ninguém botar defeito, o azul do céu embranquecido aqui e ali por nuvens grandes, daquelas bem fofonas. Perfeito pra visitar as cidades de Písac, Ollantaytambo e Chinchero situadas no Vale Sagrado. A primeira parada é em Písaq, importante centro artesanal da região, onde, neste dia da semana, ocorre, na praça principal, uma enorme feira com centenas de bancas, uma ao lado da outra, em que se encontra exposta à venda o colorido artesanato regional. Como sói acontecer nesse tipo de excursão nos dão uma hora pra percorrê-la! Fico chateada com tão breve espaço de tempo, mas depois agradeço intimamente porque me ponho bem doida diante de tanta variedade de produtos: quero comprar de tudo um pouco. Uma das coisas adquiridas é o casaquinho de lã coloridíssimo pra meu afilhado. Enquanto mastigo uma espiga de milho com queijo (os grãos são enormes, nunca até então vira nada igual) comprada de uma simpática vendedora ambulante, vou de barraca em barraca perguntando o preço das mercadorias. Meio a contragosto, abandono a feira, embarco no ônibus e lá me vou visitar o complexo arqueológico de Písac, situado no alto de um cerro de onde se avista boa parte do Vale Sagrado. Sento-me numa mureta e ponho-me a observar a cidadezinha e sua buliçosa feira semanal. As ruínas compõem-se de patamares e edificações dispersos pela encosta da montanha, destacando-se dentre elas El Hintihuatana (em quéchua, significa relógio de sol) cuja finalidade, segundo os pesquisadores, seria a de servir de observatório astronômico. Com apenas um templo e ênfase na administração dos produtos agrícolas, tudo leva a crer, tenha sido uma fazenda real pertencente a um imperador guerreiro, o inca Pachacútec. Depois de almoçarmos em um restaurante a beira da estrada, seguimos para Ollantaytambo, pequeno lugarejo onde se localiza a fortaleza de mesmo nome. É um lugar en-can-ta-dor, bom pra ficar um ou dois dias, percorrendo com calma as incríveis ruínas, pra mim as mais belas das que já visitara. Deslumbro-me com a variedade multicolorida de bonecas expostas na frente das lojas, são as mais lindas de todas as que vira, afora serem mais baratas que as duas adquiridas em Cusco e Písac; morro de pena em não poder comprá-las, porém se continuar neste frenesi consumista não haverá mala suficiente para acomodar tanta bugiganga. Funcionava este reduto militar também como observatório astronômico, comportando dois templos: um dedicado ao sol e outro à água. A sua frente, ergue-se o cerro Pincuylluna, onde estão diversas edificações em pedra, destacando-se uma composta por três blocos retangulares idênticos, dispostos um sobre o outro, com seis janelas na fachada e mais seis na outra parede. Vistos de frente lembram um edifício de três pisos; foram usados como depósito de armazenagem de produtos agrícolas. À sua esquerda, um grande bloco de pedra representa, para os moradores do lugar, o rosto de um inca. Parto lastimando o pouco tempo em que ali ficamos. O último lugar da excursão será Chinchero, localidade situada a 3.762 metros, portanto muito elevada do que as duas anteriores, cujas altitudes médias são em torno de 2.800 metros. Foi fundada com o objetivo de servir de residência de descanso ao inca Túpac Yupanqui que, em continuidade à obra de seu pai, Pachacútec, expandiu e consolidou o império inca. Um de seus feitos notáveis foi empreender uma viagem marítima até a Polinésia com duração de 9 meses. Os restos do palácio, a igreja colonial (embora pequena e sem os magníficos adornos de prata e ouro das demais, apresenta teto e paredes pintados com afrescos de imagens sacras) e a colorida feira dominical (quando chegamos as barracas, infelizmente, estão sendo desarmadas pois já vai avançada em muito a tarde) são seus principais atrativos. As casas pintadas de branco dão um toque especial ao delicioso vilarejo. Amo Chinchero tanto quanto Ollantaytambo. Se puder, retornarei com gosto a ambas, dessa vez me quedando com vagar em cada um deles para melhor desfrutar suas belezas.

sábado, 26 de março de 2005

Visitando as ruínas ao redor de Cusco

Cusco é uma cidade com mais de 3.000 anos de existência, considerada, portanto, a cidade mais antiga da América. Foi inicialmente povoada por pastores e agricultores. Posteriormente, depois de muitas guerras internas entre as diversas tribos indígenas, triunfou a inca (uma mescla de várias etnias), impulsionando o desenvolvimento desta civilização a partir de 1.200 d.c., graças ao extraordinário conhecimento que detinham sobre diversas ciências. Torna-se, dessa forma, a capital do império cuja prosperidade econômico-cultural provoca, ainda, assombro nos dias atuais. Com a chegada dos espanhóis em 1533, houve uma brutal interrupção no domínio desse povo, sendo transferida a capital para Lima. Sábado é o dia escolhido por mim para fazer uma excursão pelos arredores de Cusco onde estão situadas várias ruínas remanescentes do período inca. O primeiro lugar a ser visitado é Coricancha, ainda em Cusco, perto do hotel onde me hospedo. Embora não seja o mais imponente dos edifícios incas foi o mais respeitado e venerado por ser o templo do sol, astro estelar elevado à condição de deus no imaginário inca. Após breve descida para a inevitável sessão de fotos, rumamos a Sacsayhuaman. A respeito desse sítio há controvérsias: se foi construído com propósitos militares para defender o império inca de tribos invasoras, ou se com fins religiosos destinado a ser um grande templo dedicado ao deus sol. O conjunto arquitetônico, em si, é grandioso pois as pedras, algumas gigantescas - mais de 9 metros de altura -, faz com que perdure o mistério ainda não desvendado sobre o modo como os incas as carregaram até ali, considerando que eles não possuíam animais de tração. Ademais, também impressiona a maestria com que eles cortavam e encaixavam as rochas umas as outras, de forma que nem uma agulha conseguisse traspassá-las. Enquanto passeamos ao redor da magnífica construção, o guia informa que, em Sacsayhuaman, é celebrado, em 24 de junho, o solstício de inverno com uma grande festa, o Inti Raymi. Em todos esses sítios arqueológicos há invariavelmente vendedoras exibindo o lindo artesanato regional, daí meu lado consumista estar sendo sempre testado - pensam que resisto? Qual o quê! Compro dois lindos colares de pedras, um laranja e o outro verde e areia, lembrando um pouco as bijuterias usadas pela Betty do Flintstones. E lá se vai o microônibus até Puca Pucara, outra fortaleza militar (não foi à toa que os incas dominaram grande parte da América do Sul), composta de grandes muros, terraços e escadarias de impressionante envergadura arquitetônica. Por fim, eis Tambomachay, conhecida como baño del inca, construção cujo extraordinário sistema hidráulico compõe-se de piletas e desaguadouros em desníveis, por onde escorre água proveniente de um manancial situado em sua parte mais alta. Reservo a tarde para conhecer Quenqo, construção também feita com grandes blocos de pedras dispostas com precisão geométrica, cuja finalidade era a de servir de depósito para se armazenar chicha (bebida feita da fermentação do milho) ingerida durante os rituais incas. Este passeio, a cavalo, eu curto muito mais já que foge do esquema tradicional da excursão matinal. Ademais, o soroche havia me pegado e minha cabeça latejou demais durante toda a manhã. O que aliviou um pouco foi a muña, um arbusto cujas folhas contêm propriedades medicinais contra os efeitos da altitude. Cheiram-se as folhas - bem miudinhas elas - após esfregá-las na palma da mão; o odor lembra uma mistura de marijuana com menta. Bem legal passear por ali. Desço por uma cavidade escavada na rocha, conhecendo, assim, uma câmara subterrânea que termina no outro lado dessa passagem. Quando termina a cavalgada, ao cair do dia, volto a pé para Cusco, admirando do alto da colina aquela cidade milenar já se preparando para receber a noite que não tardará em envolver o lugar.

sexta-feira, 25 de março de 2005

Almoço em uma cuyeria

Havia contratado uma pequena agência, cujo proprietário chama-se José Puma Jallo, um cusquenho simpático e um tanto afeito ao trago. Iríamos conhecer dois sítios arqueológicos importantes situados perto de Cusco. E lá fomos nós, numa camioneta, em direção a Tipon. Saímos da rodovia e pegamos uma estradinha de terra que nos deixa em frente a um grande espaço gramado formado por 12 terraços cercados por paredes de pedras bem talhadas, e separados entre si por amuretas feitas do mesmo material. O sistema de irrigação é perfeito, pois os incas detinham um profundo conhecimento de engenharia hidráulica que surpreende até os dias de hoje. Ao longo dos terraços dispõem-se canaletas que escoam água irrigando-os. A água provém de um dos inúmeros rios cujas nascentes formam-se lá em cima, no cume de uma daquelas verdejantes montanhas, dispostas em círculo, como se abraçassem, protegessem os cereais que ali eram plantados antigamente. Qualquer coisa de espetacular essas montanhas, gente! Fico encantada porque aqui no Brasil costuma-se chamar qualquer morro mais alto de montanha. Qual o quê! Montanhas são estas do Peru, isso sim! Subimos, então, José mais eu, o flanco de uma delas, trilhando uma via de pedras feitas ao capricho em cujo centro destaca-se uma canaleta. Eu não quero mais saber de parar, por mim iria até o cume daquela formidável elevação da crosta terrestre, contribuindo em muito para minha animação o céu azul, a temperatura amena e um cheirinho bom de erva similar ao da macela. Entretanto, como temos de prosseguir com nosso tour, sou obrigada a descer, meio a contragosto. O destino seguinte é Pikillaqta, uma cidade construída há aproximadamente 1.200 anos, anterior, portanto, aos incas. Calcula-se que sua população alcançou 10.000 almas nos áureos tempos. Entretanto, não foi esse povo tão sofisticado quanto os incas no tocante aos conhecimentos de arquitetura e engenharia, o que se evidencia pelo uso de pedras pequenas em suas construções ao contrário dos grandes blocos de rocha utilizados por aqueles. Terminamos o passeio, almoçando em uma cuyeria, restaurante cujo prato típico é o cuy, um tipo de leitão, assado inteiro, num pequeno forno de barro ovalado (dá para se distinguir, por entre a boca aberta do animalito, seus dentinhos afilados avultando, dois do maxilar superior e dois do inferior). Acompanha rocoto relleno (pimentões recheados com ervilhas e cenouras) mais batata assada e talharim (viva os carboidratos!). Pra temperar o petisco, à parte, num potinho, aji (molho de pimentão seco e triturado misturado com maní). Comemos tudo, empinando de quebra uma cerva cusquenha (feita, segundo a propaganda oficial, da mais pura água da terra oriunda do degelo dos glaciares). Um dia depois do passeio, José, confirmando sua terna afeição pelo tragoléu, telefona, meio bebum, lançando-me galanteios desarticulados. Aconselho-o, maternalmente, a curar a mona. Fazer o quê?

quinta-feira, 24 de março de 2005

A capital do império inca

No vôo de Lima a Cusco – uma hora de viagem – passo quase todo o tempo olhando através da janela. Posso assim observar a mudança na paisagem. Até a metade da viagem, o solo desértico denuncia a aridez climática, à medida em que me distancio da capital, os cerros já começam a exibir trechos pontilhados de vegetação para finalmente serem completamente dominados pelo esplendoroso verdor serrano. Chego ao início da tarde em Cusco. De cara, gosto da cidade cercada por montanhas de suaves contornos, ruas estreitas e íngremes ladeiras de tirar o fôlego, situada a 3.400 metros ao nível do mar. Eu, criatura nascida e criada sempre ao rés do chão, já estou ciente dos efeitos de tal altitude: o temido mal estar, conhecido como soroche. Assim planejo ficar quinta, sexta, sábado e domingo aclimatando-me, pois na segunda-feira estarei partindo para a caminhada a Machu Picchu. Instalo-me no hotel e logo a camareira me serve um de coca para aliviar os efeitos da altitude. Descanso um pouco e vou conhecer a Plaza de Armas, ponto central da velha cidade, onde estão a Catedral, um imponente prédio de pedra, e a Igreja da Companhia de Jesus, cujo altar dourado é um deslumbre. Escolho para almoçar um dos restaurantes localizados sob as arcadas dos edifícios construídos ao redor da plaza. Sento-me a uma mesa ao ar livre, já que o clima, agradável, assim o permite. Peço uma sopa de quínua (um cereal de cor branca e grãos bem miúdos) mais cenoura, vagem, espinafre e batata, muito gostosa. Logo encostam à mesa crianças e mulheres vendendo mis bugigangas que, com vozes meigas, exclamam: mamí, ayudame, compra ese brazalete, aún no vendí nada hasta hora, compra ese collar para darme suerte. As melosas vozes das criaturas vencem no cansaço pela insistência. E por onde se caminha, escuta-se aquela cantilena de mamacita, mamacita, mira que lindo! No início, até curto esse cantochão, com o passar dos dias, porém começa a encher o saco a insistente abordagem (é de se registrar a pouquíssima quantidade de homens pelas ruas vendendo mercadorias). Caminho um pouco pelas vielas tortuosas admirando o rico artesanato colorido exposto nas lojas e calçadas, as roupas, as toucas e bijuterias, as cerâmicas e as bonecas de pano, as imagens de santos e os tapetes indicam a forte influência indígena. As vendedoras de comidas expõem quitutes como o delicioso milho assado (há 120 espécies) com queijo. As mulheres e crianças com seus trajes típicos portam chapéus de variadas formas, tamanhos e cores (o mais simples é um de cor preta ou bege, copa redonda, sem nenhum adorno). Deslumbrada, começo a fotografá-las e, para minha surpresa, pedem un sol, mamacita! Dou, por supuesto (vá que me roguem alguma praga, né?). Olham-me aborrecidas. Intrigada, faço um gesto, questionando. Respondem que um sol não basta, afinal são três pessoas. Exigem mais dois soles, um por cabeça, pode? Não importa, Cusco é envolvente: uma cidade cheia de cor, com muitos de seus prédios caiados de branco, já outros mostram o escuro granito de suas construções. E o balcões! Ah, os balcões! (infelizmente, nessa viagem, ainda, não sou a feliz possuidora de uma máquina digital, por isso, me vejo obrigada a recorrer aos links para mostrar ao vivo e a cores as imagens). Bela, milenar Cusco, umbigo do império inca, orgulhosa de seus guerreiros índios que lutaram contra os espanhóis. Embora a trate com fria cortesia, o cusquenho, em geral, não gosta da turistada espanhola, guardando, ainda, muita mágoa do modo cruel como foram colonizados. Como hoje é quinta-feira santa e o Peru muito católico (tão irônico porque esta crença religiosa é uma herança espanhola), as igrejas fervilham de crentes. Filas e filas nos interiores de suas naves querendo beijar as chagas de Cristo. Na belíssima Catedral de Cusco, a fila se estende do lado de fora circundando o quarteirão. E os semblantes sérios, compenetrados do povo, demonstram a fé inabalável de seu catolicismo. Volto ao hotel, bebo mais um tantão de chá de coca, ligo a tv e assisto a um programa de culinária metido a besta até o cair da noite, quando saio, novamente, dessa vez para jantar. Entro ao acaso num restaurante bem simples, decido-me pelo menu turístico composto de entrada (lawa de maiz, ou seja, creme de milho), plato de fondo (truta grelhada com batatas assadas), entre o postre e o suco opto por este (sou ciente de que, nos primeiros dias em cidades situadas a grande altitude, a alimentação deve ser leve e ingerido muito líquido). Atravessando a Plaza de Armas, a caminho do hotel, percebo nas colinas ao redor pontinhos brilhantes provenientes das casas construídas em suas encostas. E a lua quase cheia no céu, deus meu, qualquer coisa de linda, esta cidade, gente!

quarta-feira, 23 de março de 2005

En passant por Lima

Um dos sonhos de todo trekker que se preze é a caminhada de 4 dias a Machu Picchu. Para tanto teria de passar por Lima, cidade que, sendo bem sincera, nunca me atraíra a atenção, embora tenha sido uma leitora assídua de Vargas Llosa a certa época de minha vida, cujas estórias, em sua maioria, se passam nessa capital. Embarco para Lima, onde fico apenas um dia, o da minha chegada, já que no dia seguinte irei a Cusco. Aterrisso em Lima ainda pela manhã, percebendo, durante meu trajeto até o hotel, ser uma cidade plana, pobre e nada atraente - aos meus olhos, daí não ter frustrado em nada minhas expectativas -, a não ser pela peculiar névoa que a envolve e das oliveiras plantadas nos bairros chiques limenhos: Miraflores e San Isidro. Quando chego ao hotel contrato um tour  básico pelo centro da cidade onde se localizam os prédios históricos, entre eles o Mosteiro de São Francisco onde estão as catacumbas, cemitérios subterrâneos recheados de ossos humanos colocados em grandes valas descobertas. Informa-nos o guia que toda aquela ossada seria de pessoas - calculam-se umas 30 mil - que morreram em conseqüência de um abalo sísmico ocorrido há mais de 2 séculos. Aliás, como são freqüentes os tremores de terra nesse país, há, em muitos prédios, placas em que se lê a tranqüilizante frase: zona segura en caso de sismo. Continuando o tour pelo centro histórico, vamos à Plaza Mayor onde se situa o Palácio del Gobierno que, em razão de tremores, por hora políticos, acha-se resguardado por tropas do exército. À sua esquerda, encontra-se a Casa Arzobispal, destacando-se desse conjunto arquitetônico, construído em pedra clara, os belíssimos balcões em madeira escura - primoroso trabalho em talha - dignos de serem apreciados com mais vagar, porém meu tour é vapt vupt, tal qual uma ejaculação precoce (cruz credo, que comparação profana em se tratando de prédio nada laico!). Rapidamente, passamos em frente ao pátio da Catedral que se encontra coalhado de gente. Sentadas nos degraus que conduzem ao seu interior, vendedoras de velas oferecem - un sol, señorita – seus sebos luminosos a quem entra. O vai- e-vem incessante de pessoas, entrando e saindo do templo, confirma as comemorações da semana santa, data levada muito a sério pelos peruanos, povo deveras católico. Deixando toda aquela devoção para trás, vamos conhecer o cerro San Cristóbal, um outeiro árido, perto dali, onde em suas encostas, despidas de vegetação, se aloja o bairro de mesmo nome, cujas casas humildes denotam bem a classe social dos que o habitam. Por suas vielas estreitas trafega, com extrema rapidez e agilidade, um veículo peculiar – o chollo táxi. É um triciclo importado da China - alguns apresentam um pequeno toldo – guiado com incrível rapidez e muito usado pela população pobre da cidade. Para terminar o minitour, passeia-se pelos bairros de Lince e Rimac, ambos de classe média baixa, até se chegar a Miraflores (muito citado nos livros de Llosa) e San Isidro. Estes dois últimos são de classe média e média alta, com largas avenidas, casarões, shopping centers, enfim, tudo de bom pra quem só quer coisas belas e agradáveis, valorizados, ainda, pela bela vista do Pacífico que pode ser desfrutado do calçadão que o contorna ao longo de vários quilômetros.