sábado, 13 de março de 2010

Canionismo na Garganta Silveirão

O despertador do celular tilinta na escuridão do quarto. Tateio na mesinha de cabeceira e aperto a tecla que o silencia. São 4 da madruga. Levanto e vou até a cozinha da pousada. Enquanto tomo um substancial café com torrada de banana, queijo e mel mais uma fatia de melão, Maria no balcão da pia prepara meu lanche. Paulo já está no carro esperando. Embarco e vamos até a cabana de Kaloca onde o pessoal nos aguarda. Embarcamos na Defender do doutor e lá vamos nós pro Silveirão, garganta que se situa na parede norte do canyon Josafaz. Será a pedida do sabadão rapelar suas dez cachoeiras. Depois duma semana de intemperança climática, a estreita e esburacada estradinha de chão batido, que conduz à fazenda onde o perau se localiza, é uma pasta de lama escorregadia que faz o potente veículo valsar pra lá e pra cá como se estivesse bebum. São Pedro despejou sem piedade alguma um tragoléu de chuva pra campo nenhum se queixar de seca. Poxa, meu santo, nem tanto ao mar nem tanto à terra, tá ligado? Paira uma neblina espessa sobre os campos. Assim, sem chance dum amanhecer espetacular com direito àquela coloração vermelho-alaranjada-violácea que costuma incendiar a barra da manhã. O céu, quando chegamos na beira da garganta, mantém-se enevoado. Entretanto a temperatura, coisa boa, é amena, considerando que são apenas 7 da matina. Dessa vez, Kaloca e eu não estamos sozinhos. Acompanham-no dois amigos: Ricardo, conhecido por Lefinha, um guri com 19 anos, entusiasmado e cheio de vigor ainda adolescente, mais Ramonn (creio que o segundo “n” se deve à numerologia), 27 anos, de cuja cabeça pendem compridas tranças rastafári. Dono dum temperamento sereno, ele e Ricardo se entrosam muito bem, apesar de temperamentos tão distintos. Está conosco, também, Schuster, chamado por nós de doutor, porque é médico. Dono do poderoso Land Rover, venceu habilidosamente a estradinha que bem poderia figurar em qualquer rota de rally off road. Esse homem de 68 anos mantém, ainda, a peteca da adrenalina turbinando seu sangue, aventurando-se no canionismo com uma audácia de fazer inveja a muito barbado jovem. Vestindo uma roupa de neoprene vermelha e azul com capuz lembra o Homem-Aranha quando está de costas. Se bem que um fofucho, e bota fofucho nisso, homem-aranha!! Todas as ancoragens são feitas em grampo P, exceto a do primeiro lance da sexta cachu, a de 130 m, cuja amarração é feita num tronco de árvore. E lá vamos nós rapelar a primeira queda com 20 m. Lefinha é o primeiro a descer. Vai fazer a segurança pra nós. O guri, com toda a animação de seus verdes anos, escorrega pela corda, soltando uhuhs animadíssimos que reverberam pelos esbranquiçados paredões cobertos de líquen. A rapelagem é tranqüila e após uma pequena caminhada, logo chegamos ao topo da segunda cachu, essa com respeitáveis 90 metros. Feita em dois lances, rapela-se 60 m até um platô onde esperamos Kaloca. Um ventinho um tanto quanto desagradável sopra, e tiro minha jaqueta corta-vento da mochila. Kaloca junta-se a nós e puxa a pesada corda, prendendo-a em outro grampo P para descermos o lance final de 30 m até um poço com água pelas canelas. Seguimos caminhando por um toboágua cuja extensão - 300 m – proporciona, conforme o trecho, ora um delicioso esquibunda, ora escorregar de pé por suas lisas pedras. Mutcho bom!! A terceira cachu, um paredão vertical positivo de 50 m, termina num poço com água até a cintura. Com pouca água, portanto, seu rapel é perfeito pra mim. Mais uma caminhada, percorrendo um bretezinho, formado dum lado pela cerrada mata ciliar e doutro por uma parede coberta de limo cujo aspecto lembra um veludoso tapete verde. Desemboca o estreito corredor na quarta cachu, uma rampa cuja extensão não ultrapassa os 30 m. Uma lúdica brincadeira sua descida. Já a quinta cachu embora tenha 50 m, exibe uma declividade super suave. Começa pela borda esquerda, no seco. Alguns metros abaixo, contudo, já se está na água. Uma delícia seu rapel. Seu poço, porém, é fundo. A sexta tem 135 m e se faz em três rapéis: dois de 60 m e um de 15. O primeiro lance dá um certo trabalho porque a água jorra com pressão e desestabiliza meus pés, além de demandar certa técnica na travessia dum trecho mais exigente. Eu, pra fugir do caudal, procuro ir pelo lado que não tá muito bombado. Desço com cautela até o pequeno platô onde o doutor já lá se encontra. O segundo lance desço sem dificuldade porque bem menos problemático. O terceiro lance mais barbada impossível. E sobre as duas últimas cachus, com seus risíveis 5 e 4 m, apenas um comentário: sopinha no mel. Mais adiante, despenca pela parede direita a última cachoeira, pertencente ao outro vértice do Silveirão, via mais agressiva do que a que estamos descendo. A última cachu não é rapelada porque não está grampeada. Kaloca manda eu e doutor na frente enquanto fica com Ramonn e Lefinha batendo um grampo na rocha pros futuros canionismos. Assim, damos um balão pela mata de modo a contornar aquela belezinha de 25 m. Só de olhá-la sinto água na boca. Dá pra sentir como deve ser gostoso rapelá-la. E depois a interminável caminhada até a saída do canyon. Um dos guris pergunta pra Kaloca quanto falta. Avesso a tais questionamentos, dispara, lacônico: “Pouca demora, 40 minutos”. Eu que já ando com ele há uns bons três anos, não levo muita fé. Fico, contudo, na minha. Os tais 40 minutos, à semelhança do milagre da multiplicação dos pães, viram 180 minutos!! Kaloca e sua “precisão britânica” faria os ingleses corar de vergonha! No vocabulário kaloquiano, sempre faltam 40 minutos pra terminar um canionismo, hahaha!!! Véio, roda, roda, roda o relógio!! Já noite escura, conforme o combinado, gritamos em alto e bom som por Pauleca enquanto passamos pela casa de Zé Fernandes. Nem viva alma dele. Seguimos, então, pela estradinha até encontrar o Defender do doutor estacionado mais adiante. De Pauleca, nem sinal. Onde se socou esse homem, perguntamos nós intrigados. Olhamos dentro do carro que se encontra chaveado. Nada. Arrisco um palpite: “Periga tá escondido na mata, adora dar susto nos outros. Deve tá dando risada da cara da gente”. Já Kaloca tem outra opinião. “Só pode tá bebendo uma cachacinha com Zé Fernandes, não tem?” E lá vai Kaloca à procura de Pauleca. Não dá 10 minutos, surgem os dois. Diz Pauleca que não ouviu nossos gritos quando passamos por lá. “Tava preocupado com a demora de vocês. Mas Kaloca, tu não disse que chegavam às 6? Tava preocupado, gente, já passa das 8!”, exclama, aflito, o bom Pauleca. Entramos no jipão, tagarelando felizes, esquecidos de nossos corpos moídos após 12 horas de atividade física. Enfim, mais uma fundão conquistado! E que venham os próximos, porque aqui, nesta região, coisa que não falta são gargantas e canyons, esperando pra ser conquistados!