quinta-feira, 12 de abril de 2007

Sozinha na trilha do Lago Grey

Eu mais Kate deixamos o refúgio às 09:00. Sabendo, de antemão, que uma caminhada de 11 km nos aguarda, teria sido barbada, não fosse a chuva fininha que cai quase sem tréguas. Agora vê-se mais de perto o cerro Ferrier, à esquerda; sua forma cônica espalha-se generosamente e expõe suas encostas e cume embranquecidos de neve. Passo ao largo da laguna Los Patos e um pouco mais adiante já se avista o lago Grey; aliás o restante do caminho desenvolve-se ao longo da sua margem leste onde bóiam azulados témpanos. A vegetação durante a trilha é quase toda de matorrales, salvo por pequenos trechos de bosque. À medida que me aproximo do glaciar, a trilha ascende e se avista lá embaixo, na margem do lago, uma estreita faixa de areia coberta de pedriscos. Já dá pra perceber as duas pontas do glaciar, a da direita, com 1,2 km de largura, e a da esquerda, a ponta maior, com 3,6 km de largura, por onde se caminha, utilizando-se grampones já que não apresenta gretas tão profundas quanto a outra. Separa as duas línguas de gelo uma ilha rochosa coberta de vegetação, conhecida como Nunatak. Quando chegamos ao refúgio Grey, o sol dá as caras cessando o chuvisco. Kate, que havia resvalado no escorregadio terreno em que se havia transformado a trilha, tira a bota e revela um tornozelo inchado, ainda bem que é seu último dia de trekking, senão para a pobre garota o passeio teria se encerrado com este acidente. Minhas calças e meias estão totalmente molhadas, os pés frios e murchos da chuva que havia passado através das botas...arre! o calçado de merda não era nem um pouco impermeável, o imprestável! Coloco as peças de vestuário para secar em frente à salamandra disposta num canto do refeitório enquanto tiro da mochila um sandu que trouxera. Peço uma sopa bem quentinha a um dos rapazes que atende, e sento na comprida mesa de madeira para comer meu almoço. Converso um pouco com um grupo de chilenos e fico tranqüila ao ver que Kate já conseguiu descolar antiinflamatórios para sua entorse, devendo dali ir para o Lodge Grey, e não mais pousar no refúgio Grey, onde disporá de mais conforto para tratar de seu pé machucado. Minha estada, infelizmente, nesse lindo lugar é breve porque tenho de retornar ao refúgio Paine Grande antes que a noite caia. Antes ainda quero ir ao mirador para ver de perto a ponta leste do glaciar Grey. Na trilha que conduz a ele as rochas pretas ao redor mostram-se luzidias da chuva que reiniciara justo quando eu saí do refúgio. Acerco-me da beira do lago onde o glaciar termina, distante pouco mais de 200 metros, e distingo nitidamente o labirinto das largas e abruptas gretas, traçando sinuosas colinazinhas de gelo azulado. Suspiro, suspiro e suspiro, mais uma vez agradeço, sei lá a quem, por estar viva e poder admirar esse colosso de gelo. Retorno à trilha principal sabendo que, escondido atrás do cordão Olguin, meio visível entre as brumas, repousa em seus flancos, o glaciar de mesmo nome. Na minha caminhada de volta, admiro com mais vagar um minicanyon, a coisa mais querida, escavado pelo rio Olguin nas paredes rochosas do terreno por onde escorrem suas céleres águas brancas. Pra minha delícia, um picapau, com plumagem preta e chamativo penacho vermelho enfeitando a crista, chama minha atenção com o ruído de seu bico fazendo toctoctoc no tronco de uma lenga. Estou adorando fazer esta trilha, talvez porque esteja sozinha, sem guia, provocando meus medinhos infantis e testando minha autosuficiência, Sem pressa, paro e admiro o lago Grey lá embaixo; viro-me para trás, mais adiante, seu glaciar com aquela azulada transparência dá um toque de cor na paisagem acinzentada. Mais perto do refúgio Paine Grande, noto deliciada tufos de capim emergindo dourados da terra. Atravesso um trecho da trilha cercado por altas paredes de rocha, algumas revelando distintamente as várias camadas de sedimentos verdes e ocres depositadas após sucessivos derramamentos vulcânicos. Chego no refúgio às 18:30, molhadíssima, meu joelho esquerdo dói um pouco, porém eu estou tão contente que nem me importo. Faço os meus habituais exercícios de alongamento, tomo um bom banho quente e vou cear devidamente acompanhada por meia garrafa de vinho tinto, sobra do jantar da noite passada. O que mais posso desejar da vida, hein?