domingo, 14 de agosto de 2011

Os gnomos dos bambuzais

Quando acordo, nem bem 6 da manhã, um espetáculo se descortina diante de meus olhos. Os mesmos protagonistas do show de ontem, ao entardecer, inverteram as posições, e quem governa a banda oriental, pincelando agora de vermelho o céu, é o astro-rei. Já a banda ocidental do planeta está ocupada por uma rechonchuda lua tingida de rosa. Lili resmunga porque não pode escovar os dentes já que foi decretado, desde ontem à noite, racionamento de água. A que nos resta deve ser usada como bebida ao longo da caminhada de meio dia que temos pela frente. Novo ponto de água só no final do trekking, em Itamonte. Rodolfo, precavido guia, oferece balinhas de menta pra aliviar o bafo de dois dias sem escovação. Estamos já às 7 horas, descendo o 3 Estados, ao longo de seu flanco leste, numa sucessão de altos degraus rochosos, afogados num oceano de capim-elefa. Toda a descida se faz dentro desta vegetação, tá ligado? Escorrego e levo um belo tombo. Ainda bem que caio de bunda e não de cara no chão. Deixando pra trás o capinzal, uma crista bem íngreme exige uma escalaminhada constituída por dois paredões, que se sucedem um ao outro. Chego a suar, o que é ótimo porque até então estava sentindo frio devido ao frescor matinal e ao vento vigoroso que vem soprando desde a madrugada. Tão forte foram suas rajadas que eu e Lili mal pudemos pregar olho durante a noite! Percorrer estas trilhas, que rasgam bosquetes de bambus e de campinas, cobertas por capins-elefantes, são prova dum ato de fé na manhã lindamente ensolarada. Descida sobre lajedos contínuos e nova subida perrenguenta brigando com novo bambuzal. E quando perco as esperanças de encontrar um terreno “limpo”, eis-me dentro dum bosque lindinho, daqueles de conto de fadas, sem qualquer tipo de vara-mato. Dura pouco, entretanto, a deliciosa pausa de tão enervante vegetação! No restante da subida até o cume do Alto dos Ivos, sou obrigada ao uso dos bastões pra afastar os talos do capinzal. Do alto de seus 2.200 m, se tem uma visão apurada da face leste do Cabeça de Touro e de sua longa crista. Realmente, este pico impressiona desde o primeiro dia quando apenas se faz visível a ponta de seu cume, espremida entre a Pedra da Mina e a Tartaruga. E vai crescendo, crescendo, impondo-se na paisagem até o último dia de pernada! À minha frente, Agulhas e Prateleiras visivelmente mais nítidas que no dia anterior. Deixo então meus olhos descansarem um pouco nessas elevações tão interessantes. Avisto, ainda, dos Ivos, uma pedra solitária que se destaca lá pras bandas de Itamonte. Chama-se Pedra do Picu. Segundo Rodolfo é ótima de se escalar. Toma um dia inteiro, com direito a pernoite em seu cume. Dia seguinte, só alegria: um rapel atrás do outro até se alcançar a segurança do rés do chão. Desacostumada que estava de ver céu sem nuvens, não é que hoje, eis elas, tais quais boás de plumas brancas, adejando graciosas no firmamento? Foi breve a passagem do nuvaredozinho, entretanto. Quando volto a atentar mais uma vez no céu, já exibe ele o imaculado azulão que vem ostentando há 4 dias. E iniciamos então a descida do cume do Alto dos Ivos. Uma pernada que, até se alcançar definitivamente terreno plano, dura 50 minutos. Inicialmente, enfrenta-se um declive pedregoso bem facinho de descer, pra então surgir um costão alajotado super íngreme - eu, medrosa, desço de bunda - que desemboca logo em seguida numa estreita crista plana formada por outro extenso lajedo – aleluia!! – livre de qualquer vegetação pentelhante, avistando-se durante este trajeto a torre de telefonia de Itamonte à esquerda. E outra descida, dessa feita, entrando no sombreado frescor dum bosque onde, no solo, vicejam variegadas bromélias de folhagens verdes e vermelhas. Mais adiante, uma quaresmeira exibe uma solitária flor lilás, findando esta descida num vara-capim. Breve trecho plano num bosque de bambu. Nova descida noutro vara-bambu fodido. E aqui faço um aparte pra denunciar estes entes vegetais do mal que adoram atucanar a vida dos caminhantes. São eles os gnomos dos bambuzais. Uma praga que nenhum facão ou fogo consegue dar cabo! Atacam quem passa nas trilhas, pregando peças de extremo mau gosto, beirando as raias da perversidade. Não respeitam quem quer que seja. Criança ou velho, mulher bonita ou feia, mula com ou sem cabeça, todos levam calço. Todos têm as alças das mochilas presas em seus galhos e esticadas quem nem bodoque por vários metros, enquanto o sujeito, coitado, supõe que tá caminhando livremente. E quem conseguiu ser poupado das bofetadas que os longos caules pespegam nas bochechas sem dó nem piedade, não escapou de lambadas nos braços ou nas pernas. Pra culminar tanta maldade vegetativa, não só as folhas dos bambus quanto os talos secos dos capins-elefantes tornam o terreno muito liso, a ponto de eu levar dois tombos, um deles deixando minha nádega bem dolorida. Inconvenientes de se ser magra. Se eu fosse gorda, meu bumbum acolchoado amorteceria bem mais a queda. Terminados, em definitivo, os declives, novo vara-mato e - nem acredito - um bosque relativamente limpo. E quando me dou conta, estou pisando numa estrada. Feliz da vida, comento, então, com meus botões: “coisa boa, agora é sopinha no mel!” Qual o quê! A tal estrada, coberta de folhas escorregadias, galhos de árvores e pequenos tocos de arbustos cortados recentemente, é um porre de se caminhar. Último dia de pernada é isso aí! Um teste de paciência. Com os nervos a flor da pele, ala putcha, difícil alguém não se irritar. Só santo. E aposto meu dedo mindinho que deve ser do pau oco! Quando tu pensa que terminou tem sempre mais um trecho a vencer. Uma curva que dá noutra curva e assim por diante até tu perder a esperança de que um dia o trekking termine! E foi assim mesmo que aconteceu. Quando achei que a pernada findara naquela bela alameda de araucárias cujo terreno é coberto por polidas pedras, outra estrada se abre diante de meus aturdidos olhos. Dessa feita, de chão batido. Pelo menos isso!! Quando eu já perdera as esperanças, conformada em ser uma eterna andarilha, eis que surge, bem a minha frente, o adorável e brilhante asfalto da BR 354, onde às 13 e 10, dou por encerrada minha ma-ra-vi-lho-sa pernada na Serra Fina. A mesma Kombi branca que nos levara até a Toca do Lobo, parada num recuo da rodovia, nos aguarda! E num restaurante à beira da BR 354, comemoramos o término da travessia, almoçando suculentas chuletas com fritas mais salada, arroz, feijão e farofa com ovo e lingüiça! O brinde não teve nenhuma loira gelada, não! Pois não é que a ala masculina, pasmem, preferiu as avantajadas medidas da morena americana? Pois foi bem assim, acredite se quiser!

sábado, 13 de agosto de 2011

O crepuscular 3 Estados

Na bela manhã de sábado, tanto os preparativos do café quanto o desjejum se desenrolam sem pressa alguma. Nosso acampamento, instalado numa clareira, é um oásis em meio ao diabólico capinzal. Desmontadas barracas e acomodada a equipagem dentro das mochilas, às 9 e 25 enveredamos pela estreita trilha dominada em ambos os lado pelo infalível capim-elefante. Afastando, com gana homicida, os compridos talos que teimam em adentrar olhos e nariz, alcançamos em 15 minutos o rio Claro onde aproveitamos pra encher garrafas e cantis, tendo em vista que, daqui pra frente, só quando estivermos no vale do Ruah, localizado no outro lado da Pedra da Mina, obteremos de novo água. Olho pra quarta maior montanha brasileira e penso no respeitável desnível de 1.100 m que tenho de enfrentar até seu píncaro, assentado sobre 2.798 m de altitude. O início do ascenso, pelo flanco oeste, é tranqüilo, palmilhando um lajedo com parca vegetação entre as rochas, aleluia!! Distingo, à medida que vou subindo, mais e mais nitidamente, o - pra mim, bem entendido - encantador pico da Tartaruga. Percebo uma bela crista afastando-se de seu topo e terminando numa escarpa de respeito. Penso, com meus botões, que há ali boas possibilidades de aventura, seja desescalando na mão grande ou no rapel. O que até então era doce logo vira fel! Começam a dar pinta de novo os histéricamente altos capins-elefantes. Graças a deus, o trajeto, brevíssimo, é sucedido por outra extensa e boa laje, de forma que a trilha prossegue livre da vegetação pentelhante até o topo da Pedra onde pisamos às 10 e 25. Os tais 1.100 metros de desnível nem foram assim tão difíceis de galgar. De todos os picos brasileiros, este até agora foi moleza se comparado a outros feitos por mim. Pico Paraná, por exemplo. Dureza total! Rodolfo constata que a caixa de metal prateado, em cujo interior deveria haver o tal livro-cume, se encontra vazia. Nem esquento. Sinceramente? Tô nem aí! Não querendo ofender àqueles que o cultuam, não entendo a razão da existência desse tipo de registro. Como prova de que alcancei o cume xis ou ipsilone, tenho pra mim que minhas lembranças, mais ainda do que as fotos, bastam. Elas são meu livro-cume! Deixando meus olhos circunavegarem pelos arredores, traço uma panorâmica de 270º que engloba, a oeste, os picos da Tartaruga, do Capim Amarelo, do Itaguaré e do Marins. Já a leste, em primeiríssimo plano, o soberbo Cabeça de Touro, ao passo que o Agulhas Negras me obriga a estreitar os olhos já que não passa dum pontinho diminuto no fundo da paisagem. Animadíssimo nosso recreio no cume. Enquanto uns saem pra fotografar, outros (os inveterados fumantes) fazem uma rodinha e tascam fogo em seus palheirões. Fujo como o diabo da cruz daquele antro de viciados e me mando pra bem longe. Vade retro cigarrim nojento....arghhhh!! Mais me vale fotografar flores.....mentira, mentira, mentira.....sinto uma puta saudades tua, fumacinha peçonhenta! Às 11 horas, damos um tchau pro cume da Pedra e resvalando num terreno coberto de cascalho, começamos a baixar a ribanceira que desemboca no vale do Ruah. Se o cara bobear, derrapa e rola que nem tatu-bola, hehe. Contudo a visão dourada (até que pra alguma coisa o capim-elefante serve!) do Ruah compensa o perrengue de tão árdua descida. Marcelo e eu ficamos pra trás. Ele porque carrega uma pesada mochila cargueira, eu porque sou deveras cautelosa quando desço. Divertida companhia, Marcelo revela-se poeta e, entre trancos e barrancos, deixa escapar com certa timidez um “Quero o Apocalipse Para sentir na boca teu gosto Experimenta-me Sou três quartos água Cem por cento alma”. Só não bato palmas porque meus bastões e o medo de escorregar não permitem. Quando se chega à planura do vale, enfrenta-se, inicialmente, um trecho nada firme coberto de turfas. Mais adiante, outro trecho de lama preta, tipo movediça, onde afundo uma de minhas botas quase – ainda bem - até o cano. A instabilidade do terreno deve-se ao olho d’água da nascente do rio Verde que se localiza, justo aqui, no Ruah. Após breve caminhada em meio ao “amigável” capim-elefante, parada pra almoço às margens dum remanso formado no estreito e pedregoso leito do rio Verde. Sentados enquanto comemos deliciosos sandus de carne de porco, escutamos a fascinante embora mórbida explicação de porque Rodolfo nomeou seu mergulho no rio como o “pulo do Getúlio”. Como não poderia deixar de ser, Marcelo, o antropólogo do grupo, pega a palavra e conta o “causo”. “Bem entendido, transmito apenasmente o zum zum ronronado pelas más línguas”, inicia ele com voz solene, “dando conta de que o presidente gaúcho, homem prático, gostava de unir o útil ao agradável quando em visita a Itatiaia. Como amante da caça, a região fornecia os mais variados tipos de animais que, ele bom de mira (tanto que de prima acertou seu orgulhoso coração), abatia com facilidade. Sem esquecer, contudo, seu dever de casa, diligente governante que era, aproveitava pra afogar seus desafetos, ordenando que fossem colocados no interior duma gaiola de ferro, feita exatamente pra esse fim, e submersos na represa situada logo após o abrigo Rebouças”, finaliza ele satisfeito com o silêncio atento que o grupo lhe dispensou durante a narrativa. Ora, se lenda ou não, que tratem disso os historiadores, porque o tempo urge e a caminhada deve ser retomada. Deixando, então, a boa sombra do capãozinho onde almoçamos, às 13 e 40 iniciamos a subida ao longo duma crista, não sem antes atravessar pela enésima vez outro trecho minado de capim-elefante. E durante um bom tempo, subidas e descidas. Ora em meio a bosques de abusados bambuzinhos ora em meio a um oceano de ondulantes capins-elefantes. Tenho de fazer certa justiça a estas duas pragas: servem ao fim e ao cabo pra proteger do forte sol que paira sobre o dia. A pernada sobre a crista do Cupim de Boi é linda demais. À direita, uma larga e profunda garganta, formada pelos lisos paredões do pico do Avião, tem seu término no vale do Paraíba. À frente, ergue-se a maciça presença desta interessantíssima elevação rochosa, o Cabeça de Touro! À esquerda, o pico dos 3 Estados só está no aguardo das nossas pessoinhas. Já no cume do Cupim de Boi, às 15 e 50, visualizo não só as Agulhas como o pico da Serra Negra, o Morro do Couto e até as Prateleiras!! Às 16 e 25, iniciamos a descida do Cupim, socando as botas num pedrario nervoso. Mais bosques de bambuzinhos. E quando penso que esses empata-fodas da pernada terminaram, continuam eles a dar pinta também na crista que antecede à encosta do pico dos 3 Estados. O que compensa são uns trepa-pedras a fudê que escalaminho toda prosa. A fudê pra mim, claro, que tô carregando uma mochilinha de ataque com não mais de 2 kg. Pros guris, que levam nos costados cargueiras com 30 kg, deve ser uma merda! Depois que se sai da crista e se inicia o ataque ao pico dos 3 Estados por seu flanco oeste, sinto até saudades dos bambuzinhos. A minha frente, um trecho íngreme pra caramba, sem dar mole um segundinho sequer, serpenteia pelo infame capinzal que se estende até o cume inclusive. Mas bah, muito mais difícil que a Pedra da Mina este 3 Estados! Tanto é verdade que, quando estamos quase chegando ao cume, comento com Marcelo quão difícil fora a subida. Ele, com sua verve habitual, destilando suor, inobstante a temperatura já bem fresca, solta esta pérola: “Pedra da Mina é coisa de mina!! Como é gozado esse cara, hahaha!! Chegamos ao cume ainda usufruindo vestígios duma boa luminosidade. Tanto que posso curtir a oeste, um cenário avermelhado pairando sobre as mineiras Itanhandu e Itamonte, enquanto, a leste, uma lua, levemente rosada pelos últimos raios do sol poente, paira sobre a carioca Resende. Tudo de bom esta vida de montanhismo. Deitada no colchonete, enquanto alongo meus fatigados músculos, relembro o quão emocionante fora admirar - a ponto de sentir os olhos marejados - o vislumbre da dourada encosta dos 3 Estados um pouco antes de iniciar a conquista de seu cume. E o sorriso de pura alegria que sucedera ao tímido pranto, já pressentindo o anticlímax da vitória. Quer melhor livro-cume que este? Como é o último dia de acampamento, Rodolfo reserva uma surpresa. E que surpresa! Um rodízio de pizzas!! São servidas porções de calabresa, 3 queijos, romeu e julieta e, ulálá, a piéce de resistance: várias e diversas fatias cobertas com espessas camadas de......Nu-te-la!! Duas garrafas de vinho regam nossa calórica ceia. A conversa, como sempre, recheada de bobagens mis, é pontuada por ruidosas risadas. Quando retorno a minha tenda, levemente embriagada, uma lua absolutamente branca me deseja boa-noite! A última na Serra Fina....que peninha!!

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Passo dos Anjos

O vento que soprara durante a noite, provocando um chap chap enjoadinho no plástico da barraca, permaneceu firme e forte durante uma boa parte da manhã, enquanto caminhávamos ao longo do Passo dos Anjos. Suponho que o nome dado a esta crista – apropriadíssimo - advém não só do fato de não exibir qualquer vegetação embaraçante ao longo de seu trajeto como ainda à suave aclividade do terreno. Além do mais o visual é lindo! Em ambos os lados da estreita trilha, altas escarpas projetam suas sombras no vale que se estende abaixo. Vez por outra paro e olho pra trás. Numa dessas paradas, eis que, mirando o horizonte, chama minha atenção, apontando a oeste, duas expressivas elevações. Não deixo por menos e logo estou aos gritos – já que ele se encontra bem a minha frente - perguntando ao Willian “o que é aquilo, hein, Príncipe?” Descubro então que são Itaguaré e Marins, outra clássica travessia da Mantiqueira, que também já está em minha alça de mira faz um tempinho. Observo, consternada, que um bom pedaço da vegetação apresenta fortes sinais de queimada. E fico sabendo mais tarde por Rodolfo do inadvertido descuido dum rapaz que derrubou um fogareiro coisa duns meses atrás. Como no meio vegetal a lei da regeneração é mais poderosa que no animal, flores que há um bom tempo não floresciam estão nascendo e tornando mais formoso ainda o Passo dos Anjos. Após uma hora e quinze minutos, a moleza acaba quando se tem pela frente um trecho invadido por esta planta daninha conhecida como capim-elefante ou capim-de-anta. Nanica - 1,53 apenas! - desapareço em meio ao alto capinzal cujos duros talos atingem em média 1,70 m de altura. Além de cuidar pra que sua longa e afiada folhagem não corte meu rosto, é foda caminhar em meio ao labirinto de estreitas trilhas abertas no matagal, entrecortadas por salientes touceiras e robustos pedaços de rochas. Se neguinho vacila, leva calço após calço, podendo até se estabacar no chão. Embora a subida torne-se cada vez mais e mais íngreme, um alívio livrar-se do pentelhante capinzal e ingressar num pequeno bosque de mata atlântica. A breve caminhada sob a refrescante ramagem é super bem-vinda depois de penar na canícula durante boa parte da manhã. E o sol já vai alto no céu quando alcanço o ombro do Capim Amarelo, assim chamado devido à coloração amarelada exibida por essa planta depois de seca. Seria mais apropriado - no meu entender, é claro, porque mais poético – chamá-lo de Capim Dourado, tendo em vista o reflexo dourado da vegetação quando exposta aos raios de sol. Encontro Rodolfo sentado ao chão, descansando um pouco dos 30 kg de peso que leva em sua cargueira. Avisto, então, os picos da Pedra da Mina, Cabeça de Touro e Tartaruga situados a leste. Beleza pura vê-los, do lugar onde me encontro, como se estivessem um ao lado do outro, o que mais tarde descubro ser uma ilusão de ótica ou lá o que seja! Espremido entre a Pedra e o Tartaruga, do Cabeça só se entrevê parte de seu cume. Uma pausa duns bons 30 minutos permite aos fumantes enrolar seus palheiros com vagar. Lili Docinho, senhora de fino trato, não suja as mãozinhas fazendo cigarrim, não!! De sua mochila, saca um sofisticado maço azul cintilante contendo 10 cigarrinhos de palha enrolados, no capricho, por um sinhozinho passaquatrense, expert no assunto. Dá até vontade de voltar a fumar mas resisto bravamente ao espúrio desejo. Há 10 meses sem pôr um pito na boca, não vai ser agora que vou ceder à tentação....ah, não vou mesmo!! Se bem que às vezes dá umas ganas de chutar o balde, mandar tudo à merda, e voltar a tragar meus cigarrinhos com aquela volúpia que tanto conforto me proporcionou durante 42 anos. Porque continuo amaaando fumar! Bueno, de volta à trilha após o merecido repouso, atingimos, em 40 minutos, o topo do Pico do Capim Amarelo. Do alto de seus 2.490 m, permanecemos justo o tempo necessário pra tirar fotos sob um céu triazul sem fiapo algum de nuvem a maculá-lo. Linda demais esta Mantiqueira!! A descida, um íngreme declive, vai perdendo sua agressividade aos poucos, aplainando por completo quando desemboca num bosque. Afora arbustos e árvores de pequeno e médio porte, o manda-chuva do pedaço são os bambuzinhos, outro inço asqueroso pra caramba de enfrentar! Porra, não sei o que é pior, se o capim-elefante ou os bambus!! E, confirmando a vocação ainda atlântica da mata, verdes bromélias brotam rasteiras ao chão. E nova descida pinta no pedaço, terminando ao pé do primeiro dos dois paredões que hoje enfrentaremos. Como a distância engana! O que de longe, lá do colo do Capim Amarelo, parecera uma parede com temível inclinação de 90º, revela-se agora uma suave rampa de rocha granítica que super adere ao solado das botas. Embora o sol esteja a pino, são já 13 e 30, a sensação de liberdade é boa demais. Mesmo os guris carregando mochilas pra lá de pesadas, quando reclamam de seus fardos é sem vestígio de azedume. Todos, enfim, comungam dum mesmo sentimento: alegria de escapar por alguns dias da vida urbana. Após uma caminhadita de 25 minutos, eis o Maracanã! Um dos tantos locais de acampamento ao longo da travessia, o amplo terreno gramado é circundado por pequenos capões. Ali nos abrigamos do sol, iniciando-se então os preparativos do almoço. E que almoço! Tão bom e tão simples! Pão preto de nozes e castanhas, finas fatias de lombo de porco, queijo, mostarda e mel. De bebida um delicioso Tang Pro de melancia. Segundo Marcelo, “até se sente as sementes”. Hahahaha, essa é boa. Quando mineiro exagera, exagera pra valer. Vira Barão de Münchausen. Estamos tão contentes que entramos na onda e fingimos acreditar na absurdez criada por Marcelo. É o que dá meninos e meninas brincando ao ar livre. Bem descansados e alimentados, deixamos o Maraca às 15 e 30, prontos pra encarar - agora sim - uma parede bem mais longa e perrenguenta que a primeira, exigindo o uso das mãos vez por outra. Carnudas amarílis tingem de vermelho as descoradas lajes graníticas. E a subida, apesar de vencido o paredão, continua bem forte. Pra complicar mais ainda, outra travessia – que droga! - num bosquete de vara-bambus. E as caminhadas sobre as cristas sucedem-se num sobe e desce constante. Do lado direito da trilha, uma profunda garganta lança sombras escuras sobre o vale do Paraíba que se espalha generosamente por território paulista e carioca. E o esvanecido perfil da Bocaina sinaliza a vizinhança oceânica algumas dezenas de quilômetros adiante. Compensando o recente entrevero num dos infindáveis capinzais que, via de regra, sucede aos enfadonhos bosques onde predominam os intragáveis vara-bambus, nada como um desafiante trepa-pedras pra lixar a ponta das unhas. E quando a gente se dá conta a tarde chegou ao seu final! O pico da Tartaruga se faz mais e mais presente à medida que nos aproximamos da Pedra da Mina. Willian conta que, do cume da Pedra da Mina, uma via de escape, percorrendo a crista do pico Enganador, permite àqueles que não querem ou não podem fazer toda a travessia – seja por falta de tempo ou de condições físicas – finalizem-na em Paiolinho, bairro de Passa 4. Usa-se ainda Paiolinho como atalho àqueles que desejam fazer o pouco frequentado Cabeça de Touro sem a necessidade de enfrentar dois dias de caminhada para alcançá-lo. Marcelo, que recentemente desceu da Pedra da Mina pelo Paiolinho, conta quão dureza é esse descenso. E porque a noite já deu um chega pra lá no dia, não conseguimos curtir as belas e coloridas águas avermelhadas do rio Vermelho. Embora tenhamos caminhado durante uns 40 minutos varando o capinzal já na escuridão, as lanternas nem são ligadas tão clara se encontra a noite. Iluminada por uma lua cheia absurdamente branca, a silhueta arredondada da Pedra da Mina avulta sem charme na paisagem. Aqui e acolá, entre as rochas, entrevejo como se dia fosse, realçados pelo prateado brilho lunar, ramalhetes de arnica-montana exibindo sua delicada e alva florescência. Rodolfo opta por acampar às margens do rio Claro, situado quase no sopé da Pedra da Mina. As 10 horas de pernada fizeram com que a singela mineirice da janta, composta de feijão, arroz, farofa e lingüiça acebolada, fosse saudada como um banquete. O silêncio só é quebrado quando surge, na roda, uma garrafa de vinho tinto. E pra adoçar os doloridos músculos e embalar os sonhos, Bis Lacta. Baita sobremesa, não é mesmo?

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

A Dourada Mantiqueira

Há horas tinha vontade de fazer a Serra Fina, uma travessia clássica da Mantiqueira. Babava de inveja lendo no AltaMontanha as aventuras de um e outro guri mas cadê tempo? Quem é galo cinza faz em dois dias, eu, uma modesta carijó de meia-idade, necessito um mínimo de 3 dias. Subitamente sem nenhum planejamento surge a tão sonhada oportunidade de, junto com Lili Docinho, assaltarmos a tão decantada serrania mineira. Assim na quarta-feira, pego um avião, graças ao milharedo acumulado, e voo as tranças até Sampa. Em lá chegando, em vez de ir pra casa de Lili, onde pernoitarei, me mando pra Higienópolis, aceitando convite pra jantar feito por Summi, outra companheira de pernada no Roraima. Lilóca e Barbara também se fazem presentes na requintada janta, preparada enquanto conversávamos e bebericávamos um refrescante chardonay. A entrada, servida em pequenas cumbucas de porcelana branca, contém delicioso creme de abóbora salpicado com sementes tostadas e levemente salgadas deste vegetal. A atenciosa anfitriã oferece, após, delicadas trouxinhas assadas feitas de farinha de trigo e recheadas com galinha desfiada. Sucedem-se aos dumplings um prato de hortaliças. Caprichosamente empilhadas umas sobre as outras, as folhas verdes e vermelhas exibem em seu entorno fatias de pêra e nozes pecãs agradavelmente torradas. Supondo que a janta terminara, gulosa que sou, tecia eu vagas considerações sobre a sobremesa (sei lá por quê, a menopausa me transformou numa baita formigona), quando sou surpreendida com o prato principal. Repousando, branquíssima, jaz, no centro do recipiente, uma posta grelhada de filé de linguado, ladeada por um punhado de lentilhas. E Summi, sem dó nem piedade, ostentando, contudo, suave sorriso, peculiar aos orientais, desfere o golpe de misericórdia quando serve a sobremesa. Usa, para tanto, o mesmo ingrediente que utilizou no primeiro prato. Provo, assim, pela primeira vez em minha vida, um aerado e inesquecível suflê de abóbora regado com calda de gergelim. Sem fazer muita questão de me controlar, deixo escapar, vez por outra, gemidinhos de prazer a cada garfada, certa de que minha anfitriã não me entenderá mal. Há momentos em que as palavras não significam nada, nothing, niente, rien, amugudoanihá

Dia seguinte, bem cedinho, deixamos a capital paulista às 6 da matina porque o veículo de Lili está proibido de trafegar, nas quintas, das 7 às 17. E enfrentamos, já a essa hora da manhã, um trânsito pesadinho na Dutra, enquanto atravessamos Guarulhos. Nosso destino, Passa4, um município mineiro, limítrofe dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, dista 260 km de Sampa. A cidadezinha abriga - coisa boa! – 15 mil almas. Em razão da forte vocação religiosa do povo mineiro, sinto vibrando no ar uma certa carolice. Tal suposição comprova-se acertada porque, ao passar ao lado duma cafeteria, na rua principal, escuto, com esses ainda bem atilados ouvidos, um animado bate-papo entre dois senhores, acomodados em uma das mesas postas na calçada. Não versava a conversa sobre futebol, política, tampouco mulher. Discutiam, isso sim, sobre a probabilidade dum conhecido deles ser nomeado secretário de bispo, uai. A cidade com suas ruas planas e empinadas ladeiras emana uma energia tranqüila, mineiramente sossegada. Ipês e paineiras enfeitam de amarelo e rosa as esquinas e praças da cidade. Encontramos Rodolfo, nosso guia e um dos proprietários da Operadora Harpia, com sede no casarão, como é carinhosamente chamado o Hostal Harpia. Naturalmente simpático e cordial, o aquariano nos deixa bem à vontade. Tanto que logo me sinto super em casa na centenária construção que remonta ao século retrasado! Por indicação sua, almoçamos no restaurante de Dª Filhinha, situado na rua principal, a Ângelo D’Alessandro. Comida caseira, os PF’s podem ser servidos tanto em prato raso quanto em prato fundo (!) ao preço de 8 e 9 reais respectivamente. No início da tarde, uma Kombi carregada de mochilas cargueiras nos deixa na garganta do Embaú, mais precisamente, num ponto conhecido como Toca do Lobo onde tem início a travessia ao longo da Serra Fina. Esta parte das serranias da Mantiqueira deve seu nome às estreitas cristas que partem dos diversos picos existentes na região. O término da pernada será na garganta do Registro, já em Itamonte, município também mineiro, distante uns 30 e poucos km de Passa4. Iniciamos a caminhada às 15 e 30, percorrendo, inicialmente, uma trilha limpa e plana aberta dentro dum bosquete onde abundam arbustos e árvores de pequeno porte. Provavelmente uma floresta do gênero ombrófila, alta montana (que tal eu, hein, usando esse linguajar?). Cruzamos o rio Capim Amarelo, por cujo estreito leito, coberto de pedras, escorre uma água limpinha, limpinha. Aproveitamos pra encher garrafas e cantis antes de iniciarmos uma subidinha safada de íngreme que conduz à base do morro do Quartzito onde, por decisão de Rodolfo, acamparemos. A estratégia dele é impecável. Pernoitando aqui, poupa-se o lombo da gurizada, evitando, assim, carregar garrafas cheias de água, caso continuássemos até o colo do Capim Amarelo, próximo point de acampamento. Pousando aqui, a água a ser utilizada hoje na janta e, amanhã, no desjejum, pode ser facilmente obtida. Basta apenas descer um barranquinho. Nem bem 20 metros abaixo, verte uma fonte fazendo de bica uma bela duma folha bem verdinha! Quando largamos as mochilas no chão, o sol já está praticamente “entrando terra adentro”. O horizonte, tingido de vermelho, atiça nosso fotógrafo Fabiano que se põe a clicar enlouquecidamente a banda ocidental do planeta. A leste, no fundo do vale, cintilantes luzinhas apontam na paulistana Cruzeiro. Nossa pequena expedição tem mais carregador do que cliente, hehe, já que turistas apenas eu e Lili. Willian, Marcelo e Fabiano, sem contar Rodolfo, compõem o staff. Se bem que Marcelo e Fabiano "estão" carregadores. E de primeira categoria! Marcelo, um antropólogo mineiro, dono duma prosa fluente pra caramba, é dotado dum espírito gozador que arranca amiúde risadas de todos nós. Fabiano, cinegrafista, é, nada mais nada menos, “de Bagé!!” Hahahaha!! Oigatê, tche vivente! Vivendo em Brasília desde piá, mais parece baiano que gaúcho, dada a lerdeza com que se move e fala, hehe. Caladão, seu humor nada óbvio se manifesta sem pressa...tudo pra fazer jus ao seu espírito abaianado. Willian é o único do grupo que ainda permanece na casa dos 20. Por envergar tão nobre nome, o mesmo do herdeiro da coroa britânica, foi por mim apelidado de Príncipe ou Sir. Convém esclarecer, contudo, a sutil diferença entre as duas grafias. Graças à ousadia lingüística de seus genitores, que faria muito filólogo inglês babar de inveja, o nome do nosso guri finda, prestem atenção, com ‘n’. Por fim, Rodolfo, conhecido como Zangão Dourado da Mantiqueira, deve seu apelido, a um, ao seu gênio forte, um tanto quanto bravio que, vez por  por outra, segundo Fabiano, escapole. E não sem justa causa, oxente! E, a dois, à gula das zanguetes, moçoilas passaquatrenses que avoam até o Casarão em busca do mel com que o generoso rapaz as alimenta. No sul do país, conhecemos tal entrevero por "chamar na chincha" mas aqui em Minas a coisa é mais requintada, portanto, há que se respeitar e falar um bonito palavrório! Já o Dourado é por conta das arruivadas melenas, das sobrancelhas e dos cílios claríssimos. Estabelece-se, naturalmente, uma relação das mais descontraídas entre nós. Todos estão na mesma sintonia: curtir a natureza e viver a vida com alegria. Pra culminar a vibe perfeita que vem rolando desde que saímos de Passa4, uma janta tudo de bom nos é oferecida: penne mais lombo de porco Naia com molho de laranja e castanha do Pará. Tudo isso regado com um honesto Malbec argentino. E a noite não poderia estar mais charmosa! Uma lua brilha quase cheia num céu imaculadamente azul. Oxente, coisa boa esse trem que é a vida, sô!