quinta-feira, 11 de dezembro de 2003

Fiasco no Glaciar Torre

No quarto dia, o guia me busca, cedinho, 7 horas, na pousada, para irmos ao Glaciar Torre com a perspectiva de escalar paredões de gelo. Há duas trilhas que conduzem ao lugar: uma, a já conhecida senda que dá na laguna Capri e, outra, pelo vale do rio Fitz Roy. Escolho, por supuesto (quando volto de uma viagem ao estrangeiro, incorporo certos estrangeirismos, caro leitor), esta última, pois a outra já estava pra lá de calcorreada. Fácil de trilhar, esta parte do passeio foi barbadésima, além de a paisagem ser incrivelmente linda: de um lado, os já nossos conhecidíssimos bosques de lengas e ñires; do outro, a visão do cerro Solo, que eu amo de paixão, me acompanhou uma boa parte do trajeto. Pelo caminho vou descobrindo várias flores, totalmente distintas das que há no Brasil: miúdas, delicadas (como resistem ao inclemente vento?!) e de cores variegadas, tudo é muito discreto, há que se ter olho pra vislumbrar, escondidinhas no meio de arbustos, sapatinhos de vênus, embora os botões de ouro, nada tímidos, exibam com despudor seu amarelo. Já com o neneo, uma mata espinhosa, há de se ter cuidado. E lá vou eu, bem faceira, atrás do guia, Matias, deslumbrada com a liberdade e silêncio que o vale me proporciona. Chegamos ao acampamento Bridwell para nos juntarmos ao grupo de seis pessoas que também irão ao glaciar Torre. Pra variar, um casal de austríacos percebe meus apuros num trecho pra lá de difícil e me auxilia gentilmente. Saímos do vale e, para atravessar o rio Fitz Roy, temos de fazer uma tirolesa (jamais havia feito esse tipo de esporte), que consiste em uma corda suspensa sobre o rio onde a gente se engancha até atingir a outra margem, proeza que realizo em dois segundos (sou inclusive aplaudidíssima pelos meus companheiros que me acham muito hábil, mal sabendo eles que havia sido a adrelina do medo que me pôs veloz!). Bordeamos a laguna Torre, com características paisagísticas semelhantes às das lagunas Sucia e de Los Tres, diferenciando-se, contudo, por um bosque, em sua margem esquerda, que borda de verde esta paisagem árida. Já dá para se enxergar nitidamente a impressionante língua de gelo do glaciar Torre. Não encontro maiores problemas enquanto o passeio transcorre no bosque, super tranqüilo, tanto que entabulo conversa com a austríaca no meu inglês estropiado. Aqui tenho de abrir um pequeno parêntese para discorrer sobre minha fobia de altura, descoberta quando estava com 40 anos, ao subir uma escada de cinco degraus. Desde então, me preservava o que podia. Até fazer esta viagem, houve ocasiões em que tive de enfrentar lugares altos (tipo pontes de arame e passarelas sobre despenhadeiros com altura máxima de ..... 4 metros), entrando em pânico total, empacando no meio do caminho, e voltando ao ponto de origem, rastejando que nem lagarto em total descontrole. Bueno, retornemos: ao sair do bosque entramos numa trilhazinha pedregosa onde mal cabem meus dois pés e, pra mim, evidententemente, altíssima (deve ter se tanto uns 20 metros de altura). Lá embaixo, na laguna Torre, em suas águas geladíssimas, boiam grandes pedaços de gelo. Começo a suar e sinto o pânico avinagrando até então meu despreocupado estado de espírito. Empaco e declaro ao guia que ele me ajude porque estou louca de medo de escorregar (o resto do grupo nem aí pra altura, caminha, posso dizer, que nem cabritinhos com a maior desenvoltura). Resultado: mobilizo os dois guias. Os rapazes, gentis, me incentivam conversando comigo além de segurarem minha mão até que eu consiga sair daquele trecho infernal (na verdade é bem curtinho porém pra mim foi uma eternidade, acrescido do terrível pensamento de que eu teria de enfrentá-lo na volta). Suspiros de alívio quando atinjo a morena do glaciar Torre onde calço os grampones e recebo instruções dos guias sobre como usá-los. Gente, vocês podem não acreditar, mas a paisagem havia mudado to-tal-men-te!! Eu havia iniciado o passeio com sol tanto que usei manga curta até o acampamento Bridwell, e, agora, faz frio mesmo, o céu completamente cinzento, pesado de nuvens, e aquela brancura azulada inacreditável! Qualquer coisa de lindo e amedrontador, fa-bu-lo-so!! E lá vou eu, agarrada na mão do guia porque há gretas no gelo e o medo de cair dentro delas bate de novo. Brinco com ele dizendo que, embora peça sua mão toda hora, não se assuste, pois casamento não faz mais parte de meus planos; claro está que ele sorri polidamente de minha sem graça piadinha (repito durante o passeio várias e diversas vezes tal malice....tsk, tsk, tsk....atribuo tal atitude ao meu estado nervoso). Bueno, nem bem percorridos 100 metros daquela brancura gelada (confesso a vocês que mal apreciei tal espetáculo tamanho o desgaste emocional que sofri), quando me dou conta de que ainda terei de enfrentar uma escalada sobre uma parede vertical de gelo. E para me equilibrar, usaria além dos grampones apenas um piolet. Desisto diante de tal magnitude!! Comunico ao guia a minha falta de condições para continuar o passeio, ele tenta me dissuadir, mas me mantenho firme. E a volta, gente, a volta é outro inferno, apesar de termos usado um caminho diferente - segundo o guia - mais fácil (só se é pra ele, arre!!). No tal trecho de 20 metros de altura com meio centímetro de largura, só escuto ele me dizendo bem enérgico “de costado, de costado, señora”. Ai, meu Jesus, que meeedoooo!! Finalmente, alcançamos a parte dos bosques e daí tudo volta a ficar azul nos dois sentidos: o mental e o ambiental já que o radioso sol volta a brilhar sobre nós. Descanso um pouco no acampamento Bridwell, como o lanche que havia levado (sanduíche de pernil com tomate e alface acompanhado de todinho). Se mais tempo não fico recuperando minhas forças, atribuo ao enxame atordoante de mosquitos. Volto sozinha pelo mesmo caminho, chegando a Chaltén lá pelas 17 horas. Tomo um relaxante banho de banheira enquanto beberico um uisquinho (sim, sim, meu quarto é equipado com um banheiro trilegal). Assim, bem limpa e perfumada me entrego às mãos de uma hábil massagista, agendada, sabiamente, no dia anterior. As agruras enfrentadas neste dia escorrem mesa de massagem abaixo. Estou eu pronta para outra aventura, pois então!

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