domingo, 14 de fevereiro de 2010

Subindo o rio Cauaburi

Pois não é que dormi super bem na rede? Muito mais confortável que dormir em barraca. Vão de carona conosco, além de 4 yanomamis, Deisi. Embora casada há três meses com um índio baré, a indiazinha de 18 anos, bem bonitinha, é cortejada pelos outros índios. Conta que é a netinha do papai. Peço explicações e sou inteirada que seu Julio, pai de Beto, é, seu tio-avô. Também de carona, uma conterrânea, Flavia, enfermeira, natural de São Luiz Gonzaga. Vai ao encontro do namorado, um tenente responsável pelo pelotão do Exército, sediado alguns quilômetros distante da comunidade de Maturaká. O destino de todos é a boca do rio Maturaká. As duas contam que os seus homens vão buscá-las de canoa pra levá-las até a aldeia. Pelo visto os tarzans aqui não usam como veículos cipós pra conduzirem suas janes. A aldeia yanomami, com 2.000 habitantes, tem uma certa infraestrutura, mesmo assim a maioria das casas é de palha, exceto algumas poucas de madeira e outras de alvenaria. Sei disso conversando com os carregadores porque nossa entrada em Maturaká está proibida. Pra visitá-la só com convite do cacique Joaquim. Flavia conta que em São Gabriel há um surto de malária, confirmado por Armindo, quando retornamos à cidade. E o local onde as larvas se desenvolvem localiza-se, justo, num poço de águas paradas, perto da casa onde os yanomamis se hospedam quando em visita à cidade. Rola um falatório de que em Maturaká também há focos de malária. Aliás, muito comum, nessa região, pessoas infectadas pela fêmea do carapanã, mosquito do gênero Anopheles, vetor dessa parasitose tropical, cuja maior atividade ocorre no crepúsculo e ao amanhecer, de preferência no interior das residências, embora haja também contaminação ao ar livre. A gravidade dessa praga é mensurada em cruzes, à semelhança da tuberculose. Partimos às 9 na voadeira, uma embarcação de alumínio, com motor de popa de 40 hp, onde se acomodam 12 pessoas, afora os 400 litros de combustível e mais um tanto de alimentos e equipamentos. Armindo, piloto experiente em tais cursos d’água, atravessa sem maiores problemas, nas duas primeiras horas iniciais, os igarapés Yá-Mirim e Yá-Grande até desembocar no Cauaburi, rio que coleta vários igarapés, dentre eles os dois que deixamos pra trás. Como o rio se encontra na vazante, afloram em seu leito blocos de rochas, troncos e galhos de árvores caídos nas margens e arrastados pela correnteza até o meio de seu curso, o que dificulta em muito a navegação. Em certos trechos, a lâmina d’água não ultrapassa 50 cm, assim frequentes os rec rec da quilha do barco raspando o solo arenoso deste corredor fluvial. Árvores com belas e delicadas flores róseas predominam nas margens. Suas pétalas caídas na água colorem as águas escuras do rio. Entretanto, surge uma que outra árvore cujas flores amarelas quebram a hegemonia da floração rosada. Muitos buracos redondos, cavados pelos caranguejos nos barrancos do rio. Na época da cheia, são ocupados, contudo, por ninhos de andorinhas. Pendem dos galhos de certas árvores curiosos ninhos em formato cilíndrico, tecidos pelos xexeos, pássaros de plumagem negra e amarela. Sabiamente protegidos, localizam-se, assim, fora do alcance de formigueiros ou vespeiros. Apesar do céu nublado, o calor é de fritar bolinho. Dois manguaris de plumagens cinza-azulada e branca (espécie de garça) voam graciosas sobre o rio, acompanhando-nos uma boa parte do trajeto. Em certos trechos, nota-se nitidamente, que os barrancos das margens não são formados apenas por areia mas entremeados por camadas de folhas. Uma chuva forte, cuja duração não excede mais que 15 minutos, obriga-nos a usar uma lona azul como proteção. Eli usa o pé pra servir de estaca, impedindo, assim, que a proteção de plástico nos sufoque. Ninguém se aborrece com o tosco arranjo, tá todo mundo de boa. Fumacinhas de evaporação evolam-se do rio após o chuvaral. Tô tão feliz, mas tão feliz que bate até um medinho bobo. Vá que meu coração estoure de tanto bem estar, hein? Deixa de ser boba mulher, sem medo de ser feliz, uai!! No meio da tarde, eis a magnífica serra do Opota (opo, em yanomami, significa tatu; ta, serra), vulgarmente apelidada de serra do Padre. Tal denominação irrita os índios. Não admitem seja ela conhecida por tal nome. Como explica Junior, primo de Armindo, “nós estamos aqui muito antes desses padres”. E não pára mais o festival de serras que se sucedem umas às outras, sobressaindo na paisagem a serra do Baruri, em cuja retaguarda se esconde o mítico Yaripo, ou pico da Neblina, e o Pirapucu. Revelam, ao contrário da maioria das outras serras, extensos trechos de paredões pelados de vegetação. Mais adiante a verdejante serra do Barro e a do Jordão, nascente do igarapé de mesmo nome cujas águas claras e frias encontram um contraponto nas escuras águas do Cauaburi. O Opota, já imerso no lusco-fusco da tarde que cai, brinca de esconde-esconde nas mis curvas traçadas pelo rio. Um cheiro gostoso de flor misturado com terra molhada evola das margens. Eu rio à toa. Às 19 horas, aportamos numa prainha onde há um sítio de propriedade de duas famílias yanomamis. Deise traz num prato carne de tatu e tucumã pois sua avó se encontra visitando alguns parentes que aqui vivem. Provo um tucumã, de textura meio farinhenta. Nada de muito interessante seu gosto. Duas índias trazem cestas de cipós pra vender, artesanato que recuso pois não apresenta maiores atrativos. Sobre a fogueira uma panela com arroz e linguiças fincadas em gravetos derramam sua gordura sobre o fogo. Após a janta, sentados em canoas emborcadas, conversamos e fumamos cigarrinhos, caprichosamente, enrolados por Deisi. Boa demais essa vida, não fossem as mariposas noturnas que teimam em visitar o interior dos meus olhos quando acendo a lanterna. Os índios preparam a brejera, fumo misturado com cinza, algodão e água, colocado entre o lábio e o maxilar inferior. Em linguagem yanomami significa pee (tem til nos 2 "e" mas o teclado, bem burro, só aceita em cima do "o" e "a"). Servem-se dela pra minimizar a fome. Originários da Venezuela, o povo yanomami adentrou o território brasileiro, espalhado hoje em dia pelo Amazonas e Roraima. Há diferenças de sotaque conforme a localidade onde estão arraigados. Seu idioma, meio anasalado, lembra na cadência o chinês. Aprendo algumas palavras da língua local como parika, bebida alcóolica preparada pelos pajés para cerimônias especiais, sua, mulher, xita, homem e naka, irmã. Porém tal tradução é reducionista porque cada vocábulo tem um signficado bastante elástico. Quando tento falar seu difícil idioma, corrigem com energia minha péssima pronúncia. Coaxar de sapos, grasnidos de patos e latidos de cachorros ecoam sob o céu estrelado, um convite pra ser admirado se estivéssemos deitados em redes. Infelizmente, há que se dormir em barracas hoje. Merda!

Um comentário:

Paulo Roberto - Parofes disse...

Nossa como eu gostaria de fazer uma expedicao ao PN!!! E um lugar que transborda cultura, basta ler seu relato e ver as fotos!
OBS: Dormir na rede é e sempre foi melhor que barraca ahahahaha
Tenho uma rede em casa em sampa!
Abracao e treina ai o idioma da indiarada rsrs
Em relacao ao Lica: Sensacional....sem palavras...