Saída do acampamento, na cachoeira do Tucano, às 8 horas cuja altitude é de 106 metros. Passamos por um trecho queimado de mato onde antes houvera uma roça de mandioca cultivada pelos yanomamis. Eles acenderam um acero que saiu fora de controle, pegando fogo na plantação. Foi, contudo, de pouca monta o estrago. Agora a coisa complica porque tem início um aclive já que o desnível até Bebedouro Novo, onde acamparemos, será de 764 metros. Daqui pra frente, portanto teremos uma trilha que se tornará cada vez mais íngreme, caminhando pela crista duma serra cujo nome Pepe desconhece. Ely, coitado, ganhou, ontem, bolhas em ambos os calcanhares e caminha com visível dificuldade. Quando as furou não as costurou (um método de drenagem que consiste em pegar uma agulha com linha, passando-a dentro das bolhas, e deixando lá dentro o fio pra secar o líquido). Marcelo, também, está com bolhas, devido aos coturnos militares que calça. Sua situação, contudo, é mais confortável que a de Ely porque fez o procedimento correto de costurá-las. A trilha mantém-se coberta de folhas secas e raízes. Enormes cupinzeiros pendurados nas árvores. Pouca claridade, somente algumas résteas de sol dão pinta na mata. A vegetação densa, formada pelas frondosas copas das árvores, impede que a luz solar incida com generosidade na floresta. Uma subida com uma pegada forte, um trecho plano, uma descida e assim vamos até o Bebedouro Velho onde aportamos às 10:24. Nos abastecemos de água num pequeno poço que se alcança após descermos uma senda bem íngreme. Por precaução, pingo algumas gotas de cloro na garrafa. Uma fundação de cimento e algumas estacas metálicas, abandonadas num canto, são vestígios duma tentativa feita pelo exército em construir um posto nesse paradouro. Irritados, os yanomamis estrilaram motivo por que a obra não foi avante. Avista-se daqui outro ângulo da serra do Baruri com seus paredões pelados. Uma pena que a névoa que a envolve não permita uma boa foto. Os yanomamis e Pepe usam botas sete léguas pra se proteger de botes de cobras. Aliás, os garimpeiros, igualmente, usam esse tipo de calçado como proteção ao ataque das víboras. Todos que transitam pela selva, temem demais esses bichos. Se mordidos, babaus, baterão com a cola na cerca, porque soro antiofídico só em Maturaká ou em São Gabriel. O ruído feito por certas árvores muito altas, como a peroba, lembram roncos de animais. Uma coisa impressionante de se ouvir! Após uma hora caminhando, paramos na Boca do Gavião, porta de entrada pra serra de mesmo nome onde, segundo Pepe, houve atividades de garimpo quando a mineração ainda não era proibida por essas bandas. Agora o caminho se faz plano, sem muitos obstáculos até a Cutia, onde chegamos às 13 horas. Uma breve parada, mais necessária pros yanomamis descansarem do peso que carregam. Pepe Legal joga em três posições: é guia, carregador e cozinheiro. Considerando a limitação da comida oferecida (arroz, massa, feijão e calabresa), consegue torná-la apetitosa. Pode ser ainda que a fome seja o melhor tempero porque após as duras caminhadas, essa é a única refeição decente do dia, haja vista que o desjejum consiste de mingau de aveia, leite, café e bolacha, e o almoço, duma frugalidade franciscana, compõe-se das indefectíveis bolachas, regadas a suco. É pra inchar o estômago mesmo, hehehe. Enquanto caminho, escuto as copas das altíssimas árvores farfalhando ao vento, embora quase não se sinta seu movimento dentro da mata, a não ser por uma esporádica brisa que agita, delicadamente, a vegetação. Incrível, a densa floresta atua como uma poderosa muralha à ação invasiva das correntes de ar. Pra agitar as entranhas desse reino vegetal, só um tufão! Barulho dum pássaro cujo ruído lembra o duma serra. Galhos partindo-se. Será uma onça me seguindo? Ai ai ai. Depois duma subida mais áspera, largamos as mochilas e nos sentamos pra almoçar no paradouro do Macaco onde chegamos às 14 horas. Quando a gente pára, pequenos insetos, atraídos pelo odor de sal destilado pelo suor, entram nos olhos... um saco! Após o almoço, enfrentamos nova subida até o paradouro do Romualdo cujo aclive é mais empenado que o da etapa anterior. São quase 16 horas e faço uma pausa pra apreciar uma interessante formação rochosa que lembra as patas dum leão, disposta sob uma concavidade rochosa coberta de limo. Pepe Legal aponta, entre as inúmeras árvores ao longo da trilha, a paxiúba, uma palmeira de tronco fino cujas raízes aéreas formam um tripé de diversas pernas. Daí a lenda de que essa árvore anda pela mata, segundo contam os yanomamis. Seu tronco cheio de espinhos é usado pra ralar a mandioca. Às 17 horas, chegamos, enfim, ao Bebedouro Novo, numa trilha onde as subidas são mais frequentes que as descidas, entremeada aqui e ali por breves trechos planos. Somos recompensados, após a extenuante caminhada, com a visão da face sul do Pico da Neblina, de topo piramidal, e da do 31 de março, cujo cume, bem sem graça, é achatado. Fazendo jus ao nome, o Neblina encontra-se envolto por filamentos de nuvens que, não obstante, permitem seja ele razoavelmente visualizado. Perpendicular a esses dois picos, localiza-se a serra do Camelo, uma formidável estrutura rochosa cujo formato lembra o daquele animal. Exibe em seu escuro paredão sul, zonas peladas cuja tonalidade clara evidencia a cobertura de líquenes brancos. Tão lindo ele! Bem mais que o Neblina. Preferiria, agora que o conheço, subi-lo ao outro mais famoso. Mas os encantos do Bebedouro Novo não param por aqui. O rio Cuiabixi, cuja cabeceira nasce na Venezuela, passa a 200 metros do acampamento e pra lá nos dirigimos. Suas águas frias e límpidas são um convite ao banho depois da longa pernada de 9 horas sob a tórrida temperatura que enfrentáramos ao longo do dia. O rio me faz lembrar aqueles que atravessam os canyons de Praia Grande, município do estado de Santa Catarina, famoso por seus impressionantes peraus. Por entre as inúmeras pedras arredondadas que adornam seu leito, eis uma cascatinha, formando deliciosa piscina de hidromassagem, onde, imersos, Marcelo e eu relaxamos, deixando jorrar o forte jato d’água em nossas mal tratadas costas. Após a janta, já deitados em nossas redes, peço a Pepe que conte uma de suas estórias. Ele não se faz de rogado, acomoda-se melhor em sua rede e, com seu sotaque gostoso de nortista, conta o causo dum certo general que resolveu oferecer um piquenique a sua mulher e filha no topo do Neblina. Para tanto, deslocou de São Gabriel um pequeno contingente de soldados como suporte a tal festim. E Pepe, malicioso, acrescenta que a comilança tinha do bom e do melhor. Até uva, gente! Caramba!! Depois dessa, pego meu saco de dormir pois uma aragenzinha fria se faz sentir. Afinal, estamos a 870 metros acima do nível do mar. Não demoro muito a pegar no sono, embalada pelo conversê dos yanomamis naquela sua estranha linguagem e pela cantoria dos sapos. E vá dizer que não é bom esse tipo de indiada!!
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