Outra noite mal dormida. Se preguei os olhos foram apenas por umas 3 horas, se tanto. Brizola aparece enquanto estamos nos aprontando pra deixar o acampamento. Pede um analgésico pra Cobal, amigo seu. O motivo – bizarríssimo – deve-se à queda do garimpeiro que se estatelou de bunda, amassando as bolas nas pedras, pode? No acampamento-base, umas flores lindas, a semelhança de lanternas vermelhas, exibem, tais quais pingentes, nas extremidades, delicadas florações brancas . Partimos às 8 e 30 pra Bebedouro Novo, em meio a um céu nublado. Agora que já não tenho a ansiedade da vinda, curto mais a paisagem e os sons que povoam este rincão amazônico. A mudança na vegetação é nítida enquanto se vai perdendo altitude: as palmeiras rareiam, a variedade e quantidade de flores, que se concentram no trecho Neblina-Mirante, onde a forte incidência da luz solar permite uma intensa floração, deixam de colorir a paisagem e as exuberantes bromélias, cativas dos campos de altitude, são deixadas pra trás. À medida que penetramos no confinamento da zona escura e cerrada da floresta, torna-se mais audível a vibração dos seus sons. É algo indizível, só estando aqui pra saber. Raros os momentos de absoluto silêncio pois logo são preenchidos pelo matraquear das gritadeiras araras canindés; dos quase imperceptíveis ruídos de folhas que, num balé gracioso, evoluem no ar antes de pousar no chão; do estrondo de árvores desabando; de galhos partindo-se; do sonoro pio de aves e cricrilar de insetos; de cascas de árvores se soltando dos troncos. Uma sinfonia de barulhinhos bons. Não à-toa, Villas Boas pirou o cabeção e deu uma guinada de 360º, alterando sua concepção musical após uma estadia de alguns meses, embrenhado na mata amazônica. Alcançamos Bebedouro Novo às 15 horas. Suada e suja após quase 4 dias sem banho, vamos Lili, Marcelo e eu até o rio Cuiabixi. Lavo o cabelo, pedindo emprestados o xampu e o condicionador da companheira. Enquanto lá estamos, Messias aparece. Quando o jovem yanomami percebe minha nudez, vira, envergonhado (?!), os olhos, mantendo-se, durante o tempo todo de sua permanência no rio, de costas pra mim. Salvo quando vai buscar água pra encher as garrafas, num ponto mais acima do que nos encontramos, quando, então, arrisca um olhar fugidio em minha direção. Que malandrinhos esses guris. Não perdoam nem uma velhota como eu, hehehe. Limpinha e revigorada, retorno ao acampamento, mas a quantidade das miudinhas e ruivas abelhas aramãs, obriga-me a procurar refúgio dentro da nuvem de filó rosa que envolve a rede, onde estico o corpo com satisfação. E assim, fico ali, protegida daquelas pentelhudas, enquanto converso com Ely sobre fotografia. Nossos papos sobre o assunto são intermináveis. O pobre querido continua com os pés em frangalhos. Dá dó de olhar seus calcanhares inflamados. Nem sei como ainda consegue caminhar. Tem um quê de estóico essa criatura. Em seu lugar, eu há muito teria jogado a toalha. Lili, deitada na rede ao lado, com voz pausada, conversa com Marcelo sobre suas andanças por este mundão. Moça mais viajada não conheço. E segundo alardeia, deve ser uma cozinheira de mão cheia. Lili, me aguarde, viu? Ainda vou a Minas provar de teus quitutes! Marcelo, desde que iniciou a expedição, pegou no meu pé. Vira e mexe imita a personagem Bozena, do seriado Sai de Baixo, gozando de meu sotaque gaúcho com um “porque lá em Pato Branco”. E arremedando minha insaciável curiosidade (reconheço que atordoo um pouco os guias com perguntas mis), cria uma frase que vira bordão e motivo de hilariedade geral: “Pepe, uma flor é vermelha por quê? Por quê, Pepe a flor é vermelha?” E não pára por aí o espírito gozador do fofo. No decorrer de nossa convivência, simulou um flerte comigo, fazendo bico com os lábios, num simulacro de beijinho. Nem dá pra acreditar que esse palhaço, doutor em matemática, obteve seu grau, defendendo tese sobre a mecânica dos corpos celestes. Chique né? Orlando, um dos carregadores yanomamis, vermelho de febre, provávelmente, causada pela malária, pede um analgésico. Assim, forneço-lhe os últimos que trago comigo pra amenizar seu desconforto térmico. Pouco importa se eu fico sem. Ele é que tá precisado, não eu. É dureza a vida de quem habita esta floresta, podem crer! Após a janta, Pepe Legal, com seu bom humor habitual, narra algumas estórias de sua vida. Abandonando a casa paterna aos 14 anos, rodou pelo Pará fazendo biscates, quando, dois anos depois, foi trabalhar num garimpo no alto Tapajós, ele mais um irmão. Fincou raízes durante 6 anos até o assassinato desse seu mano. O motivo Pepe não revela. Presumo que tenha sido ou por desavenças de dinheiro ou por causa dum daqueles tragoléus tão comuns entre garimpeiros. Foi daí que abandonou a garimpagem a pedido de sua mãe. Descasado, suas duas filhas vivem com a ex-mulher em Manaus. O gesticulante guia, animado por nossa atenção, explica entre coçadas na cabeça, gesto bem típico seu, que o barco vindo de Manaus, quando o rio Negro tá cheio, demora três dias pra chegar a São Gabriel. “Um fandango só, música ao vivo, três refeições (enche a boca, satisfeito, ao falar do rango), camarote a 800 real. E quem tem pouca grana, usa o redário." Interrompo e indago quanto custa a rede. "240 conto", responde, ajeitando as bolas, naquele típico gesto tão ao gosto do povo masculino. E, ignorando a interrupção, prossegue, imperturbável, " no deque superior se joga cartas", acrescenta, com um sorriso levemente nostálgico. “Quanta gente, Pepe, cabe no barco?”, indago eu novamente, dando corda de modo a evitar que o papo esmoreça. “Ah.....acomoda bem umas 200 pessoas”, responde ele com seu sotaque gostoso de nortista, justificando que "quando o rio tá baixo, demora uma semana pois o barco à noite vai atracando nas praias”, finaliza ele, coçando pela enésima vez a cabeça. E me inteiro que, além das paradas noturnas, há as habituais: uma em Barcelos e outra em Santa Isabel, onde quem quer desce enquanto o barco descarrega mercadorias e pega nova carga. Bacana demais deve ser essa trip, né? Aos apressados - pra quem tem urgência urgentíssima, o lance é ir de avião mesmo - sempre resta o recurso da lancha expressa cujo trajeto leva 24 horas, ainda que esteja o rio na vazante. Tão bom saber disso tudo ao vivo e a cores! A robusta lua crescente ilumina a clareira situada adiante da armação onde nossas redes estão penduradas. Eu espicho o pescoço pra curtir melhor sua luminosidade enquanto me aninho no saco de dormir já que o frescor da noite exige tal aconchego. E o conversê perde seu vigor até cessar por completo. Que peninha....não me incomodaria nem um pouco de escutar Pepe Legal desfiar seu rosário de causos a noite inteira. Seria uma novena pra lá de interessante, hehehe. Infelizmente, até os pássaros obedecem ao toque de recolher, aqui, nas entranhas da mata amazônica, acabando-se o que era doce de ruidinhos bons....por enquanto!!
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