sábado, 13 de fevereiro de 2010

Escaramuças com órgãos públicos

Chegou, enfim, o grande dia! Um baita solzão e aquele calor de antecâmara de inferno. Estou como o diabo gosta. Deixamos São Gabi, mal acomodados na carroceria dum toyotão bandeirantes, a la retirantes nordestinos. Repleta de tralhas (400 litros de gasol pra voadeira, uma enorme caixa retangular contendo comida e utensílios diversos, mais mochilas) e pessoas (além de nós quatro, são passageiros, ainda, Branco, Pepe, Beto, Deisi e Messias), o jipão, conduzido pelo hábil motorista Coelho, roda pela BR 307 rumo ao km 85 do Parque Nacional do Pico da Neblina, onde embarcaremos numa voadeira rumo à boca do Tucano (um dos igarapés que alimenta o rio Cauaburis, afluente do Negro), ponto de partida da caminhada rumo ao topo do Neblina. A estrada de terra vermelha não é das piores, salvo quando chove, explica Branco. Daí é um lamaçal só. Paramos, pras indefectíveis fotos, na linha do Equador, divisor imaginário entre os hemisférios sul e norte. Marcelo, enquanto urina, balança o corpo pra lá e pra cá, teatralizando com tais gestos que ora se encontra no sul, ora no norte. Revela-se, dessa forma, o palhaço do grupo. Adorável, aliás! Quando chegamos ao posto de fiscalização da FUNAI, no km 55, após hora e meia de viagem, uma dezena de soldados do Exército, portando fuzis, faz barreira, impedindo nossa entrada no parque. E aí começa a confusão. O tenente, responsável pela soldadesca, nos explica, educadamente, que só poderemos continuar viagem com autorização de Zé Guilherme, diretor do parque, administrado, desde 2007, pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICM-Bio, sucessor do IBAMA quando da polêmica divisão desta autarquia federal. Armindo, um yanomami, pasmem, de olhos azuis, piloto da nossa voadeira e presidente da AYRCA – Associação dos Yanomamis do rio Cauaburis e Afluentes, se indigna. Não admite que ninguém impeça seus convidados, nós, de entrarmos em sua casa. Isso porque a reserva desses indígenas localiza-se no interior do Neblina. O bate boca resulta inútil. Voltamos, pois, a São Gabriel, alvoroçadíssimos, especulando sobre o que deu errado e enchendo de impropérios o chefão do instituto. Enquanto Branco, Armindo, mais Ely vão até a sede do órgão federal, encarregado de fiscalizar parques e reservas nacionais, eu, Lili, e Marcelo tratamos de almoçar e traçar um plano B caso nossa expedição resulte malograda. E aproveitamos pra tecer conjecturas que se revelaram estapafúrdias quando soubemos da verdade dos fatos. Mas bem que serviu pra nos distrair durante a tensa espera. Acontece que o Neblina se encontra fechado desde janeiro, motivo pelo qual, convocou-se uma reunião, no final desse mês, entre os líderes tuxauas yanomamis, cujos corpos foram pintados para o encontro, e a diretora do ICM-Bio, Silvana Canuto. Em decorrência, foi permitida a entrada de nosso grupo no parque. Contudo, sem nada assinado, só de boca. Enquanto estávamos em São Gabi, na sexta, dois madeireiros foram pegos com a boca na botija, extraindo, ilegalmente, madeira na região. Daí a presença do Exército. Retornamos à estrada, dessa feita, acompanhados de Zé Guilherme que seguiu em condução oficial, já que a autorização tinha de ser feita, em pessoa, pessoalmente, como diz um atrapalhado personagem criado pelo escritor italiano Andrea Camilleri. Infelizmente, a equipe sofreu um desfalque: Beto, o outro guia da expedição, filho de Seu Julio Lopes, tuxaua yanomami da comunidade Maturaká (as aldeias, hoje em dia, passaram a adotar tal denominação), furioso com o imbroglio, desertou da aventura. Peninha, seu grito de guerra “Nebliiinaaaa” não irá mais se fazer ouvir. Finalmente, às 17 horas, transcorridas 3 horas de viagem, chegamos ao km 85, onde está estabelecida a comunidade Tucana Yá-Mirim. Acampamos ali, porque a navegação no rio Cauaburis, em época de seca, durante a noite, torna-se bem arriscada, devido a enorme quantidade de pedras e troncos de árvores espalhados ao longo de seu leito. As redes, então, são armadas sob um telheiro de zinco. Eu, cabreira, armo com ajuda de Pepe Legal, por via das dúvidas, minha barraca. Sei lá se vou conseguir dormir a noite toda na balouçante cama. Minha experiência com redes, até agora, limita-se àqueles rápidos cochilos, cuja duração não ultrapassa um par de horas. Eu, Lili e padre Marcel, assim apelidado por mim, pois sua cara faz jus ao título, vamos nos refrescar no igarapé Yá-Mirim. Um bando de taludos besouros circula, zumbindo, ao redor de minha cabeça. Basta, no entanto, um piparote com os dedos pros insetos procurarem outra freguesia. Nos deitamos logo após a janta, exaustos de tantas emoções. O céu nublado revela vez por outra o brilho de pequenas clareiras de estrelas. E eis eu aqui nas, entranhas da floresta amazônica, embalada pelo coaxar de sapos e pios de aves. Tal sinfonia, ai ai ai, é quebrada, contudo, pelo desafinado coro de alguns roncos masculinos. Nem tudo, tsk tsk, é perfeito!!

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