segunda-feira, 21 de abril de 2014

Fogo nosso de cada dia

Pra quem faz trek os dias são cheios, já as noites são reservadas pra dormir. Não há muito o que se fazer no meio do mato quando a escuridão se impõe sobre o dia. Ademais, o cansaço provocado pelas caminhadas e pelos efeitos da altitude, te derrubam ao final de cada dia. Por isso não só deito como durmo cedo, motivo por que acordo invariavelmente de madrugada. Hoje não foi diferente. Desperto às 4 e 15 e consigo ir levando a vontade de urinar até as 5 quando então sou obrigada a levantar. Minha bexiga tá estourando. Valeu a pena sair do interior da barraca: a lua brilha no céu absolutamente limpo como se não houvesse caído, ontem, o maior toró de granizo durante 2 horas! O rumorejar do rio Chamkhar Cho é o único som no silêncio da madrugada. Quando deixo a barraca em definitivo pra tomar café, a clara madrugada cedeu espaço a uma bela manhã de primavera. Frio pra caramba às 7 horas, coisa de 3ºC! O chão ainda coberto de geada faz meus pés doerem tão gelado está. Da pêra que me foi servida no desjejum, dou o caroço a um dos cavalos. Nenhum deles quis saber da fruta. Da fogueira acesa por Dorji Horse sai uma fumaça acinzentada, produto do lixo incinerado diariamente todas as manhãs. Como não tenho nada pra fazer enquanto espero o desmonte do acampamento, volto minha atenção aos diversos corvos que se encontram ciscando ao redor. Se desse pra ter um cabelo igual à de suas luzidias plumagens pretas seria um arraso! Das sobras de arroz postas no chão por Dorji Cook, o bicho recolhe um punhado com o bico e voa até a árvore mais próxima, onde deposita em segurança os alimentos recolhidos. Comparo-os então a mendigos pois estão sempre pegando restos de comida alheia. Pema tem por hábito esperar que os rapazes ponham a carga sobre os cavalos para então partirmos todos juntos, com Dorji Horse um pouco à frente tangendo os bichos. Lá pelas tantas, os dois Dorji apuram o passo, gritam palavras de ordem pros animais e em 10 minutos se distanciam de nós. Thukten, entretanto, permanece em nossa companhia já que é o responsável por carregar a mochila com os apetrechos de meu almoço. O baixinho conversa sem parar. Admirável o seu inesgotável repertório de assuntos. Pema, que mais escuta do que fala, se diverte com a falação do pequeno Thuk, que usa boné com abas protetoras de orelhas. Sua voz agradável imprime pausas que conferem um leve suspense à narrativa. Eu adoraria saber o que ele tanto conta a Pema. Vez por outra me olha meio de canto. Não chega a ser um olhar desconfiado. Arrisco a dizer que ele sonda meu jeito de ser, com cautela, como se medisse meu humor à espreita, sempre, dalguma reação desagradável. Deve ter levado muitos foras nesta vida o querido guri! Quando deixamos o acampamento às 9 horas, a temperatura já aumentou pra 9º C, e o sol brilha firme e forte, suavizando um pouco a frialdade matutina. Continuamos a travessia no interior de bosque de pinheiros. Alternam-se subidas, não muito íngremes, com superfícies mais planas. Bem mais leve esta trilha que a de ontem. Um alívio, portanto, ao cansaço provocado mais pela altitude do que pela aclividade do terreno. Em certos trechos onde afloram rochas parrudinhas há necessidade dum certo trepa-pedra, mas tudo bem light. Nas partes da mata onde a vegetação é mais densa e o sol tem dificuldade em penetrar, há bastante acúmulo de gelo no solo. E, claro, lama muita lama! Sábio Thukten que veste botas de borracha de cano alto. À medida que ganhamos altura, passamos a percorrer encostas de montanhas, nos distanciando, dessa forma, do Chamkhar Cho. O sendero, em certos pontos, exibe ribanceiras que alcançam 30 metros de altura acima do nível do leito do rio. Passado uma hora de caminhada, volta a trilha a ficar rente à correnteza. Enquanto cruzo uma ponte, percebo deliciada que o rio está com-ple-ta-men-te congelado. Que legal!! Entre claros no bosque, avisto alguns picos do Himalaia com seus cumes nevados. Paramos para tea break às 11 horas. Pema, antes de comer, costuma atirar comida pro alto falando algo que soa “cho cho cho cho". Explica que se trata de oferenda a todas as coisas vivas. Outra subida, nada áspera, tem início. O que atrapalha é a altitude. Até Pema sente cansaço e aproveitas minhas paradas para fotografar descansando também. Entramos agora no que eles denominam “acima da linha das árvores”. Trata-se da zona de altitude acima dos 3.500 m onde os bosques de pinheiros começam a escassear. Vê-se agora, nas encostas das montanhas, não mais aquela compacta formação florestal de coníferas mas, sim, esparsas agrupações de pinheiros. Entre as árvores, vestígios da neve que ainda teima em cair mesmo sendo primavera. À medida que adentramos no vale Tshochung Chung, por onde caminhamos cerca duma hora, começo a avistar um semicírculo de montanhas nevadas no fundão do vale em forma de funil. É o Himalaia. O rio Chamkhar Cho, até então de corredeiras barulhentésimas, perde sua força e se torna um rio de planície, silencioso e raso, cujo leito apresenta-se coberto de pedriscos. Paramos para almoçar às 13 horas. Menu? Carne de porco, arroz, cogumelos ensopados e espinafre refogado com alho; de sobremesa, bergamota já descascada. Por causa do frio, meus dedos estão dilacerados pela psoríase. Está esfriando além de soprar um ventinho gelado. Do outro lado do rio, duas casas de pedras bem rústicas. Pertencem a pastores de yak. No inverno, eles, que moram no alto das montanhas, descem até o vale onde remanesce pasto para alimentar seus rebanhos de yak. Daí o motivo de terem construído as toscas habitações. Encontramos o acampamento em Domjung já montado quando lá chegamos às 14 horas. Embora rodeado por montanhas, algumas cobertas pelas neves eternas, o lugar não é tão bonito quanto o vale que atravessamos. A vegetação, escassa, é constituída por pequenos arbustos de folhas miúdas. Cobrindo o solo uma grama rala e descontínua. Começo a me dar conta que depois das 16 horas o tempo muda pra pior. Foi assim nos 2 dias anteriores e hoje não é diferente. No céu, as nuvens brancas já se exibem cinzas e aglutinam-se cada vez mais. Cai um pouco de aquaneve que se transforma em uma garoa inconsequente. Cada homem cumpre sua tarefa de final de tarde. Dorji Horse, após colocar nos focinhos dos cavalos embornais com a ração diária, desbasta pedaços de madeira que servirão de estaca pra amarrar os animais. Dorji Cook e Thukten, na barraca-refeitório, preparam a refeição. Pema e eu nos aquecemos ao redor da fogueira cujas belas labaredas não se inibem diante do fino chuvisco. Na janta, só belisco, embora a comida esteja, como sempre, deliciosa! A inapetência e mais uma dor de cabeça, miudinha, são efeitos da altitude. Estamos já  a 3.700 metros. Tanto que deito mais cedo do que o usual: 8 da noite. Não demora muito, escuto um poc poc no teto da minha casinha de lona: nova queda de granizo. Contudo, nem se compara com a de ontem. Durmo sem tardança sonhando que estou no cinema comendo pipoca, hehe

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