sexta-feira, 25 de abril de 2014

O banho de pedras quentes

Quando saio da barraca às 7 da matina, o que vejo? Cerração fechada, mal se distinguindo o contorno das montanhas em frente. Como se houvesse um muro acinzentado encobrindo tudo. E dale a trovejar. Desde ontem, ala putcha! Toró mesmo, nada. Apenas um gotejar, tipo chuvisco pinga-gota. Decorridas 2 horas, o nevoeiro praticamente se dissipou. Contudo, a umidade é fodástica e a temperatura deve estar em torno de 11º C. Partimos do acampamento Khamgi às 9 e 45. Uma subida contínua, cansativa, carcando as botinas num acidentado e super enlameado terreno dentro duma floresta de pinheiros compacta e úmida. Mas não pensem que estou reclamando, apenas um registro dos percalços da caminhada. Vibro, curto demais tudo isso, inclusive los perrengues. Hoje, infelizmente, é o último dia de trek....snifff. Ainda bem que os floridos rododendros voltaram a dar pinta, manchando de vermelho a mata. E os bambus, também, em quantidade impressionante! Não por acaso, no distrito de Bumthang, é comum confeccionarem cercas, casas e outros artefatos com este material. Após uma hora, castigando as pernas na íngreme trilha, chegamos a uma clareira onde fazemos uma providencial pausa. Hora do tea break. O tempo continua nublado se bem que as nuvens estão querendo se dispersar a leste. Mais uma vez, nos internamos na floresta, porém dessa feita o terreno não apresenta aclividade tão ríspida. De repente, a floresta de pinheiros desemboca num platô enfeitado por coloridas bandeirolas de oração onde alguns yaks pastam exibindo plácidas expressões. A paisagem é outra, bem diferente da que percorri durante estes 7 dias. Pradarias surgem pontuadas por suaves ondulações. Poucas são as árvores, arbustos há os de pequeno porte. Iniciamos a descida, já avistando ao longe a Vila Dhur, que se encontra a 2.900 m. À medida que baixamos, a temperatura torna-se mais amena e menos úmida. Durante o trajeto, vejo uma vintena de yaks sendo conduzidos por alguns homens e cachorros às terras altas. Com a chegada da primavera e do verão, os peludos necessitam viver em clima bem mais fresco. A quantidade de abrigos feitos ou de pedras ou de toras de madeira revela que os animais não são deixados ao léu. As rústicas moradias servem de abrigo aos donos dos rebanhos que dispensando, temporariamente, o conforto de suas casas em Dhur, ali se aquerenciam por alguns dias, a fim de cuidar dos animais. Entramos num desses abrigos onde uma velha senhora cozinha algo numa panelona disposta sobre um fogo de chão. Simpática, ela não considera invasiva nossa presença, tanto que nos brinda com um largo sorriso desdentado. Muito natural que onde haja gado, haja dogues. E os há, e muitos! Alguns furiosos, com espessa pelagem escura, amarrados a cercas, guardam as taperas. Na vila Dhur, de onde Dorji Horse é natural, vivem cerca de 1.500 pessoas, cuja principal fonte de renda é a pecuária. Cada família possui em média mais ou menos 50 cabeças de yaks, o que lhes proporciona razoável padrão de vida, haja vista a boa qualidade da maioria das residências. Algumas famílias, mais abastadas, como a de Dorji Horse, são proprietárias de caminhonetes. Entramos na vila e caminhamos por um emaranhado de becos e estreitas vielas, com Pema perguntando aqui e ali onde mora Dorji Horse. O arriero, em sintonia com seus cavalinhos, disparou na frente e nos deixou pra trás, hehe. Chegamos, então, à residência de Dorji. Com dois pisos, na fachada exibe desenhos de tigres, dragões, flores e outros símbolos relacionados ao budismo. Cozinha, banheiro, sala de visita e quartos ocupam todo o piso superior. A irmã de Dorji Horse, desembaraçada, fala alguma coisa de inglês, mas a mulher de nosso arriero apenas distribui sorrisos. Somos acomodados na sala de visita e nos oferecem de entrada arroz e flocos de milhos tostados mais chá e leite, seguidos do prato principal. Trata-se dum spagueti de cor escura, feita com trigo sarraceno, de largo cultivo na região. É uma comida tradicional de Bumthang, seu nome é putta. Após o almoço, despeço-me da família e a presenteio com uma barra grande de chocolate Lindt, providencialmente adquirida em Doha para situações como essas. Partimos. Com Pema à frente, percorro as vielas da vila. Passo pela frente do monastério e da escola pública cujo ensino abrange apenas o fundamental, ou seja, somente até o 6º grau. Dois aspirantes a monges, com suas vestes cor de vinho, jogam futebol. Os corvos passam voando baixo e seu crocitar soa como um lamento. Após 20 minutos de caminhada por becos e trilhas, chegamos ao moinho de farinha movido a água, retirada do rio Chamkhar Cho. Construído pelos aldeões, o moinho é partilhado por todos. Muito bacana constatar que, aqui no Butão, o espírito de coletividade é fortíssimo. Em 30 minutos, chegamos ao que será nosso último acampamento, montado em frente à ponte que une as margens do Chamkhar Cho. Justo ao lado do lugar onde deixáramos o carro há 7 dias atrás! Lá pelas tantas, como não podia deixar de ser, cai aquela chuvinha que nem bobo consegue molhar. O querido guia não desiste de tentar me compensar pelo malogro de eu não ter conhecido Hot Springs. Tanto que, ontem, contou que em Dhur os moradores têm o hábito de banhar-se em águas aquecidas com pedras quentes. Revela então que vão preparar e me oferecer tal mimo. Quando chegamos ao local do acampamento, ele me leva até um buraco retangular de cimento, ao lado do rio. Aponta que será aqui minha hot spring. Quando percebo a mão de obra que será encher a cavidade com água, catar gravetos pra fazer uma fogueira de modo a aquecer as pedras que serão colocadas no banheirão, agradeço comovida. Declaro que diante de tanta trabalheira - afinal todos nós estamos cansados -, eu os dispenso da graciosa oferenda. Pema nem insiste diante de minha recusa. E, assim, mais uma noite que durmo bem sujinha, hehe!!

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