quarta-feira, 23 de abril de 2014

De livros e árvores

Quando saio da barraca às 7, o solo está branquinho de geada, tanto que deve estar uns 4ºC. O lugar onde acampamos é lindo. Ao norte, a linda montanha Tshenjigang com suas encostas cobertas de neve. O dia lindo, céu azul com algumas nuvens aqui e acolá. Somente eu e Pema estamos à-toa, nos aquecendo em frente à fogueira, já que os demais homens cumprem suas habituais tarefas matutinas. A conversa recai em cremação, assunto pelo qual nutro interesse. O guia conta que das cinzas dos mortos misturadas à lama são feitas miniaturas de stupas. Colocadas, convenientemente, próximas a monastérios ou à beira de estradas recebem, dessa maneira, boas energias de quem por ali passa. O desjejum, servido ao ar livre, para que eu possa desfrutar da paisagem, oferece as gostosuras de sempre: uma fruta que pode ser bergamota, maçã ou pera, suco de maçã ou de manga, 2 torradas, mel e chá com leite. Tudo de bom! A barraca-refeitório, portanto, só é usada durante a janta. Já a pequena tenda que me serve de latrina, (consiste dum singelo buraco com um pedaço de graveto em forma de forquilha, sustentando o papel higiênico) uso-a de manhã e à noite. Temos acampados invariavelmente bem perto da margem do rio Chamkhar Cho, já que a trilha acompanha seu curso d’água desde que saímos da vila de Dhur, no primeiro dia de caminhada. Não são só moscas abundam no país, corvos há igualmente por toda parte. Não só no campo quanto nas vilas e cidades. Pitoresco ver guias e turistas butaneses com guarda-chuvas pendurados nas costas ou sendo carregados na mão durante o trek. Há 3 dias, as únicas pessoas indo também pra Hot Springs foram 4 jovens butaneses. E carregavam coloridos guarda-chuvas! Lembro inclusive de Pema, quando estávamos em Thimpu, ter perguntado se eu não gostaria de que ele levasse um pra mim. Bueno, com Pema à frente, portando nas costas sua inseparável umbrela, damos início ao antepenúltimo dia de trek, deixando o acampamento às 9 e 30. Após uma hora de caminhada, deixamos o árido vale de Tshochung Chung pra trás e já estamos percorrendo a trilha aberta na compacta floresta de pinheiros onde clareiras são raras. Essa parte da trilha é onde há trepa-pedras, muita lama e gelo cobrindo o solo. Onde há uma rústica ponte sobre o Chamkhar Cho, feita com tábuas, sem corrimão. Onde o rio volta a bramir, bem enfezado, porque voltou a ser de corredeiras. Onde os trechos de trilha ora são largos quando cruzam os bosques, ora são estreitos quando abertos no sopé das montanhas. Onde ora a trilha fica a mais de 30 metros do rio, ora fica no mesmo nível de seu leito. Onde há desmoronamentos – nada muito sério - de areia provenientes de encostas de montanhas. De tal forma estreitam a trilha que a reduzem a uma fina faixa de terra, delimitada por uma ribanceira com 20 metros de altura. E lá embaixo o destino, se o pé descuidado resvalar, é o leito empedrado e turbilhonante do rio. E, finalmente, onde os rododendros voltam a dar o ar de seu colorido vibrante e o bambuzal tece uma inextricável cama de gato com suas longas e finas varas. Isso que dá fazer trilha que não seja round trek. Tu vais e voltas pelo mesmo caminho. O bom é que se reconhecem os lugares como se fossem velhos conhecidos! Às 13 paramos para almoçar. Agarrada numa árvore, uma orelha de macaco enorme! Muito parecida com a que vi na floresta amazônica quando fiz o Pico da Neblina em 2010! Sentamos sobre troncos de árvores caídas. A mesa improvisa-se sobre uma pedra plana. Caso não haja, coloca-se a comida no chão mesmo. Dorji superou-se nesse almoço! Está maravilhoso: carne de carneiro, arroz, queijo com molho e finas fatias de batata levemente salteadas na manteiga. Sobremesa: bergamota. Tukthen faz questão de servir a comida a francesa. Como não fala inglês, gesticula bastante. Expressivo e desinibido, o guri se faz entender. Ele só come após eu terminar a refeição. Decorrida nem bem uma hora e trinta já estamos no acampamento Chok Chokma, montado na bela clareira onde lanchamos no 2º dia. Há hemlocks altíssimos, cuja altura atinge, pelos meus cálculos, uns 30 metros. Começa a cair uma chuvinha mansa, daquelas que não impede de se estar ao ar livre. Tanto que Dorji Horse continua a catar gravetos pra fogueira. Thukten lava os pratos do almoço à beira dum córrego. E eu faço meus alongamentos diários. Já deitada, confortavelmente, na minha barraca, dou uma olhada nas fotos e vídeos do dia. Da barraca-cozinha, escuto a conversa e o riso dos homens. É lá onde os Dorji e Thukten dormem, exceto Pema que, por ser guia, tem sua barraca. O humor deles é um tanto infantil como venho observando. Pema, por exemplo, adora dizer que está doente. Aí quando tu perguntas, alarmada, o que ele tem, o safado abre um sorriso maroto e, candidamente, explica que está com fome. Na 1ª e 2ª vez até ri, nas vezes seguintes, só sorria e amarelo. Hoje os três membros do staff me pegaram, desprevenida, e viram minha bunda enquanto fazia xixi. Deram risada, deliciados. Durante a janta, resolvo perguntar a Dorji Cook o que ele achou. Galante, responde “good good”.....hahaha. Salta ao olhos a superioridade do nível de instrução de Pema sobre os demais. Não só por ter o segundo grau quanto por ter curso de técnico em turismo. Tukthen e Dorji Cook estudaram em monastério porque provêm de famílias pobres. Já de Dorji Horse nada sei. Pouco conversador - o único entre os quatro que não fala pelos cotovelos -, super na dele, é o que se chama um tipo discreto. Usa uma boina de lã meio atravessada na cabeça que lhe confere certo estilo. À noite, sob um céu estreladíssimo, comemos ao ar livre. Ao redor da crepitante fogueira cujas gordas labaredas iluminam o espaço em volta, provo o bathup preparado por Thukten. E o guri, expectante, não esconde a faceirice quando elogio a comida. De fato, o bathup de Thukten é muito mais saboroso se comparado ao que provei há uma semana. Terminada a janta, faço um pouco mais de social e me mando pra barraca. Minha lombar está dolorida, quero mais é me esticar. Antes de dormir, termino a leitura do conto Madeira. Encanta-me a descrição precisa e elegante de Alice Munro sobre certos tipos de árvores. Adoraria escrever como ela! Agradável descoberta a dessa escritora canadense. Não há melhor companhia que um bom livro em determinadas ocasiões!

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