domingo, 20 de abril de 2014

Dhoma

Embora a chuva tenha cessado, o céu continua nublado às 6 da manhã quando saio da barraca pra urinar. Paira uma leve cerração nas encostas das montanhas. Já às 8 e 30, o sol começa a se impor. Tão agradável a temperatura que visto sobre a camiseta de manga curta uma de manga comprida, ambas de tecido leve. Saboreio o desjejum ao ar livre: torradas com mel e geleia, suco de manga e chá com leite. Já os butaneses, em todas as refeições, comem quase sempre a mesma ração diária de arroz vermelho com verduras. Antes de iniciarem a pernada, Pema e Dorji Cook, assíduos degustadores de dhoma, sentam na grama e preparam a primeira das 4 porções que mascam diariamente. Segundo Pema, a estranha mistura de noz e folha de betel ou areca (um tipo de palmeira) temperada com limestone esquentaria o corpo. Pema observa que é importante dosar a quantidade do lime porque sua abrasividade pode ferir a língua. Pois é isso mesmo, o dhoma é mastigado com carbonato de cálcio! Que é nada mais nada menos que calcáreo! Depois de cozido, o calcáreo é triturado com água, obtendo-se uma pasta a qual se acrescenta - para suavizar sua aspereza - um corante de cor alaranjada. Eles enrolam na folha o lime e um quarto da noz. Mastigam e após um tempo cospem. A primeira vez que vim ao Butão, fiquei muito impressionada com as gengivas manchadas de vermelho e nódoas da mesma cor no chão dos lugares por onde andava (pensei que fosse alguma doença). Logo descobri a causa: o adorado dhoma! O hábito ou vício de mascar dhoma independe de classe social e de sexo. Atualmente, são as mulheres suas maiores consumidoras. Nem sempre, entretanto, o consumo de dhoma esteve ao alcance de todos. Introduzido no país no século XV por visitantes indianos, somente os nobres podiam adquiri-lo já que tinha de ser importado. Um lote de dhoma com 80 peças custa 350 Nu (7 dólares) e dura mais ou menos uma semana. Já a venda de cigarros não goza de igual sorte - não seu consumo - sendo proibida no país. Ao turista fumante é permitido o ingresso de 10 carteiras e o pagamento duma taxa. Caso seja ultrapassado o limite legal, a quantidade extra é confiscada e devolvida na partida. Bueno, após essas curiosas digressões urge voltar à trilha. Que não é a mamata da de ontem. Os trechos em aclive preponderam. À medida que se ganha altura, a abundância de rododendros vai escasseando. Sua coloração adquire uma tonalidade rosada ao passo que a folha se torna maior. E os bambus começam a aparecer nos bosques de coníferas. Muito bambuzal! Conforme a altitude, prepondera um ou outra espécie de > pinheiro como bétulas, abetos, juníperos, blue alpines ou os gigantescos hemlocks. Paramos numa clareira onde se avistam montanhas com picos nevados. Ali as prímulas azuis enfeitam de azul o verde da grama. Comemos uma mistura de pistache, castanhas e amêndoas que eu comprara em Doha justamente para o trek. Noto que eles se deliciam com os frutos mas longe de serem vorazes, comem com moderação. Agradável a temperatura quando o sol não está encoberto. A ponto de dispensar o uso da jaqueta durante a parada pro lanche. Retomando a caminhada, continuamos a seguir pela trilha que contorna a margem esquerda do rio Chamkhar Cho, em direção a sua nascente, localizada na face norte do Gangkharpuensum, bem distante, porém, de onde estamos. O rio, como a maioria dos cursos d’água butaneses, é de corredeiras, motivo por que se prestam tanto à construção de hidroelétricas. Após 6 km de caminhada, escolhemos um lugar agradável no bosque pra almoçar. Escoro-me num tronco de árvore e percebo que estou com fome. Também pudera, já são 13 horas. Na marmita carregada por Thukten, há 4 viandinhas contendo arroz vermelho, atum e dois tipos de vegetais refogados, preparados por Dorji Cook todas as manhãs. Pra variar, as irritantes moscas dão o ar de sua nojenta graça. Os rapazes não as matam devido às suas crenças budistas mas eu sempre que posso dou um sopapo nelas....nojera esses insetos! Embora o sol vez por outra desapareça, a temperatura mantém-se agradável mesmo a 3.300 metros de altitude. Na úmida floresta, vicejam musgos nas rochas e troncos das árvores produzidos em decorrência da escassez de sol barrado pela espessa ramagem dos pinheiros. Tanto assim que em muitos trechos a trilha se apresenta super enlameada. Em alguns pontos, improvisadas passarelas de tábuas sobre o embarrado solo. Enquanto atravesso a segunda clareira no bosque de coníferas, consigo avistar montanhas, algumas com glaciares em suas encostas. Dessa feita, a subida nos afasta em muito do leito do rio Chamkhar Cho. Dele só se escuta o longínquo ruído. Um curto trecho plano é um bem-vindo alívio pras pernas castigadas dos quase 7 km de ascenso. Mais uma vez o bosque de pinheiros desemboca noutra clareira. A moleza não dura muito porque nova ladeira empinada se sucede, decorrido 1 km. E voltamos a enxergar o rio apenas 20 metros abaixo da estreita trilha onde estamos. Inicia-se então um descenso até alcançarmos o nível do leito do Chamkhar Cho. E seguimos ao longo de sua margem esquerda, uma larga planície coberta de pedriscos. Quando chego ao acampamento às 15 e 40, encontro as barracas montadas e a bagagem dentro de minha tenda. Pra que isso ocorra Dorji Cook e Dorji Horse sempre vão à frente. Este trek está sendo o menos exigente dos que já fiz. A caminhada hoje rendeu apenas 10 km. Bastou chegarmos em Tshochung Chung, local de nosso acampamento, começa a chover. Refugio-me na barraca-cozinha onde Dorji Cook preparou uma panelona de masala tea mais pipocas com sabor pimenta. Tudo de bom!! Às 17 horas, eu meio que dormitando dentro da barraca, escuto um barulhão de chuva. Abro o zíper da barraca e que chuva, nada....é granizo! Estoura no teto da barraca como se fosse pipoca dentro duma panela. Trovões retumbam. Durante 15 minutos cai granizo a granel. Daí pára e recomeça por mais 15 minutos. Outro barulho ao redor da barraca desvia minha atenção da magnífica tempestade. Ponho com cautela a cabeça pra fora e vejo Thukten martelando os espeques pra melhor firmá-los. Enternecedora essa preocupação com meu conforto. Coisa mais querida esses butaneses! O granizo continua a cair intermitentemente até as 19 horas. Cessada a borrasca, Dorji Horse junta lenha e faz a já tradicional fogueira de final de tarde. A janta é arroz vermelho, verdura, abóbora e ovos mexidos. De sobremesa, pera na calda quente. Fico incomodada porque Pema não janta comigo, só me faz companhia, deixando pra jantar mais tarde com o staff. Volto pra barraca e termino a leitura dum conto da excelente Alice Munro. Após uma estiagem de 2 horas, retorna a chover. Sou embalada no meu sono pelo rumorejar do rio e pelo toc toc dos pingos da chuva no teto da barraca. Música pros meus ouvidos e das boas!

Nenhum comentário: