sábado, 5 de novembro de 2011

Bem baixada num antigo feudo butanês!

Acordo às 6 e 30 e meu termômetro-bússola marca 2ºC. Durante a noite nevou porque quando acordo o solo está atapetado de branco. Flocos de neve flutuam no ar quando sou chamada por Wangyel pro desjejum. Jigme comunica que, infelizmente, não poderemos continuar o trekking através de Lhingzhi, obstruída pelo excesso de neve que vem caindo nos últimos dias sobre os passos de montanhas. Tanto que no Bhonte La, o passo que enfrentaríamos amanhã, caso não houvesse o mau tempo, a neve chega a atingir o joelho, pois a altitude é de 4.800m. Ainda resta uma esperança, informa Jigme, de seguirmos por uma rota alternativa, conhecida como Yaktsa. Tudo dependerá de como o tempo se comportará nos próximos dias. Os guias estão de cara porque este outono tem sido atípico, com muita queda de neve. Imagine como será o inverno, então! Minha dor na lombar diminuiu sensivelmente após eu ter me medicado ontem. Terminada a refeição matinal, partimos, Jigme, seu fiel assistente, Wangyel, e eu por uma trilha aberta num flanco de montanha. Uma subida bem íngreme porém breve conduz ao lago Tshophu (em que tsho significa lago e phu alta colina). Da forma como Jigme o mencionara, todo orgulhoso, supus que fosse algo esplêndido. Imaginei um daqueles lagos cujas águas exibem a bela coloração azul-esverdeada, resultado do degelo de glaciares. Em lá chegando, ao invés duma turquesa líquida, rodeada de neve, encontro o quê? Uma poça mixuruca, despida de qualquer atrativo cujas águas escuras impedem, ainda por cima, que se vejam as trutas que ali residem. Mas trato de esconder meu desapontamento porque a faceirice dos dois guris com o tal lago é comovente. O céu tá mais cinzento e baixo. Coisa horrorosa esse tempo, meu deus!! Se tempo bom houvesse, a visão do Jomolhari seria total. Entretanto, nada se vê da montanha mais famosa do país. Sua visibilidade é nula...merda!! Jigme aponta pruma encosta onde, ao longe, um bando dos famosos himalayan blue sheeps passa correndo pro outro lado da montanha. Velozes, essas ovelhas selvagens são deixadas em paz, sem que ninguém tente capturá-las. E ai de quem o faça! Aliás a questão da preservação ambiental no Butão é levada a sério. E não é de hoje, não!! Há muito anos o governo vem educando o povo nesse sentido. De cuidar bem cuidadinha de sua flora e fauna. Durante todo o passeio segue nevando. Às vezes mais forte, outras somente uns quase invisíveis floquinhos de neve. Nem acredito no que estou vendo: o sol! Raios que os partam! Assim como veio, se vai, e, à francesa, sem sequer se despedir!! Puta que os pariu de merda!! Quando estamos descendo do lago, encontramos dois nativos de Linghzhi vindos de Paro. Como não há um bom mercado naquele vilarejo, os moradores têm de se deslocar até Paro pra comprar mercadorias mais substanciais. A caminhada de ida e volta dura 6 dias. E eles confirmam o que nós já sabíamos. Que, realmente, a trilha até Lhingzhi se encontra coberta por espessa camada de neve. Intrigada, cutuco Jigme do motivo de os dois homens passarem pelo Bhonte La enquanto nós não podemos. É possível sem os animais, explica o rapaz. Levá-los implica riscos que os muleiros não querem correr. Tudo por conta do chão escorregadio coberto de neve endurecida. Se a mula resvala, periga quebrar uma pata. Daí tem de sacrificar o bicho porque ele já era. Já próximos ao acampamento, alguns homens tentam capturar um yak fujão que procura se abrigar nuns arbustos. Coitado, daí mesmo que a sorte dele complica. Enredado no cipoal dos sailex, mais fácil fica agora sua captura. O bicho numa derradeira tentativa de escapar ao cerco investe irritado contra os homens. Assustado com a reação do yak, um garotinho que assiste à cena, trata de pôr sebo nas canelas, fugindo do entrevero. Dou risada do seu jeitinho medroso, e ele corresponde com um largo sorriso. Coisa mais querida! Fazendo hora enquanto espero o almoço, vou assistir ao tradicional doego, jogo que se assemelha à pelota. Em vez de bolas, pedras chatas. E jogam a dinheiro. Cada partida vale 50 ngultrum. O equivalente a um pouco mais de 1 dólar. Almocinho ótimo o de Sonam. A tradicional sopa butanesa que vem a ser um caldo com verduras e pequenos trocinhos de massa tipo ravióli mais pedacinhos de carne de gado. Dois pratos indianos e um espinafre com molho de leite bem apimentado. E, como não poderia deixar de ter, arroz!! Ai se faltar esse cereal numa mesa butanesa!! Às 13 e 30, a temperatura está 12ºC. Eu, naquela modorra pós-almoço, escuto o tamborilar da neve caindo sobre o teto da barraca bem afofada dentro de meu saco de dormir. Dura pouco a nevasca, questão de 10 a 15 minutos. Escuto Jigme me chamando, e lá vamos nós conhecer Jango Dzong, um complexo de construções em ruínas. Espalhados, dos diversos edifícios só restam vestígios de muros. Uma delas situada no topo duma colina chama minha atenção. Segundo Jigme, é impossível acessá-la. Observo, entretanto, a existência duma via, que exige uma pequena escalada. Faço várias tentativas, mas desisto, não quero me arriscar sem corda. Machucar-me nesses ermos seria foda!! E Jigme temeroso de que eu me espatife não ajuda em nada também! Se ele ainda me desse uma mãozinha, eu encararia na boa o tal barranco que deve ser um 3º! Quando já em chão firme, o guri, com a mão no coração, exclama quão assustado se sentiu. Que fofo!! Durante o passeio, numa tenda improvisada com plásticos azul e cinza, uma família de nômades habita. As três adoráveis crianças têm as bochechas vermelhas de queimadura de sol. Por falar em casa, as habitações dos agricultores têm três pisos: enquanto o térreo, por óbvio, é reservado aos animais, no primeiro, habita a família. Já, no último, são armazenados víveres e feno. Inobstante continue nevando, às vezes mais intensamente, os nativos seguem sua rotina diária de trabalho, seja cortando lenha ou pastoreando seus rebanhos. Com raras exceções, os butaneses são magros e não muito altos. Quando retornamos do passeio, chá com pipocas. Agora, 17 horas o termômetro marca 2ºC e às 19 a temperatura caiu mais 1º! Wangyel, super delicado, dá um toque avisando que o jantar está servido. Saio da barraca sem muita gana, porque o frio me deixa covarde. Só quero saber de ficar no quentinho do saco de dormir. Quando chego à tenda-refeitório me derreto com a gostosa jantinha, sempre composta de cinco pratos!! Durante a refeição, peço a Jigme que me conte mais sobre o esporte nacional, o arco e flecha. E Jigme Boy não se faz de rogado. Fico sabendo então que rolam diversos campeonatos durante o ano. O campo deles é formado por duas paredes afastadas uma da outra por 160 m onde são colocados os alvos. O arco e as flechas são de bambu. Penas enfeitam o cabo das flechas, sempre em número de duas, enquanto as pontas são de metal. A corda do arco é trançada com uma espécie flexível de cipó. E as peças são devidamente colocadas num cilindro de bambu. Tudo muito artesanal! Conversa vai conversa vem, outras curiosidades sobre o país me são reveladas. Até o reinado de Jigme Dorgi, vô do atual rei, havia pena de morte. Uma delas – durante a narrativa, fascinada, tento imaginar o desespero do condenado - consistia em atar mãos e pés de criminosos, colocando pedras em suas costas, atirando-os ato contínuo dentro de rios. Atualmente, a prisão perpétua é a maior sanção no sistema penal butanês. Dos crimes, dependendo das circunstâncias, não é o homicídio o mais grave, não, é a retirada indevida de objetos sagrados do interior de templos. Com todas essas interessantíssimas informações pululando em minha cabecinha, adormeço, bem satisfeita!

Um comentário:

Miriam Chaudon disse...

O tal do Jigme foi bem cuidadoso com você, não é mesmo? Bacana isso!