sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Sniiifff....não foi dessa vez!!

Sou acordada a uma da matina com chocolate, ovo cozido e biscoitos. Céu estreladíssimo. Agasalho-me adequadamente pois, sem sombra de dúvida, quando ingressarmos no glaciar Mera, enfrentarei temperaturas negativas. Pasang será meu companheiro, ao passo que Nima guiará Carol. Ultrapassado o breve trecho rochoso que liga o acampamento-base ao glaciar, calço os crampons, e, ligada umbilicalmente a Pasang, agora, sim, guiando adiante de mim, iniciamos, às 2 e 15, o ataque ao cume do Mera Peak. Trata-se duma ladeira suave, se comparada à do último passo, cuja inclinação não ultrapassa os 20º. Na neve bem consolidada, distingo perfeitamente o trilho formado pelos pés de trocentos turistas e porters que aqui já estiveram. Dessa vez, Nima e Carol seguem atrás. Sei lá por que meti na cabeça que pararíamos no acampamento-alto e lá descansaríamos, motivo pelo qual fico cuidando as tais rochas desnudas de neve que avistei de Khare, atrás das quais o acampamento-alto se localiza. Caminhamos, caminhamos, e nada de chegarmos aos 5.800 do high camp. Há muito as tais rochas, aliás as únicas rochas não cobertas de neve num raio de 5 km, ficaram pra trás. E nada de pararmos. Questiono Pasang e o sherpa informa que iremos direto pro cume do Mera. Suspiro de desânimo. Vez por outra, piscam luzes na escuridão da noite: são de montanhistas que preferiram dormir no acampamento-alto de modo que devem estar uns 200 m à nossa frente. Paro a cada 20 metros percorridos a fim de retomar o fôlego. Começo a me sentir deveras cansada. Meus pés, geladésimos, me fazem entrar numa nóia de que vou ter frostbite nos membros inferiores. Por segundos, surge a abominável imagem do resultado implacável do que o frio extremo faz dos dedos dos pés e das mãos: inúteis frangalhos pretos e necrosados. E afasto tão fúnebre e virtual imagem. O fato é que isso vai enfraquecendo meu ânimo, alterando meu psicológico duma forma tal que o cansaço que vinha sentindo se transforma em esgotamento físico. Respiro fundo e dou mais um passo, outro e mais outro. É grande o esforço. Quando atinjo os 6.100 m, percebo que não conseguirei mais avançar. Só se fizer um esforço sobre humano. E, francamente, não tenho vocação pra suportar o que esse dispêndio de energia implicará de sofrimento. Só de imaginar, quase surto!! Toda minha gana de alcançar o cume do Mera se esfumou na noite escura que nem breu e gelada que nem câmara fria de açougue. Tenho apenas uma aspiração: retornar ao acampamento-base, pro conforto de minha barraca e entrar dentro de meu maravilhosamente aquecido saco de dormir. E tal desejo não pára de martelar continuamente minha cabeça. A pernada agora assume feição de pesadelo. Es-tou e- xaus- ta, es-go-ta-da!! Grito pra chamar a atenção de Pasang e digo-lhe que não quero continuar. Nima e Carol, que já nos alcançaram, tentam me dissuadir a seguir adiante. Eu, entretanto, de dente trincado de frio, só sei repetir “I want to come back, I don’t want go on”, como se fosse um mantra. E assim damos meia-volta, volver, percorrendo em uma hora e meia os 700 metros que custamos 3 horas pra subir. Já perto do acampamento, a luz do alvorecer permite visualizar as montanhas ao redor, dentre elas o Everest e o Lhotse. Tão pequenos desta distância se mostram esses dois 8.000! Desapontadores!! Os 6.000 que lhes estão à frente, estes sim, parecem ser os 8.000!! Um leve tom róseo tinge a barra do horizonte. Nem ânimo tenho de fotografar coisa alguma. Só quero chegar, chegar e chegar na minha barraca. Só deus e meus músculos sabem o esforço que estou fazendo, tanto que caio duas vezes. Exaurida, entro na barraca e desabo que nem um peso morto no colchonete. O relógio marca exatas 6 horas e 30 minutos. Passo quase o dia inteiro deitada. Tão, mas tão cansada estou que nem consigo relaxar o suficiente pra entrar num sono profundo. Apenas dormito. O calor dentro da barraca é tão forte que saio do interior do saco de dormir e fico apenas de camiseta de manga curta e short. Ao meio-dia, quando saio pra fazer xixi, o sol, a milhão no céu, machuca meus olhos que começam a lacrimejar. Pasang, Nara e mais três porters, escorados nas rochas, conversam. Junto-me a eles. Contam que ninguém fez cume. O vento, fortíssimo, impediu o acesso ao cume do Mera. Impossível crer nisso!! O dia está perfeito tanto que no céu nenhuma nuvem mancha de branco seu azul anil. Então, após observação mais atenta, percebo um penacho de neve que só vento muito forte desloca e espalha no ar, envolvendo o cume do Mera Central, tal qual uma echarpe caprichosa. Conta Carol – após atingirem 6.300 metros, o casal retornou e descansou um bom bocado no acampamento-alto - chegando aqui passadas as 15 horas, que o vento era tão forte que cortava a pele do rosto duma forma muito dolorosa. Mesmo abrigada no interior da barraca, a lona amarela não filtra adequadamente os raios solares. Daí porque meus olhos não cessam de lacrimejar, a ponto de eu ter a visão meio embaçada, o que turva minha leitura dos Ressuscitados. Afora isso, sintomas do resfriado, que nunca largou do meu pé, retornam. Mantenho os olhos cerrados devido à compressa de camomila neles colocados, e, como não posso fazer nada, dou início a certas reflexões sobre o dia mais longo de minha vida. Puxa vida, quando fiz os 6.088 metros do Huayna Potosi, não senti tanto cansaço quanto o dessa madrugada. Sei lá se meu corpo ou minha cabeça, ou os dois juntos, impuseram um stop ao meu corpo. Meu corpitcho - não resta dúvida, os sinais foram claríssimos - deu sinal vermelho de "por favor, pare agora!" (lembram daquele verso autoritário duma canção da Wanderlea na época do Jovem Guarda? Pois foi bem assim!). Não tive outra alternativa a não ser me render à impossibilidade de continuar a jornada até o cume. Na hora, nem frustrada fiquei. A exaustão e o medo de sofrer congelamento espantaram qualquer resquício de força de vontade que, por ventura, me restavam. Agora, aqui, no aconchego de "minha casa" pinta uma sensação de derrota, ou melhor, de não ter sido mais estóica, mais audaciosa e enfrentado o frio, o cansaço e a altitude. Conversando com meus botões, vou mais fundo: se eu não tivesse sido intimidada pelas minhas limitações físicas e psíquicas e prosseguido, eu poderia indicar como único responsável pelo meu fracasso o vento! Vou mais além nesse exercício de suposições. Se o único fator impeditivo fosse o vento, não estaria eu agora me cobrando porque não o desafiara de modo a seguir adiante? Pois é.....

3 comentários:

Miriam Chaudon disse...

Beatriz,não vejo como fracasso amiga.
Tem momentos que precisamos ouvir a montanha e saber o nosso lugar.O convívio com a natureza nos trás principalmente isto:sensibilidade para compreender quando seguir e quando parar.

Paulo Cesar Fabro disse...

Que peninha !!!
É Biazita, subir montanha no Himalaia exige muito mesmo.
Mas só de tentar já valeu. Só de viajar já valeu. Essa história de se autoimpor desafios é que atrapalha. O melhor mesmo é só ir até onde dá prá ir sem arriscar o pescoço.
Parabéns pela aventura.

Paulo Cesar Fabro disse...

E quase me esqueço...

Posso imaginar Biazita a Carolzinha unidas num abraço fraterno de duas mulheres que atravessaram diferentes oceanos (na verdade a Carolzinha não atravessou nenhum, mas me pareceu que esta frase criaria um bom impacto) para estar diante de uma mesma montanha que permanecerá por elas inconquistada e indiferente aos oceanos, o quel enfim só interessa como referência para sua própria altura.