domingo, 7 de novembro de 2010

Frisson em Tangnag

Sonho durante a noite com Raul quando ele era um piá de 5 anos (meu filho está com 30 anos) e com meu pai, falecido há um par de anos. Enquanto observo meu guri brincando com seus amiguinhos, conto ao velho sobre planos duma viagem ao rio Negro de barco, levando meu pequeno. O pai argumenta que é caro. Respondo que dinheiro foi feito para ser gasto nas boas coisas da vida. E, com meus botões, penso que será uma boa oportunidade de curtir meu gurizinho. Abandono o sonho com peninha. Queria continuação, muitos episódios, como naquelas intermináveis séries de sucesso da tevê. Abro o zíper da porta da barraca e o dia prenuncia bom tempo, embora sejam 6 da matina. E o ritual de todos os dias tem início: arrumar a sacola da North Face, ensacar o saco de dormir e a jaqueta de plumas, escovar os dentes, lavar o rosto, tomar café e ir no infecto banheiro fazer cocô. Deixo Khote às 8 e 20 rumo a Tangnag, a próxima vila onde iremos permanecer durante 2 dias. A trilha é praticamente plana como eu percebera ontem quando fizera, em companhia de Carol, uma pequena incursão pelos arredores de Khote. À medida que nos afastamos dessa vila e nos internamos mais e mais no vale do Inku Khola, o abundante verdor inicial do cenário, atulhado de rochas cobertas por densa cobertura de musgo, torna-se árido, exceto pela presença dalgumas gramíneas e arbustos rasteiros de onde florescem pequenas e delicadas flores de cor esbranquiçada à semelhança das nossas sempre-vivas. Ao longo da trilha, o único toque colorido é a serpentina verde-cristalina das águas do Inku Khola em contraste com os tons ocres da monocromática paisagem. Durante um bom pedaço, avisto a face sudoeste do Mera Peak e suas três torres nevadas. Perco-as de vista depois duma hora de caminhada. Sou, contudo, recompensada dessa ausência pelo surgimento, numa curva da estradinha, de duas lindas montanhas: Chat Pate e Kusum Khang, que significa três irmãs em nepalês. Noutra dobra da trilha, reencontro, novamente o Mera, enxergando, dessa feita, apenas, seu cume norte. Encontro um bando de ingleses que também se dirige a Tangnag. Passo na frente, porque caminham bem mais devagar que eu. Decorrida meia-hora, paro pra conversar com três austríacos. Retornam do Mera onde fizeram cume. Simpáticos e brincalhões contam que foi “very very hard, our tongues reached our crampons”. Durante o restante da caminhada, mais nenhum turista vindo da montanha, só alguns porters. Na metade da manhã, o céu que, quando eu saíra de Khote, se toldara duma certa quantidade preocupante de nuvens, desanuvia de todo. Carol e Nima, quando chego na vila às 12 e 45, sentados na grama já almoçaram. Com caras satisfeitas, me saúdam. Eu, entretanto, não estou lá muito contente, não! Falo pra Nima que não entendo o motivo da pressa de Nima. Afinal, só ele como trek guide pode dar certas informações já que Pasang, contratado para servir de climbing guide, não tem o seu desembaraço e aquele bom nível de conhecimento atribuído aos guias-líderes. Resolvo, para não criar mais caso, nem chamar a atenção sobre a indelicadeza de não terem me esperado para almoçarmos juntos. Afinal, se viajo em grupo, é porque gosto de trocar idéias e compartilhar experiências com outros turistas. Comer sozinha como uma pária é tudo de ruim. Surge um ligeiro frisson. Nima, emburrado, escapole. Busca abrigo junto aos porters, alguns deles seus primos-irmãos. Ficamos eu e Carol a sós. A inglesa toma, então, as rédeas da situação. Tenta livrar a cara do parceiro, amenizar a situação, concordando com meus argumentos. Diz que gosta de minha franqueza. Revela que também o é. Seu blábláblá cheira a papo furado. Assim, corto seu conversê e saliento que Nima tem de se dar conta de que está trabalhando. Tentando limpar a barra do amante, Carol, um pouco mais tarde, assumindo de vez a função de porta-voz oficial da expedição, comunica que a partir de amanhã Pasang irá com ela e Nima comigo. Digo que não é bem isso que quero. Desisto, porém, de continuar com as explicações devido ao meu sofrível inglês. Basta, já falei este idioma demais por hoje. Na verdade, o que desejo é bem simples. Apenas que Nima, vez por outra, espere por mim de modo que eu possa obter informações mais precisas sobre a região. Faminta, devoro meu supimpa almoço. Nara, a meu pedido, colocou alho frito na sopa. Algumas nuvens oriundas do sul dão pinta no céu sem, contudo, encobrir de todo o sol. Tão bom estar aqui, sentada na grama, admirando este magnífico cenário! À minha frente, ergue-se o cume norte do Mera Peak com suas rochas escuras pintalgadas de neve. Coloridas bandeirolas retangulares com orações budistas tremulam ao vento. Presentes nos passos e nas aldeias, exibem suas cores sempre nessa ordem: amarela, verde, vermelha, branca e azul. Agora 15 horas, a bruma esconde todas as montanhas ao redor de Tangnag cuja altitude já atinge os 4.300m. Cinza é a tonalidade do ambiente. Um baita contraste com a paisagem de duas horas atrás quando brilhava o sol e o azulão no céu dava as tintas. Tudo de bom os nepaleses. Gentis, sorridentes, muito zen realmente esse povo! O chá da tarde é servido na barraca em razão do mau tempo. Frio e umidade pairam na tarde espessamente enevoada. Abrigada no quentinho de meu saco de dormir, apóio minha cabeça na sacola North Face que improviso de travesseiro. Assim, de barriga pra cima, bem instalada, retomo a leitura do instigante policial Os Ressuscitados, escrito pelo escocês Ian Rankin. Às 16, com pontualidade nepali-britânica, três, veja bem, três porters – que exagero! sinto-me até constrangida com tanta mordomia - trazem o chá e um pratinho com deliciosos biscoitos. O céu permanece pesadamente encoberto por nuvens quando saio da barraca e vou até o refeitório. Em todas as vilas onde vimos acampando, há peças destinadas a servir de refeitório pros turistas e outras pros cozinheiros e porters prepararem as refeições. O recinto, reservado a nós, encontra-se confortavelmente aquecido por uma salamandra de ferro posta no meio da sala. Além de mim, ocupam os compridos bancos, forrados por grossos tapetes coloridos em estilo persa, os finlandeses que se encontravam ontem em Khote. No grupo, uma mulher quarentona e três homens mais jovens. Todos altos e fortes. A mulher faz palavra cruzadas. Vez por outra comenta algo com um dos rapazes. Dois deles lêem enquanto o terceiro, o mais moço, limita-se a olhar pra parede. Porque não falam bem inglês ou porque são casmurros mesmos, minha tentativa de interagir com eles não obtém sucesso. O dono da tea house entra na peça, trazendo, num cesto de bambu, madeira e côco de yak pra alimentar o fogo na salamandra. E, pra reavivar o fogo, vale-se dum canudo longo de metal através do qual assopra. Deve ser pra evitar que as cinzas levantem, caso seja usado um abanador. Carol e Nima quando chegam pra jantar estão naquele clima de pombinhos apaixonados. Nem tento grandes aproximações com os dois. Limito-me a curtir as fotos que tirei durante o dia. Quando saio do refeitório, mal posso acreditar no que vejo: boiando no céu quinquilhões de estrelas! Como num passe de mágica, em pouco mais duma hora, o céu desanuviou totalmente!

2 comentários:

Paulo Roberto - Parofes disse...

Mera Peak é animal demais!!!!

Paulo Cesar Fabro disse...

Oba!!!! Uma encrenca entre mulheres na trilha. Agora sim tá ficando bom.
Porrada !!! Porrada !!! Porrada !!!

Vou pular a parte da descrição das paisagens, do clima e dos corvos e me fixar nas suas brigas com a inglesa pegadora.

NÓS QUEREMOS VER SANGUE !!!!!!!!!!!!

KKKKKKKK