Dois porters depositam junto à porta da barraca chá e água quente preu lavar mãos e rosto. Um deles anuncia naquele canhestro sotaque inglês “wake up...tea, Bitriz”. Às vezes, sinto umas fisgadinhas de culpa já que não estou acostumada com tanta mordomia. Tanto é verdade que me valho apenas de faxineira pra limpar minha casa. E não faz muito - coisa de dez anos atrás – pegava pesado no serviço doméstico. Os porters, aparentemente, não se mostram descontentes em servir aos turistas. Ao contrário, se somos super valorizados e mimados é porque o turismo tornou-se, com o boom da escalada e do montanhismo no Himalaia, a principal fonte de subsistência duma grande parte da população nepalesa. A grana das gorjetas mais o salário que as agências lhes pagam garantem uma renda extra às suas atividades usuais exercidas fora da temporada turística. Faz muiiito frio quando deixamos Khare. Na manhã outonal, bóiam, no céu dum azul ainda pálido, nuvens que não empanam em nada o brilho alegre dos raios solares. O vilarejo, à medida que ganhamos altura, torna-se mais e mais pequenino. Um pontinho inidentificável até que some de vez. Árduo o ziguezagueante aclive inicial que leva até o Mera La. Palmilhando uma trilha de chão batido, a pendente, cuja inclinação é bem acentuada, atinge 40º. Minha respiração torna-se pesada e arfo bastante. Paro pra descansar vez por outra. Pasang, agora na frente, pacientemente, espera por mim, sentando-se nas pedras. Nima, até então indeciso sobre se iríamos pernoitar ou não no primeiro acampamento-base do Mera Peak, situado um pouco antes do passo, decide, quando ali chegamos, prosseguir viagem até o segundo campo-base onde pousaremos. Eu nunca vi guia tão indeciso quanto ele. Bem possível que tenha sido Carol que o fez mudar de idéia, talvez porque não tenha se agradado do lugar. Vá saber!! E eu refém dos caprichos desses dois....arre!! Antes de continuarmos a pernada, fazemos uma breve pausa em frente a única construção ali existente. Eis então que Nima, se aproveitando duma pergunta que fiz acerca duma montanha, resolve demonstrar seus “conhecimentos” da língua portuguesa, aprendidos com Morgado, guia brasileiro que mora na Ásia e com quem ele trabalha há oito anos. Mais pra impressionar Carol do que pra me agradar, larga uma ou outra palavra em português....deus, please, dai-me forças, porrr fa-vorrr, pra agüentar tanta boçalidade!! Ultrapassado o passo, o areal que forrava a trilha é substituído por neve consolidada, já que acabamos de ingressar no glaciar Mera. Como são poucos os trechos resvaladiços, desnecessário o uso de crampons. Assim, continuo calçando botas de trekking. E para segurar a onda nas zonas mais escorregadias, suficiente o apoio dos bastões. E, no panorama espetacularmente branco, poucas são as rochas que se encontram desnudas de neve, tanto assim que se destaca em tão alvo cenário um paredão rochoso cinzento-claro em cuja tonalidade sóbria intrometem-se atrevidos pigmentos ferruginosos. E durante um tempo, basta olhar pra trás que continuo a enxergar as já conhecidas montanhas Kusum Khang e Chat Pate em cujos flancos e topos pairam nuvens encobrindo-os. A até então familiar paisagem é definitivamente sepultada de meu campo de visão na próxima curva da trilha, restando apenas a imensa brancura do glaciar Mera. É muito lindo e impactante o contraste entre a neve e o azulão do céu. Tenho de confessar, a bem da verdade (não sei se a sinceridade, às vezes, é uma virtude ou defeito dos verborrágicos), que passado um tempo se torna monótono tal cenário. Nenhum verde pra descansar a vista, só aquele branco refulgente que machuca os olhos pra caramba. Tem de se ter bastante tolerância visual pra agüentar um branco tão intenso! Fendas e mais fendas acumulam-se em ambos os lados do estreito trilho cavado na neve por milhares de pés durante a temporada. Nenhuma, porém, que inspire cuidado já que a trilha passa bem ao largo delas. Ao longe, enxergam-se os vultos de turistas e porters que se dirigem ao acampamento-alto, localizado atrás das poucas rochas que conseguiram escapar do pudico manto de neve que envolve tudo num raio de algumas dezenas de quilômetros. Depois do passo, embora o trajeto seja na neve, a pernada torna-se bem mais fácil. O aclive não é tão empenado quanto aquele trilhado sobre o areal. Minha respiração torna-se compassada, sem grandes sobressaltos arrítmicos. Encontro um italiano que mal sabe falar inglês. Desassombrado, passa por mim sorridente, todo feliz. Tem cara de quem vai fazer facilzinho o cume do Mera. Caminha a passos largos. Até parece um sherpa!! O trajeto até o segundo acampamento-base do Mera não leva mais que 3 horas e 30 minutos, tanto que, passados 15 minutos do meio-dia, alcançamos o lugar onde iremos passar a tarde e parte da noite. No lugar, apenas uma casinha coberta por uma lona azul que faz de telhado. Após o almoço e um breve descanso, Nima me convida pra ir treinar numa parede de gelo ali perto. Informo-me com Pasang se, de fato, é necessária tal atividade, se é imprescindível pra alcançar o cume da montanha. Meu sereno guia faz um sinal negativo com a cabeça. Contente de me livrar do exercício físico – ah, estou preguiçosa, confesso.....ou cansada, como quiserem -, limito-me a curtir a escalada de Pasang até o topo do paredão de gelo pra fixar a corda, de modo a permitir que Nima, Carol e Nara subam jumareando até lá. Nima, como não podia deixar de ser, resolve fazer seu showzinho. Que nem um pavão, – essa criatura, santo cristo, é dum exibicionismo doentio!! – resolve mostrar que ele é o tal: usa apenas as piquetas pra subir o muro de gelo. Ele quase bate palmas prele mesmo quando retorna. Canso de tanta chinelagem e vou embora. Qual não é minha surpresa, quando vejo, um pouco mais adiante, olhando através dum aparelho parecido com um telescópio, quem?! O glaciologista francês que conheci em Khare! Vou ao seu encontro. Ele não se mostra surpreendido ao me ver. Já sabia pela nossa conversa em Khare que eu viria pra cá, destino inevitável de quaisquer turistas que escolhem o trekking até o Mera Peak. Conversamos um pouco, não muito. Como está trabalhando, não quero atrapalhá-lo. Conta que chegou há três dias com a missão de consertar um aparelho de medição meteorológica. Mostra-se satisfeito porque logrou êxito na tarefa. Comenta que dois de seus colegas, que já se encontram aqui há dois meses, quase todos os dias vão até o Mera em 2 horas e 30 minutos!! Puxa vida!! Que fôlego esses homens têm!! E morro de inveja deles!! Taí uma profissão que me interessa. Na outra encarnação, quero ser glaciologista, je veux, oui oui, je veux!!!! Simpático, oferece chá e UM biscoito (generoso, não?). Despeço-me e vou fotografar duas montanhas lindas que ficam na frente de minha barraca. Naulakh Peak, com sua rampa suave coberta por um impecável glaciar, é um xodó! Já Chomi Lingma, não tão atraente, se destaca, contudo, devido ao seu formato quadrangular. Nima, cada vez mais rendido à forte influência da cultura inglesa – leia-se de Carol -, segue fielmente a cartilha hamletiana do "to be or not to be". E partilha, submetendo à aprovação popular (eu e Carol, evidentemente) seus dois planos: 1) ataque na madrugada ao cume do Mera; 2) ou subida, amanhã, até o high camp onde dormiremos, partindo na madrugada do dia seguinte até o topo da desejada montanha. Como se fosse um jogo de cartas marcadas, nos inclinamos pela opção número um. Agora, 17 e 30, não bate sol algum na zona onde estamos acampados. Somente as montanhas, situadas à ocidente, usufruem da luz carinhosa dos últimos e renitentes raios de sol. Sinto um frio de doer os ossos!! Também pudera, encarapitada a 5.400 m acima do nível do mar, o que mais eu poderia esperar? Calor nigeriano? Hahahaha!! Até parece, né, Beazinha?! E não é que a lua escolheu, como nascedouro para seu incipiente crescente, o lado direito do Naulakh Peak?! Será isso um bom sinal? Espero que sim! E um zum zum excitado, que mais se intui do que se escuta, paira no ar. É o grito silencioso do “queremos atacar, enfrentar, desafiar, enfim, ter sob nossos pés o cume do Mera Peak!!”
Um comentário:
Aposto que Carolzinha vai chegar na sua frente !!!
hehe
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