segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O paraíso e a serpente

Em torno de 20:30, eis-me ferrada no sono. O segredo de tão tranquilo dormir? O bom chute sonífero dum relaxante muscular, receitado, é claro, pelo meu ortopedista. Isso não impede que eu acorde por breves minutos durante a noite (quando viro de lado, tá ligado?), motivo por que escuto o barulhinho bom duma chuvinha fina tamborilando de leve sobre o teto da barraca. Às 5 e meia da matina já tô bem desperta iniciando os preparativos de pôr a equipagem no bolsão navy da North Face. O mais sacal dessa arrumação é ter de desinflar o isolante térmico. O colchonete há que ser sovado várias vezes até ficar bem murchinho. Após um desaiuno com arepas, feitas na hora por Fred, cujos recheios vão do salaminho a 2 tipos de queijos, mais geleias e creme de chocolate (este muito apreciado pelos belgas e franceses), saímos de Guayaraca às 7:30 em meio à densa cerração. Inicialmente atravessamos um trecho de savana sucedido por um trecho de floresta, sucedido mais uma vez por outro trecho de savana que por sua vez cede espaço a nova trilha na floresta. Tudo fácil porque plano. Cruzamos um ribeirão cuja ponte é um tronco de árvore. Com receio de cair na n’água porque não sou boa equilibrista (e se caio, molho a máquina, sacou?), percorro a improvisada passarela bem devagarinho. Após quase 5 km, vencidos facilmente em pouco mais de 1 hora, alcançamos um riacho onde recolhemos água para enfrentar a subida até a 2ª plataforma. Finalmente, no céu, o sol agora reina solito, sem nuvens a toldá-lo. Antes do ascenso, mimetizada entre raízes e folhas, uma enorme cascavel, toda enrodilhada, está de sentinela no meio da trilha. Gritinhos (meus) porque estou logo atrás do guia o que faz com que um dos belgas, nem lembro qual deles, me passe um pito. Que eu não deveria gritar (caso novamente me depare com o bicho) pois isso atrai o ataque da serpente....ai ai ai. Bueno, a víbora provoca tal frisson que o povo se acotovela pra fotografá-la como se fosse um rock star. É quase uma escalaminhada o trecho até a 2ª plataforma, terminando com a moleza da pernada sobre terreno plano. A ascensão, no meio da estreita picada, aberta na floresta é dura, íngreme pra caramba. Os 2 km de subida dão a impressão de ser muitíííssimoooo mais! Ainda bem que os providenciais troncos, galhos e raízes ajudam na rude caminhada. Por entre o emaranhado dos galhos de árvores, avisto, a extensão uniforme da savana espalhada no vale de Kamarata. Fazemos uma parada pra repousar porque o cansaço amoleceu o povo que carrega mochila cargueira. O guinchar dos macacos é perfeitamente audível, assemelhando-se, pasmem, a rajadas de vento. Ao longo do caminho, uma bela flor branca com miolo amarelo é presença constante na trilha. Os guias ignoram seu nome...uma pena! Adoraria ter bons conhecimentos de botânica para saber melhor nomeá-las. Decorridas 4 horas e 8 km de muita subida, chegamos no topo da 2ª plataforma donde se tem uma visão estupenda da face sul do Auyantepui. Sua coloração avermelhada deve-se à presença do arenito na composição das rochas. Embaixo dum rebordo de rocha que proporciona excelente sombra, já que é ½ dia e o sol está a pino, paramos pra almoçar. A refeição oferecida é wrap recheado com verduras e atum mais suco de limão. Terminado o ranguinho, retornamos à trilha. Continuamos subindo porque hoje vamos até a metade da 3ª plataforma. Dessa feita, as subidas são intercaladas ora por curtas descidas ora por breves trechos planos. Continuamos embrenhados numa mata não tão cerrada quanto aquela percorrida antes do almoço, já que predominam arbustos de médio porte. Degraus esculpidos na macia e clarinha rocha calcárea, lembram vagamente àqueles da rampa que conduz à base da parede do Roraima. Mais uma vez trechos de exigente escalaminhada. Aqui, contudo, o cuidado duplica porque há largas gretas entre as pedras. Chegamos a um córrego onde abasteço minha garrafa. Diante de tanto esforço, suo em bicas, razão pela qual tenho de repor o líquido perdido sob pena de me desidratar rapidinho. Chegamos às 14:40 ao acampamento El Peñon (1.870 msnm) que leva este nome graças à proteção natural proporcionada pelo grande teto de rocha onde as barracas são instaladas. Em certos locais, o teto é tão baixo que tenho de me abaixar pra não bater com a cabeça na pedra. Por uma sinuosa picada, desce-se até o riozinho cujo leito apresenta degraus de pedras bem lisinhas, muitas delas forradas pelo aveludado e verde musgo, formando pequenas quedas d’água. Encantador o lugar! Por volta das 17 horas, o sol se põe, colorindo de dourado a avermelhada parede do tepui. Show la puesta del sol! Lá embaixo, na savana, reluzem braseiros resultantes de focos de incêndio que, felizmente, não se propagaram demasiadamente. Rajadas de vento levantam desagradáveis ondas de poeira. Mario, embora jovem, exibe tom de voz que soa como se fosse um ancião. Não importa o tema que esteja discorrendo, entremeia com pausas profundas a conversa. Pode tanto ser algo sério quanto uma observação jocosa ou irônica. Pra onde vai carrega consigo um pequeno banco de campanha onde se senta quando paramos. Linus com seu cobertor e Mario com sua silla, hehe. Como sempre, a refeição, feita no capricho pelo competente Fred, consta de prato principal - massa carbonara - e a nutritiva sopa de legumes com pedaços de queijo. De postre, banana caramelada. Agora 19:30 o maior silêncio no acampamento, exceto o alegre murmúrio de alguns porteadores refestelados nas belas e coloridas redes tecidas em três dias pelas índias nos rudimentares teares de suas aldeias. Já em frente ao acampamento, os pirilampos fazem a festa inundando a mata de inúmeros pontos luminosos. Mazaaahh, vidão!! 

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