sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Além da 2ª Muralha

Embora tenha chovido durante a noite, o dia amanhece apenas nublado. O acampamento situado no encantador bosque entre a 2ª muralha e o Dragon, faz com que eu durma e acorde ao som do barulhinho gostoso da correnteza do rio situado a 20 metros de minha barraca! O Dragon é um dos afluentes do Churun, responsável pela formação do canyon del Diablo. A colossal garganta corta o tepui no sentido sul-norte, dando-lhe um formato de Y visto de cima.  A passarada assanhada não para de trinar. Deve estar, no mínimo, curiosa com nossa movimentação aqui embaixo, afinal Auyantepui não é point turístico bombado como o Roraima. Converso com Antonio, meu porteador, enquanto espero nossa partida. Com 23 anos, é casado desde os 16 e tem 2 filhos: uma guria e um guri. Trabalha desde os 8 e já  subiu ao Auyantepui 52 vezes porteando carga!! Orgulhoso, gaba-se de que pode carregar até 70 kg mas o normal é 30. Na aldeia de Uruyen, planta feijão, arroz e mandioca. Aponta pra uma palmeira e explica que se chama san pablo, usada nos tetos das casas e trançada tantos por homens quanto por mulheres. Também são usadas outras espécies de folhas de palmeiras como kukurito, ceja e moriche, durando os tetos em média 7 a 10 anos. Saímos bem cedo, 7:20, porque a pernada até o próximo acampamento é, segundo os guias, duríssima. A escalaminhada até o topo da 2ª muralha mostra-se, de fato, bem ríspida, encarando-se inclusive paredão bem exposto que a mim deu medinho. Mas a beleza do mundo encantado das pedras e dos musgos suplanta qualquer cansaço! Na metade da subida, a espetacular visão do rio Dragon e adjacências é emocionante. Inacreditável que possa existir tanta belezura no topo deste tepui. Quando terminamos o ascenso e alcançamos a tão sonhada (por mim) 2ª muralha, as dificuldades não param. Aí é que se tornam mais e mais exigentes, deveras cansativas. Tudo por que temos pela frente quilômetros de campos cobertos por pequenos arbustos e altas gramíneas. Embora seja terreno plano, em nada se compara com aquilo que pensáramos ser difícil só porque tinha que ser escalaminhado. O terreno coberto de areia e material orgânico é fofo tal qual um colchão o que torna super estafante a pisada. Mas o pior está por vir quando se adentra as zonas de bosques. O que era até então fofo mas seco se torna pantanoso. O coitado do espanhol enfia umas das pernas na lama até a altura do joelho. Por pouco a Cannon dele não é sugada por aquela meleca preta. É um outro mundo este, situado além da 2ª muralha. Não tem nada a ver com o que vimos há 2 dias atrás quando chegamos no topo do Auyan: colinas a perder de vista cobertas uniformemente por espessa vegetação, num emaranhado formado por diversos tipos de vegetação arbustiva. Dentre as flores, destaca-se pela delicadeza a carnívora heliamphora pulchella. Mais um bosque com solo pantanoso e outro campo sujo onde cruzamos o leito quase seco dum rio que exige cuidado porque o lajedo está escorregadio. Por duas vezes somos obrigados, por causa duma merda de chuva que não deslancha, a tirar os impermeáveis da mochila pra cinco minutos depois  recolocá-los de volta na bolsa. Caminhar no terreno fofo, puta que os pariu e deus que me perdoe, é pagar penitência tamanha a dureza do esforço exigido. Mil vezes preferível escalaminhadas, por deus! Ao meio-dia, já com quase 5 horas de caminhada, chegamos no acampamento Lomita à beira do rio de mesmo nome cujas águas são deliciosamente alaranjadas. Esta coloração se deve à reação do tanino contido nas plantas com a água. Exausta de enfrentar o tal terreno fofo até me permito descansar um pouco escorada numa parede rochosa enquanto espero o almoço ser preparado. Terminada a refeição, mais desafios a enfrentar na trilha: um tronco improvisado fazendo de ponte sobre um córrego demanda cautela. Eu sempre com medo de cair, fico toda orgulhosa quando consigo transpô-lo sem muita frescura. Após o almoço, o sol acena num vai e vem caprichoso entremeado pela persistente garoa. Contudo, predomina céu encoberto. Mais 1 hora e meia de pernada e chegamos, aleluia, a uma baixada onde se encontra o acampamento Neblina (1.820 msnm). Como sempre os acampamentos são preferencialmente escolhidos ao lado dum rio. Este não foge à regra porém suas águas são comumente escuras. O dia pode ser considerado duro: 8 horas lutando num terreno entre o fofo e o pantanoso cansa as pernuchas, tá ligado? Novamente improvisam um toldo de lona pra proteger cozinheiros e comida já que a intermitente garoa não dá folga. Fico conversando com Mario e descubro que sua mãe muito católica vai à igreja orar pela segurança dos filhos (ele tem um irmão gêmeo que também trabalha como guia) tanto quanto saem pra trabalhar como quando retornam. Não sou católica mas aprecio essas estórias de devoção. Pra repor as energias consumidas nas estafantes 8 horas de caminhada, é servida na janta massa al sugo e a indefectível porém gostosa sopa de legumes com queijo aos pedaços. Recolho-me cedo à minha “casinha”, porque o corpo implora, geme, pelo descanso na posição horizontal.

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