Eu sabia, tinha certeza de que o tempo aqui em Karimabad se comportaria igual ao de certos veraneios azarados na praia em que os dias se mostram casmurros, exceto o último quando pára de ventar, o sol se mostra em todo seu vigor e o mar vira um espelho de tão límpido e tranqüilo. De pé no terraço do hotel, enquanto espero seja minha bagagem transportada até o carro, o dia, esplêndido, enfim, me dá uma chance de ver a magnificência do Rakaposhi Peak. Observo que em sua face leste há dois largos e extensos contrafortes: o da direita menos nevado, já o da esquerda apresenta-se coberto de neve por inteiro. Abaixo, no vale, as águas beges do Khunjerab e Nagar mal disfarçam a junção destes dois afluentes do Hunza, tributário do Indo, considerado o maior rio do país, cuja foz situa-se a mais de 1.700 km, no mar Arábico. Olho pro relógio colocado numa parede do restaurante onde estou comendo meu desjejum e constato, atônita, que são 6:30. Estranho porque acordei às 7:30! Meu espanto dura pouco, logo me dou conta de que os relógios, via de regra, não são acertados pro horário de verão, permanecendo no horário antigo. Coisas do Paquistão! Justo, hoje, fico sabendo que Karimabad é o único lugar do país onde é fabricado um certo tipo de vinho cujo teor alcoólico é bastante forte, segundo me conta Siddique. Peninha, gostaria de tê-lo provado. Às 8:20, partimos de Karimabad e, durante o trajeto, a presença constante do Rakaposhi se faz presente sempre do lado esquerdo da KKH. Fazemos um stop no mesmo restaurante onde estivéramos na segunda-feira quando íamos rumo a Karimabad. Do estabelecimento, estrategicamente situado no sopé da montanha, tem-se uma vista muito atraente da montanha, de cujo glaciar desce um riozinho cascateante por entre as pedras de seu leito. A parada inclui, é claro, um chazinho. Peço verde sem leite. Retomamos a viagem e Siddique pede a Aqbar que pare e pergunte a uns homens sentados à beira da rodovia se conhecem uma alternativa à KKH que conduza também a Gilgit. Eles indicam onde dobrar e lá vamos nós por uma via paralela à grande rodovia, que inicia ao norte de Islamabad e percorre o restante do país, adentrando, inclusive, o território chinês. Fico sabendo um pouco mais sobre o verdadeiro interesse do governo chinês em cooperar no alargamento da KKH. Se os chineses utilizassem seus portos, situados ao norte, pra escoar os produtos e matérias primas produzidos no sul do país, o transporte resultaria muito mais demorado e caro, motivo por que preferem despachá-los via Karachi. Dessa forma, as mercadorias são transportados em imensas carretas containers até o porto seco de Sost, não muito longe da fronteira chinesa, e lá distribuídas em caminhões menores que as conduzem até o porto da antiga capital paquistanesa. Às 11:20, chegamos em Gilgit, a principal cidade da Northern Areas (esta região não é província e tampouco faz parte do Paquistão, tudo muito confuso, só eles pra entenderem tal divisão política). Sem grandes atrativos turísticos, é cortada pelo rio de mesmo nome. Seu centro comercial demonstra, de fato, a importância administrativa do lugar: no bazaar há talvez mais de uma centena de lojas ocupando diversos quarteirões. Mesmo assim, o despojamento que observara nos vilarejos, também, aqui predomina: ao lado de uma joalheria, um aviário, na frente de uma loja de finas roupas femininas, cabras e vacas pastam, sem ser incomodadas ou enxotadas. A tradição rural do país é mais forte do que qualquer verniz de sofisticação que as cidades reivindiquem. Gilgit foi o único lugar onde um homem, fabricante de calçados, se recusou a ser fotografado, consentindo apenas que eu fotografasse os sapatos. Ficamos menos de uma hora (calor, insuportável) e saímos às 12:10 para Chillas. Transcorrida uma hora de viagem, já é possível se avistar Ferumidu ou Rakhiot, a face norte do Nanga Parbat, a mais bela de todas devido à generosa vegetação e florações em seu entorno. Não à-toa, o lugar recebe o apelido de Fairy Meadows. Entretanto, é a mais perigosa pra escalar em razão dos constantes deslizamentos de neve e gelo que ocorrem em suas encostas. Das três faces, Diamir, situada a oeste, é a de paisagem mais árida porém a menos difícil de ascender. Já a cara oeste, Rupall, é pura rocha, uma autêntica big wall. Chegamos em Chillas às 15:15. O calor está em torno de 40º C, e eu, agora, sentada nos jardins, tenho à minha frente as águas lamacentas do rio Indo. Passarinhos trinam sem parar e besouros tiram fininho de minha orelha. O farfalhar das árvores e o conversê em urdu dos empregados do hotel são minha trilha sonora, quebrada vez por outra pelos roncos e buzinas abafados dos veículos que trafegam na KKH, à beira de onde o hotel foi construído. Venho observando a diferença – sei lá por quê – no estilo de sedução entre chineses e paquistaneses: os primeiros dardejam olhares firmes, evidente a lascívia que deles brota. Já os paquistaneses lançam olhares langorosos, há um não sei que de démodé em tal manifestação. Talvez porque a religião muçulmana funcione como um freio à lubricidade dessa gente. Fecho os olhos e vejo ainda a paisagem vista de dentro do carro se desenrolar a minha frente: um mar de areia e rochas cuja tonalidade varia apenas do cinza-escuro pro cinza-claro. País mágico e encantador este! Pretendo retornar tão logo possa e fazer o trek no Biafo Glaciar cuja melhor época é julho quando, então, as fendas se abrem e são, facilmente, visíveis. Peço café. Trazem nescafé e água quente num bule.....pode? Coisas do Paquistão! Os garçons nem sempre entendem meu inglês mas são tão solícitos e gentis que dá vontade de beijá-los. Aliás, eu por mim beijava homens, mulheres, crianças, cabras e galinhas. Continuo sentada no jardim......tão bom aqui! Uma leve brisa agita os ramos das árvores carregadinhas de flores. Olha que eu gosto de calor, porém o de hoje está demais. Noto uma mocinha muito bonita, de seus quinze anos, vestindo um elegante shalwar e qameez amarelo e preto, tagarelando ao celular. Lança-me um olhar meigo. Eu retribuo sem qualquer esperança que ela se aproxime, afinal, as mulheres são tão arredias! Pois não é que a guria se aproxima? Estamos nós em animado bate papo quando surgem a mãe e a irmã caçula. Ficamos amicíssimas. Tiramos mis fotos (Mehr, não só pede pra eu fotografá-la como me fotografa também!). São de Rawalpindi (abreviam pra Pindi). A mãe, apesar de bem acima do peso, conserva, ainda, vestígios de beleza. Seus olhos embaçam-se depois que pergunto se só tem as duas meninas (numa cultura tão machista quanto a paquistanesa, não gerar um macho deve lançar uma mácula sobre as mulheres, com certeza). Pinta vasos e borda. A mais moça, de uns 12 anos é espevitada, muito engraçadinha. Indagada sobre meu estado civil, exclamam ohs consternados quando respondo que sou divorciada, logo substituídos por ahs de alívio ao saber que não sou infeliz por estar sozinha. São as únicas mulheres, ao longo destes 28 dias de viagem, que não vejo cobrindo os cabelos com dupata, usam-no como echarpe ao redor do pescoço. Estou eu me preparando pra dormir e ouço um toc toc à porta. Abro e me deparo com Mehr, parada na soleira. Vem se despedir. Não dá nem dois minutos, surge o pai. Sou então a ele apresentada. É arquiteto. Pergunta se a filha está incomodando. Eu respondo com o esperado não. Elogio-a, ele fica todo orgulhoso. Não se passam três minutos, e eis a mãe com a caçula pendurada em seu braço. Sem ser convidados, entram todos no quarto. Eu já estou sorrindo amarelo, na verdade, desejaria ser deixada em paz, solita, com meus pensamentos. Mehr deseja tirar mais fotos de mim, agora com o pai junto. Diz que é para eu não esquecer deles. E dá pra ficar aborrecida?
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