terça-feira, 21 de março de 2017

Atolada em neve

21/03/2017 - Terça-feira – 4º Dia de Trek Everest BC - Sete a Junbesi
Saímos de Sete às 8 e 15 com céu de brigadeiro, dia mais perfeito impossível que nem a baixa temperatura - 5ºC – macula. A trilha, linda, quase toda dentro dum bosque de coníferas e floridos rododendros. Destacam-se algumas árvores de lótus em cujos galhos pendem as alvas florescências. Reza a lenda que Buda já nasceu taludinho - 8 aninhos, vejam só! -, parido desta flor. Vai ver por isso é tão formosa. Passamos por Dagchu, no topo da crista duma montanha, onde 2 gurizinhos sentados ao sol, comem arroz usando as mãos. Tanto aqui quanto no Butão o povo dispensa talheres. Com mais ½ hora de caminhada, atinge-se a marca dos 3.000 metros de altitude na comunidade de Bhakange, já em Goyem, onde paramos pra tomar chá acompanhado por deliciosos biscoitos de côco, oferecidos pelo gentil Nir. Sentados ao ar livre, o cenário é deslumbrante. Tudo ao redor está embranquecido da recente neve que tem caído neste final de inverno. A coloração verde dos topos das montanhas é encoberta pela branca cobertura das nevascas. A subida adquire certa dificuldade mas nada que se compare à dos 2 dias anteriores. À medida que nós aproximamos de Lamjura village, a trilha vai se sendo oculta pela neve até que não reste trecho algum do terreno pedregoso. Decorrida 1 hora e 30 minutos chegamos ao vilarejo de Lamjura localizado a menos duma hora do Lamjura Pass. Comemos num misto de armazém e restaurante muito acolhedor. Na cozinha um bom fogo arde no fogão à lenha. Quem prepara a refeição é a dona do estabelecimento. Peço um gostoso veg fried rice e lemon tea que como na rua aquecida pelo sol das 13 horas. Tudo branco, que cenário! Parece cena de filme do Dr. Jivago. O tempo continua magnífico: céu azuladíssimo e sol brilhando sem nuvens a toldá-lo. Vários aviões passam naquele vai-e-vem incessante entre Lukla-Kathmandu-Lukla. O céu até então livre de nuvens começa a ser preenchido de mansinho por elas. Como num passe de mágica, em questão de 10 minutos, baixa cerrada névoa toldando por completo a paisagem. Durante o almoço, batendo papo com uma alemã, fico sabendo que a pobre mulher não pôde continuar além de Namche Bazaar porque lá foi vencida pelo mal de altitude. E olha que Namche está tão-somente a 3.440 metros! Terminado o almoço, retomamos a caminhada subindo outra crista de montanha que conduz até Lamjura Pass. A encosta apresenta espessa camada de neve. Atravesso durante 45 minutos um manto de imaculada e ininterrupta brancura. Dificulta a pisada a fofura do terreno nevado onde afundo algumas vezes até metade da anteperna. Nir, aflito, solta ohs de preocupação nas três vezes que caio no solo macio. Ao alcançar os 3.600 metros do Lomjura Pass, nada se pode avistar exceto as bandeirolas coloridas das preces budistas, típica demarcação de altitudes significativas. A densa cerração esconde toda a região. Logo após cruzarmos o passo, observo com espanto, vindo em sentido contrário, uma moça vestindo camiseta de mangas curtas apesar do baita frio que faz. Elogio-a dizendo que é uma super woman, o que lhe arranca risadinhas. Do passo até Junbesi, só descida em outra linda floresta de coníferas e rododendros. O solo mantém-se ainda firmemente encoberto por neve o que exige cuidado redobrado porque bobeou se torce um pé ou joelho já que a chance de escorregar em tal tipo de terreno é grande. À medida que se perde altura, a neve vai escasseando pra finalmente se pisar em chão batido. Dentre as várias vilas existentes desde o passo, destaca-se a de Tragobuk onde há um monastério. Chegamos a Junbesi, situada a 2.700 metros de altitude, às 18 e 30, quase noitinha. A vila fez parte da rota traçada por Hillary e Norgay na expedição ao Everest em 1953. Foram 10 horas de caminhada em que exigente não foi a subida e sim a descida! Mas valeu tão longa pernada porque o percurso é muiiitoooo lindo!!. Com o sugestivo nome de Apple Garden Guest House, nossa pousada tem sua fachada enfeitada com uma linda roda de orações. O amplo edifício tem 2 pisos e os quartos são de bom tamanho, embora banheiros, por uma óbvia questão econômica, sejam compartilhados, oferecendo-se, contudo, aos hóspedes os 2 modelos: ocidental e buracão. Há eletricidade e plugs nos quartos de modo que posso carregar os dispositivos eletrônicos sem custo algum. No refeitório, uma salamandra é acesa ao final da tarde quando começa a esfriar. A dona da guest dispõe a comida nos pratos com certo requinte, que beleza! O banho de chuveiro custa 250 rúpias, ou seja, 2 dólares e meio, já o de balde custa bem menos. Resolvo não encarar nem um nem outro, porque estou há apenas 4 dias sem me lavar, afora o fato de não precisar dividir cama com nenhum ser vivente. Dá pra resistir uns diazinhos mais. Como aqui não pega NCell, uma das 2 operadoras nepalesas de telefonia celular e internete (no segundo dia em Kathmandu, tratei de adquirir um Sim Card por 48 dólares, com cobertura nacional, conforme apregoa a empresa. Triste engano, igualzinho ao Brasil, a propaganda é enganosa), compro cartão de wifi de 500 Mb por 500 rupias (5 dólares) da outra operadora que dura um dia. Pago o preço, não quero e não gosto de ficar alienada do noticiário. Liberdade pra mim não significa renegar relógio ou manter-me desinformada, e, sim, exercer a opção de me conectar ou não, tá ligado? 
22/03/2017 - Quarta-feira – 5º Dia de Trek Everest BC - Junbesi
O dia amanhece belo, céu azul de brigadeiro, temperatura amena. Resolvo em vez de sair com Nir e Flavio pra conhecer o monastério de Thubten Chholing lavar umas roupas e descansar porque hoje ficaremos nesta aprazível vila. Ademais, a costela que trinquei há quase 2 meses está doendo um pouco, provavelmente de carregar a mochila que, entre camel bag com 1,5 litro de água, e outras bugigangas, deve pesar quase 4 kg. Pra mim é muito considerando que tenho dores frequentes na lombar devido à artrose. O caminho é longo, tenho pela frente mais 19 dias de caminhada até Lukla, sem desconsiderar o segundo trek de 10 dias até o Annapurna Base Camp quando acabar este. Daí por que prefiro me poupar. Aproveito a manhã ensolarada e lavo peças de roupa num tanque cuja “torneira” é uma bela carranca feita em madeira. Em 2 horas as vestimentas estão secas. Respondo a alguns comentários no facebook e publico novas fotos. Terminadas as “obrigações”, dou um rolê pela vila onde há 2 stupas, uma grandona de 300 anos, ainda em reconstrução após os terremotos de 2015 e outra menorzinha, poupada do embate entre as placas tectônicas. A dona da pousada é bem moça, mãe dum casal de piás. Eventualmente perde a paciência com as crias: não chega bem a gritar, levanta, porém, a voz num tom irritadiço. Ocupadíssima, não consegue dar conta de tudo, é claro. Trabalhando o dia inteiro, conta com ajuda na hora das refeições duma irmã e empregada. Um guri duns 12 anos (não é parente) cuida um pouco das crianças e dá uma mão na cozinha descascando batatas e legumes. Quando volto do tourzinho na vila, encontro-a no páteo terminando de dar banho nas crianças as quais enrola em toalhas, pondo-as sentadas em cadeiras uma diante da outra pra se aquecerem ao sol das 11 horas. À tarde, visito um dos 2 monastérios existentes em Junbesi, fundado em 1639, onde compro 2 lindas echarpes de seda amarela. O Lama além de me presentear com a efígie gravada num broche dum notável sacerdote budista (esqueci de perguntar o nome) ainda dá 2 sementinhas cuja função é proteger meus deslocamentos seja de carro, moto, avião ou bicicleta. Pena que não poderei comparecer ao festival budista que acontecerá em abril, aqui, no monastério, porque estarei me deslocando pro norte, rumo ao Eve BC. Nir não é só um guia mas uma babá. Cuida de seus turistas com dedicação genuína. Sua pronúncia de inglês é terrível, ele distorce as palavras duma forma que ficam irreconhecíveis. Contudo sua boa vontade em explicar - se for necessário ele repete n vezes a palavra - é comovente. Prolixo, ele se perde em explicações que mais confundem que clarificam naquele inglês, pra mim, pelo menos, muitas vezes ininteligível. Nurbu, o porter, magro que nem graveto, está carregando além dos 30 kg permitidos. Tudo porque Flavio não respeitou os 15 kg convencionados pra cada um de nós. Chocólatra, o cara pôs na mochila uns 10 kg em barras de chocolate! Sentindo-se culpado, resolve contratar outro porter de modo a aliviar Nurbu de paletear peso extra. Mas nem Nir tampouco Nurbu querem isso. Sempre de olho nas gorjetas, sabem que se houver mais um no staff o dinheiro terá de ser dividido não entre 2 mas entre 3. Consigo dissuadir Flavio da inconveniência de tal decisão, enfim, aceita pelo “piedoso” carioca. Nurbu, quando entra em meu quarto, vasculha, sem qualquer pudor, com seus pequenos olhos escuros, meus pertences espalhados sobre a cama. No início, até desconfiei dele, injustamente, percebendo depois que o pobre rapaz era movido apenas por curiosidade. Chega na guest house um grupo de gurias pedalando mountain bikes, terminando de lotar a pousada. No grupo, há europeias e nepalesas. Como a pousada tem duas salas de refeição, me mudo pra da frente porque a do lado da cozinha está cheia de gente falando alto e gosto de silêncio quando escrevo. Às 16 o tempo vira: o sol desaparece por completo e, agora, 17 e 30, a cerração espalha-se sobre a vila, não se enxergando além de 20 metros. Interessante como os estrangeiros percebem nosso idioma. Associam a uma língua latina, não atinando se é francês, italiano ou espanhol, nem cogitam em arriscar o português, pode? Pelo visto Portugal não representa muito pro resto da Europa!

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