domingo, 5 de julho de 2009

Paso Siula

Desperto, invariavelmente, às 6, depois duma noite mal dormida. Passei frio, o tal saco de dormir que Kaloca me emprestou, feito pra agüentar – 15º C, não é lá dos melhores. Sei lá, como meu amigo agüentou o frio quando foi escalar o Aconcágua. Os nevados são perfeitamente visíveis no límpido céu azul desta manhã domingueira. Às 7:25, iniciamos nossa marcha, na que será a mais longa de todo o circuito: 12 km em 8 horas. Deixamos o acampamento Incahuain, localizado a 4.138 m, contornando a laguna Carhuacocha numa trilha sem maiores percalços. Sou “obrigada” a fotografar o cenário criado pelo reflexo dos nevados Yerupaja e Yerupaja Chico na água esverdeada da laguna. Tanta beleza é de tirar o fôlego. Talvez por isso nem sinta muito o cansaço provocado pela altitude. Estou em estado de graça. Quando dobramos à esquerda, já na finalera da laguna, percebo que ela é alimentada por um rio que desce do glaciar Carnicero, responsável, também, pela formação de mais três lagunas que se situam mais adiante. Ultrapassada a laguna Carhuacocha, rústicas casinhas de pedra com teto de capim têm como cenário luxuoso o nevado Jirishanca Chico. Ao lado de uma delas, encerradas, num curral circular de pedra, enfeitado por bandeirolas coloridas, ovelhas balem quando passamos. É tudo tão bucólico e tão grandioso! Entramos, então, na quebrada Gangrajanca, formada à esquerda pelo cerro Yanacocha, e, à direita, pelos nevados Yerupaja, Yerupaja Chico, Siula e Carnicero, costeando a comprida e estreita laguna cujo nome é o mesmo da quebrada. Os freqüentes desmoronamento de neve do Siula fazem com que paremos para observá-los. A visão dos nevados já não é mais frontal, e sim, lateral, à medida que nos internamos na quebrada Gangrajanca. O céu é de brigadeiro, embora a temperatura não seja das mais amenas. Também pudera, com tanto nevado não há sol que esquente muito estas plagas! Pela primeira vez, vejo turfas avermelhadas. Provavelmente tal coloração se deva ao óxido de ferro trazido pelas águas de degelo do nevado Carnicero, já que suas rochas têm, entre seus componentes, este metal. Inicia-se, agora, uma subida por um dos flancos do cerro Yanacocha, forrado de capim cujos altos e duros talos são usados como forração nos tetos das casinhotas da região. O ascenso é lento porque a estreita ladeira, num zigue zague constante, é muiiitooo empinada. A paisagem compensa toda a extenuante subida porque daqui de cima se avistam as lagunas Siula, separada por uma estreita faixa de terra da Laguna Niñococha ou Quesillococha cujas águas verde-esmeralda são estonteantes. Aos pés da laguna, o extenso glaciar do nevado Carnicero donde jorra altíssima cascata. Seu caudal, quando penetra na laguna Quesillococha, deixa um rastro branco nas águas verdosas. Caminha-se, agora, por um terreno plano de pampa. Mas dura pouco tal moleza. Outra encosta mais íngreme que a anterior conduz ao Paso Siula (e eu pensando que atingira o tal paso no mirante onde avistara as lagunas Siula Quesillocha....ledo, ou melhor, triste engano o meu). A paisagem seria árida se não houvesse esparsos tufos de capim crescendo aqui e acolá no terreno pedregoso. A paisagem, ao contrário daquela vista no início da trilha, onde os exuberantes Jirishanca, Yerupaja, Siula e Carnicero exibem faceiros nevados, limita-se a cerros pelados de vegetação e neve, encimados por modestas e ásperas arestas pontiagudas. Num desnível de, aproximadamente, 250 m, demoro exatos 45 minutos, pra atingir o paso Siula, situado a 4.834 m. Já lá se encontram os dois cozinheiros, Julio e Antonio, que haviam passado, céleres, por nós na trilha, carregando o almoço em suas mochilas. Estendida no chão uma toalha vermelha onde se alinham pratos e talheres de metal. É servida salada de galinha com abas, vagens, mais bolacha cream cracker. O tempo mudou da água pro vinho. Faz bastante frio, e o céu, já bem enevoado, deixa entrever algumas nesgas de céu azul. Por isso, não demoramos muito, e iniciamos a descida, logo alcançando o pampa formado por terrenos encharcados e uma peculiar vegetação cujo substrato duro que nem pedra é uma mistura de raízes e terra, chamada tsampa. É o que nos salva de afundarmos no terreno alagadiço. O sol volta a aparecer e junto traz um pouco de aquanieve, insuficiente, porém, pra molhar a jaqueta. Neste trecho da trilha, avisto o outro flanco do nevado Carnicero e sua cumbre, sucedendo-se os nevados Jurau, com duas cumbres pontiagudas (5.600 m), e Trapecio (5.644 m). Um imponente maciço de rochas, à frente, cuja coloração varia do cinza escuro ao cinza claro, desperta atenção em meio a tantos nevados: trata-se da cordilheira Raura. E o resto do caminho é fácil, contudo, Milton, bem cansado, aproveita, que Flavio, um dos arrieros se encontra junto a laguna Juracocha, dando de beber aos cavalos, e monta num deles adentrando, tal qual um samurai vitorioso, o acampamento Huayhuash, situado a 4.345 m, onde chegamos às 15:30. Enquanto alongo, rola um solzinho que, logo, se recolhe pois nuvens pesadas e cinzentas levam a melhor sobre ele. O lanche de hoje é tudo de bom: pipoca doce e salgada, além das bebidas quentes de sempre. Pipoca ou palomita, como é chamada aqui, aflora meu lado compulsivo. Assim, caio de boca nelas e como até fartar. A ausência de Carmen é sentida, e, questionado, Enrique trata de esclarecer que sua mulher está com muita dor de cabeça causada por uma sinusite. Solidário casal esse: quando um se restabelece, o outro tomba doente! O visual deste acampamento é modesto se comparado aos anteriores. De nevado só o Trapecio que, entretanto, se encontra encoberto. Os demais são cerros despidos de glaciares. Decido que hoje não haverá banho, nem lavação de pés ou de rosto no rio, situado a dois passos de minha barraca, pois venta muito. Dou-me por limpa, considerando a meia sola feita ontem em Incahuain. Digo meia sola porque ré confessa, sem culpa alguma, deixei de lavar cabelo e costas, regiões muito sensíveis às águas geladas. Eu, hein....sou caprichosa mas nem tanto!

Um comentário:

Professora Carla Nogueira disse...

Bea!
Estou me deliciando com seus relatos...
Resolvi comentar nesse pois o final foi o mais hilário de todos...
Estarei enfrentando essa árdua e maravilhosa trilha a daqui exatos 1 mês! Tenho medo de não conseguir...
Obrigada por compartilhar suas experiências!
Bjs
Carla
www.expedicaoandandoporai.com