Carmen e Enrique despedem-se de nós. Seguem outro rumo, acompanhados por Sergio. Agora, basta de descrever tanto a natureza, quero falar um pouco sobre os meus companheiros de trekking. Pois não é que este casal, levemente esnobe, me corrigiu duas vezes quando eu empreguei mal as palavras? Na hora, até me senti meio ofendida, mas depois, num desabafo com meus botões, dei a mão à palmatória. De fato, eu não primara pela exatidão no uso do vernáculo, o que deve tê-los chocado porque ambos se expressam bem pra caramba. Carmen não consegue fugir dum tom levemente professoral quando conversa. Afinal, é doutora em antropologia, lecionando na universidade de Bilbao. Enrique, mais calado, mede, entretanto, bem as palavras antes de falar. Como eu, os dois, também, fizeram o trekking até Concórdia, no Paquistão. Sentirei falta deles e dos bons papos que travamos durante as ceias na barraca-refeitório....por supuesto! Arantza, pequena estatura, pernas fortes, ventre liso e seios firmes (sei disso porque ela ficou sem a parte de cima do biquíni em duas ocasiões em que nos banhamos juntas), temperamento alegre, é uma gozadora. E muito esperta a basca. Seu namorado, Juan, 42 anos, alto, magro, cabelos grisalhos já rareando nas têmporas, tem boca, olhos e nariz grande. Faz o tipo observador, mantendo-se mais reservado que sua falante namorada. Contudo, às vezes, tem uns rompantes, defendendo suas idéias com exaltação. Olha de esguelha pra namorada, sorrindo divertido quando ela larga algumas de suas tiradas engraçadas. Conhecedor de boas marcas de equipamentos e de roupas de montanhismo, forneceu dicas úteis sobre o assunto. Milton surpreende, porque desmente o estereótipo de que os orientais são estátuas impassíveis. Ao contrário, pouco esconde de seu temperamento, tratando de não reprimir alguns ataques de impaciência, em especial, quando eu e Arantza, que falamos pelos cotovelos, queremos bater papinhos com ele durante a jornada. Tadinho, nosso conversê deve atrapalhá-lo em sua concentração pra caminhar, já que se cansa com facilidade devido à altitude. Entretanto, como todo bom ariano, logo se recompõe e volta às boas conosco. Já com o grupo dos 8, o contato não é tão íntimo porque eles fazem as refeições em outra barraca. São muito animados e soltam ruidosas gargalhadas enquanto conversam durante o jantar. O líder (eu não sei se ele é mesmo o líder, pero que tem pinta de mandão, isso tem) chama-se Casemiro. Quase todos são aposentados e pertencem a uma associação de montanhistas, em San Sebastian, onde vivem. Em excelente forma física, embora na faixa dos 60 anos, dão olé em muitos jovens. Juro por deus, quero ser igual a eles quando crescer! Entabolei conversa com apenas três: dois homens e a única mulher do grupo, a discreta Beatriz, minha xará. Gente finíssima, Sérgio, o dono da Nuestra Montaña, quando mais jovem escalou vários cerros de seu país. Tem temperamento bonachão, e sua prosa flui agradável. Findas as despedidas, partimos do acampamento Viconga às 8:10. Durante duas horas de subida constante, a presença do Cuyoc (5.500 m) e Puscanturpa, com suas cumbres norte (5.430 m) e sul (5.422 m), enfeita a paisagem. À esquerda, apesar de não tão belo quanto estes dois nevados, o comprido cerro Pumarinri. Com raros claros azulados num céu severamente nublado, chegamos ao mais alto dos pasos, o Punta Cuyoc, situado a 5.000 m de altitude, às 11:30. A subida, embora não seja íngreme, cansou porque foram mais de 3 horas de ininterrupto ascenso. O glaciar Cuyoc é esplêndido e sua impressionante língua de gelo, pendendo da encosta do cerro, dói nos olhos de tão branca. Aqui, no alto do paso, é possível admirar a grande extensão nevada do pachorrento Leon Dormido. Mais além, outros picos da cordilheira Raura, esses, sim, cobertos de neve. A descida, a partir do paso, cuja duração é de apenas 45 minutos, é uma pendente, em ziguezague, e exige cuidado, porque o terreno arenoso é escorregadio demais. Bobeou, o nego se estabaca no chão. Sobressaindo, em meio ao areal, uma alta pedra, com um interessante formato, lembra, dependendo do ângulo, ora uma bigorna ora um torso humano. O nevado Cuyoc, à medida que o contornamos, perde a neve que até então o recobria, revelando paredes rochosas cheias de largas fissuras em cuja coloração escura sobressaem toques avermelhados. Já é possível avistar os nevados Trapecio, Jurau, Carnicero, Sarapo (belíssimo, seu glaciar exibe formato triangular), Siula e Yerupaja, mostrando, dessa feita, suas faces oeste. Infelizmente, gordas nuvens brancas não permitem vê-los com clareza. Mesmo se o céu estivesse limpo só seriam visíveis uma parte de seus flancos e as pontas de suas cumbres porque todos se quedam atrás do cerrro San Antonio que os cobre parcialmente. O restante da caminhada, coisa de pouco mais de uma hora, é moleza. Percorrendo uma região de pampa, ao longo da quebrada Huanac Patay, chegamos, às 14 horas, ao acampamento Elefante, cuja altitude é de 4.400 m. Almoçamos e somos obrigados a nos recolher às barracas porque uma aquanieve insistente não permite que fiquemos ao ar livre. Das 18:30 às 21:30, a aquanieve transforma-se em pesados flocos de neve. Quando saio da barraca pra jantar, o chão, branco, resta encoberto por um manto de neve duns 4 cm de espessura. O cerro San Antonio que, até ontem, exibia em seus flancos uma viva cobertura vegetal, agora, apresenta-se toldado de branco. Assim, também, os tetos das barracas. Tanto é o frio que perdemos o ânimo de ficar um tempo conversando na barraca-refeitório, após a ceia, como é usual. Vez por outra, a lua cheia rompe a barreira das nuvens, embranquecendo, mais ainda, o alvo cenário ao redor. E a precipitação de neve continua noite adentro. Pra completar o desconforto causado pelo tenebroso frio, um dos cães de Flavio, um dos arrieros, late, incessantemente, durante a madrugada. Trata-se duma alma aflita esse perro?! Será de frio, fome, ou tesão? Sabe-se lá! Mas que é incômodo dormir com esse barulho, ah, isso é! Só não saio da barraca pra jogar uma pedra nesse maldito cachorro porque tá muiiiitoooo frio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário