domingo, 12 de julho de 2009

Paso Pampa Llámac

Como todas manhãs, acordo com uma temperatura abaixo de zero, hoje, todavia, um pouco mais alta que as anteriores: - 1ºC. Atmosfera clara, serena, num céu desembaraçado de nuvens. Final de trekking, infelizmente! E nos aguarda, ainda, o derradeiro paso: Pampa Llámac (4.300 m). Deixamos o acampamento Inca Wain às 8 horas, percorrendo uma boa extensão de pampa, banhada pelo curso estreito do rio Jahuacocha. Quando ingressa na quebrada Pacclón, o rio cava um fosso e suas até então pacíficas águas transformam-se em turbulentas corredeiras, passando a ser chamado Atchin (numa tradução livre, Espirro). Parentêsis, parêntesis: por favor, nem levem a sério essa minha espúria tradução, pero não resisti à gozação, barata, eu sei. Os matutinos raios solares oferecem um mágico efeito luminoso quando incidem na neve que caiu durante a noite: os minúsculos flocos, ainda não de todo dissolvidos, adornam com seu brilho de diamante os talos de capim que recobrem o solo por onde trilho. Um show impossível de ser compartilhado já que os recursos de minha máquina digital são insuficientes pra capturar tal beleza.....uma pena! A quebrada de Pacclón, um largo e plano vale, é cercada em ambos os lados por altas montanhas que lançam extensas zonas de sombra na paisagem por onde passamos. Olho pra trás e vejo cada vez mais distantes os nevados Rondoy, Jirishanca, Toro e Yerupaja. Uma fina nuvem paira sobre este último cerro, tal qual um longo véu de noiva, coroando seu cume. À medida que ganhamos altitude, abandonamos a região sombreada da quebrada e ingressamos no território ensolarado da encosta superior do cerro que estamos ascendendo. Nada de muito exigente as primeiras duas horas de caminhada, margeadas pelos indefectíveis currais de taipas, destacando-se aqui e ali arbustos floridos de amarelo. Cruzamos bosques de queñuales com seus belos troncos retorcidos e pego, caída no chão, a casca de um deles. Dessa feita, o meu recuerdo do trekking será um objeto do reino vegetal. Mas tanta moleza tinha de acabar! Embora a subida até o paso apresente só 300 m de desnível, é dura e bem íngreme! Além do mais, estou sentindo os efeitos da fadiga dos 9 dias de intensa caminhada. Assim, não me faço de rogada e aceito o amável convite de Julio pra montar seu cavalo. Dá um medinho porque o cavalo vai rente às bordas dos precipícios. Quando chego ao alto do cerro que suponho ser o paso (na verdade, o paso localiza-se mais adiante) desmonto, contente de pôr o pé em terra firme. Prefiro caminhar a ficar encarapitada no alto do cavalo. Sei lá se o bicho, de repente, não resvala nas pedras e lá vou eu despencando morro abaixo! Finalmente, chegamos ao paso, de onde já é visível um pedaço da cordilheira Blanca, situada ao norte. Alguns dos membros do grupo dos 8 sacam seus celulares (aqui já há sinal) e conversam, entusiasmados, com seus familiares, provavelmente, dando detalhes do trekking que finda. Depois do paso, numa descida interminável de 2 horas, (pra mim pareceram 4 horas), caminhando sob um sol, brilhando inclemente num céu de brigadeiro, o calor se faz sentir. Paro e retiro os agasalhos, ficando só de manga curta. A descida é bem chatinha, cheia de pedras e areia fofa. Como sempre, fico pra trás, caminhando, cautelosamente, porque tenho medo de levar algum tombo. Além do mais, aproveito e curto, sem pressa alguma, meus últimos minutos de caminhada. Um bosque de cáctus, alguns floridos de vermelho, crescem altaneiros ao lado da estradinha. Impressionante! Nunca vira tanta quantidade e tão altos assim! Já avisto os telhados metálicos de Llámac, brilhando lá embaixo. Pequena e pitoresca, a pequena vila, situada a 3.300 m de altitude, tem na sua entrada pequenos sítios protegidos por muros de pedra. E novamente rola outra discórdia. Tudo porque Richardi, a uma certa altura da descida (talvez porque eu estivesse num passo lento demais), se mandara com o grupo me deixando pra trás. Isso me põe nervosa e irritada pois nem sei direito onde é o lugar onde o ônibus nos espera. Peço então à Vivi, que caminha mais à frente, que me espere. A irritação, porém, leva a melhor, e, quando chego ao ponto de encontro, vou direto e reto pra cima de Richardi, reclamando, energicamente, por ele ter me “abandonado”. Minha relação com o casal, que já andava estremecida por conta de desavenças anteriores, deteriora-se em definitivo, quando Juan, o protetor dos fracos e oprimidos, mais uma vez, toma as dores pelo guri, intrometendo-se de pato a ganso na conversa. Rispidamente, fuzilo-o com os olhos e ordeno-lhe que não se intrometa. Richardi, sentindo que a briga é de cachorro grande, escapole rapidamente. Fico, depois, sabendo o motivo da pressa do guia: ele queria chegar antes das 13 horas, horário combinado de nossa partida pra Huaraz, a fim de tomar banho na vila. Gurizinho caprichoso este! Claro está que um pouco depois, mais calma, sem Juan interferindo, procurei Richardi pra aclarar o mal entendido. Finalizamos a conversa, apertando as mãos, sem rancor algum. A estrada de Llámac a Huaraz, de chão batido, me parece mais perigosa que aquelas percorridas no Paquistão, impressão confirmada por Bea, minha xará basca, que também esteve lá. Em ziguezagues contínuos, a estreita e sinuosa via, recortada nas encostas das montanhas, descortina profundos precipícios em cujos fossos escorrem as águas agitadas dos rios. Ao longo duma boa parte do trajeto, avistam-se, ainda, os nevados Ninashanca, Rondoy, Jirishanca, Yerupaja e Siula, substituídos, à medida que nos aproximamos de Huaraz, pelos nevados da cordilheira Blanca. Analiso, enquanto viajo, os motivos por que nós três, Juan, Arantza e eu, estamos tão emburrados a ponto de trocarmos palavra alguma durante as 4 horas em que permanecemos enclausurados no ônibus. Pra mim, a semente do azedume foi plantada a partir do episódio ocorrido no paso Yaucha, cujo pivô foi o inocente Richardi. Por supuesto, o episódio das gorjetas foi outro golpezito. E o antepenúltimo golpe, a discussão - vamos colocar assim - causada por motivos econômicos, dois dias atrás, no acampamento Inca Wain, abalou mais ainda a já frágil reserva de boa vontade dos bascos comigo. Sentados na barraca-refeitório, bebericando nossos chazinhos pós-ceia, sei lá por que cargas d’água, Arantza e Juan começaram a se queixar da perda de poder aquisitivo nos Países Bascos, quando da substituição da peseta pelo euro, com a consequente desvalorização da antiga moeda espanhola. Seus argumentos mais lembram as lamúrias de pequenos burgueses. Partindo de comunistas, isso me causou perplexidade...que durou pouco, entretanto. Como adoro uma discussão (meu filho diz que sou uma encrenqueira nata), provoco-os, afirmando que, apesar da unificação européia, seu padrão de vida é bem melhor que o existente no Brasil. Astuciosos, porque já haviam especulado dias antes o preço dum imóvel na cidade onde moro, jogaram em minha cara que, com 120 mil euros, só poderiam adquirir um apartamento de 60 m², ao passo que, no Brasil, a mesma quantia compraria um de 150 m². Consideram tal argumento, os babacas, o cheque-mate que poria fim à discussão. Já um pouco enjoada do bate-boca (enfezadíssimos os dois, tanto que o tom de voz até subiu duas oitavas), ainda mais depois que Arantza resolveu me chamar de hombre, obrigando-me a pedir-lhe, energicamente, “no me llames así, Arantza, soy mujer” (e não é que a basca, sei lá se por implicância, ou se por cacoete de linguagem, continuou a me tratar desse jeito?), lancei na cara deles, numa manobra diversionista, que os brasileiros conheciam muito mais sobre a Europa do que eles sobre o Brasil. Consegui desconsertá-los momentaneamente. A Juan, mais que à indomável Arantza. Embora tenha fornecido um bom mote pra que exercessem a famosa autocrítica, tão típica de todo comunista que se preza, eles mantiveram aquele papinho ressentido sobre os efeitos deletérios da unificação européia. Engraçada essa gente, passei o trekking todo escutando eles tecerem loas sobre seu país. Incentivava-os, inclusive, indagando, sobre particularidades de sua terra. Já eles, em raríssimos momentos, manifestaram interesse em obter informações sobre o Brasil. E eu e Milton, na maior polidez, nos esforçando em falar espanhol – vá lá, portunhol! -, bem como procurando entendê-los, mesmo quando falavam naquele jeito rápido deles de metralhar as palavras. E pensam que se comoviam, quando pedíamos “por favor, hablen más despacio?” Só não!! Continuavam a cuspir as palavras num frenesi verborrágico. E, nós, quando nos arriscávamos a falar português, erámos fulminados com “no entiendo....no entiendo”. Mas tudo acabou em pizza! Se figurativamente? No, no! Explico: Arantza, quando já estávamos em Huaraz, bate à porta de meu quarto, convidando-me a cear com eles mais Milton no El Horno, uma das tantas pizzarias da cidade, localizada no Parque del Periodista. Comunistas porém politicamente corretos....estranha combinação! Satisfeita com tal happy end, saio do restaurante, voando as tranças, rumo ao hotel buscar minha bagagem. O ônibus pra Lima parte às 23 horas e já são 22. Durmo que nem uma pedra durante a viagem, e desperto solamente na capital peruana. Despeço-me de Arantza e Juan, que também viajaram juntos comigo, e me mando pro aeroporto. É.....já estou com saudades! Hasta la vista arrebatador Peru!!

Um comentário:

Professora Carla Nogueira disse...

Legal!
Ótima viagem, lindas fotos e boas lembranças ficaram, né?
A zique zira do bate boca foi o máximo!
Carla