O acampamento está sendo desmontado. Os porters atarefados arrumam suas cargas enquanto Ali, acocado, os observa pitando um cigarro. Uma mula também integra a expedição. Carrega querosene, fogões e sacos de 20 kg de farinha. Devemos partir, segundo meus cálculos, às 07:15, o que de fato ocorre. O dia está lindo, um céu azul, imaculado, quanta diferença de Islamabad com seu céu quase sempre nublado. Promete ser outro dia de muito calor já que durante a noite não fez frio. Ontem, comi uma sobremesa, o kheer. Trata-se de um mingau de arroz, leite, amêndoas e erva doce, deveras saboroso. Apesar de a lua não se mostrar após o escurecer, só dá as caras tarde da noite, já que em fase de crescente timidez, de manhã, quando acordo, está lá em cima, claramente, visível, acompanhando meu caminhar até o sol ofuscá-la por completo. O percurso, ainda, segue o curso do rio Braldu, filhote do degelo do Baltoro Glaciar; as margens, em alguns pontos, elevam-se bem acima do leito, atingindo uma altura em torno de 40 metros. Durante o trajeto, muitos daqueles arbustos espinhentos em que floresce a linda flor cor de rosa com 5 pétalas e miolo amarelo. Chegamos em Bardumal às 10:50 onde paramos pra almoçar. Há uma construção de pedra com três peças onde os porters acendem os fogareiros e preparam a comida. O tráfego destes homens indo a Concórdia e retornando a Askole continua intenso. Daqui ouço o marulhar forte do rio. De repente, chama minha atenção a algaravia, nervosa, em urdu, dum velho batendo boca com Ali. Divertido, meu guia mais escuta do que fala. Curiosa, não resisto e questiono-o. Ele, jocosamente, conta que o velho exige dinheiro pela nossa permanência no local. Pergunto por quê, intrigada. Ali explica que os acampamentos são propriedades particulares, assim a cada proprietário é permitida a cobrança de estadias pelo uso do terreno. Ali, entretanto, defendendo nossos interesses financeiros, nega-se a pagar: “Bitriz, we just stay here one hour...this owner doesn’t have any reason to demand money.” Esse guia é tudo de bom!! Saímos de Bardumal às 11:50. Durante o trajeto, Ali esclarece que o pico à minha esquerda é o Paiyu. Sempre costeando o rio, seguimos, agora, por um caminho onde se pisa sobre pedras rentes à água. Olho em torno e me vejo num vale cercado, nos seus 360º, por montanhas. Um desbunde! Apenas o branco da neve nos topos e encostas quebra a monocromática tonalidade marrom das rochas. Vejo à minha frente um enorme aglomerado de torres de granito, em que despontam cumes pontiagudos e irregulares, quase descobertos de neve: este paredão cor de chocolate são as Trango Towers. Atrás, um ponto branco, o K2. Decepcionantemente pequeno dessa distância. Avisto, longínguo, também, o Broad Peak. O céu mantém-se azulado, nuvem alguma perturba sua coloração uniforme. Estou cansada, também, pudera; além de a temperatura estar em torno de 36º C, já atingimos 3.400m. Um ponto verde se destaca na paisagem: eis Paiyu. Lá há muitas árvores e, portanto, sombra, aleluia (!), artigo raro durante o trekking. São 14:10. Calculo mais uma hora de caminhada até lá. Mesmo nesta altitude há moscas e das grandes. E a companhia constante dos rios e do fio do telefone satelital. Chegada em Paiyu às 15:50, um lugar super legal. Minha barraca é montada embaixo duma frondosa árvore. Coisa boa porque, ontem, em Jhola eu não sabia o que era mais refrescante, se ficar na barraca, uma autêntica sauna, ou se do lado de fora, num clima de antecâmara do inferno. Diante da barraca, há o lindo arbusto florido de rosas e uma montanha com o topo coberto de neve. Parece cartão postal! O camping está lotado: afora as duas expedições de escaladores e uma de trekkers, há a nossa. Sem falar nas centenas de porters que as acompanham. Uma muvucagem pra lá de excitante! John, o guia-chefe de uma delas, um paquistanês carismático, aproxima-se e começa a conversar. Conta que trabalha há 24 anos nessa profissão. Orgulha-se de já ter guiado vários escaladores de elite, entre eles Hans Kammerlander, famosíssimo no meio, por suas tentativas de descer esquiando do topo até o acampamento-base os montes Everest e K2. Convida-me a ficar em sua casa, com sua família, quando eu for a Hunza Valley. Algumas expedições de escalada são tão sofisticadas - a de John é uma delas - que, afora o cozinheiro, levam, ainda, o assistente de cozinheiro e um, pasmem (!), lavador de pratos! Fico sabendo, pra meu desconsolo, que não vai ser possível a travessia do Gondoghoro La. As crevasses no seu topo estão enormes, sendo complicada a passagem. Só pra profissionais, não amadores como eu....snifff. Isso vem acontecendo desde o ano passado....coisas do aquecimento global. Mas, bah, nem tudo está perdido, pois não é que hoje haverá uma festa?! Desço a trilha que leva aos toaletes e peço a Mussa, meu porter, que encha de água um enorme balde. Entro na pequena cabine. O banho é de canequinha e a água gelada, escorrendo sobre meu corpo, faz com que eu solte gritinhos estridentes. Tão bom tudo isso!! Quero estar reluzente e cheirosa pro festerê à noite! Lá pelas 21 horas, os porters fazem um círculo e, utilizando seus containers como tambores, iniciam a cantoria. Homens entram na roda e dançam; alguns aos pares, outros, desacompanhados. Manuseiam, em elaboradas e delicadas evoluções, as mãos. Percebo a nítida herança indiana nesses movimentos. Eles não se drogam, não enchem a cara, como nós ocidentais, e são bem mais espontâneos e descontraídos. Sabem se divertir, sem a necessidade de qualquer aditivo. Pra refletir. John não aceita minha recusa e me baixa da pedra, onde estou sentada, até o chão, pelos sovacos, como se eu fosse uma pluma. Sou, assim, obrigada a entrar na roda......e danço, tentando, canhestramente, imitar os bailarinos. Lá pelas tantas, meu querido guia exibe faceiro seus dotes artísticos, evoluindo com graça na rodinha. Observo que os movimentos suaves não excluem a evidente virilidade daqueles homens. Encantadores! A festança dura até 23 horas quando, então, o acampamento silencia. A noite, estreladíssima; um show atrás do outro.
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