sexta-feira, 27 de junho de 2008

Khaburse

Às 5 a lua reflete, pela metade, seu brilho branco no azul esmaecido do céu. Como não está frio, visto apenas um moleton de fleece pra ir ao banheiro. Agora, 6:30, finas nuvens cobrem o céu toldando-o de longe em longe. O acampamento está quase vazio. Os espanhóis há coisa de meia hora se mandaram em passo acelerado. Só nosso grupo e alguns porters, remanescentes da expedição espanhola, ainda se quedam cá. São 6:50 quando partimos em direção a Urdukas. No início da jornada, vai ao meu lado um colombiano, o José. Falante e simpático (aliás, até agora não encontrei, graças a deus, ninguém antipático), o rapaz revela que é proprietário duma agência de turismo em Bogotá. É sua primeira viagem ao Paquistão e acompanha Fernando Gonzáles, seu compatriota, conquistador de 7 das 14 montanhas com mais de 8.000 m. Vão tentar o GI. Depois de um agradável bate papo, despede-se, e vai ao encalço de seu amigo, já bem à frente. O caminho, agora, sim, se faz íngreme, cheio de altos e baixos, em especial quando entramos no Baltoro Glaciar. Fico desapontada porque imaginava esta superfície de gelo, com aproximadamente 60 km de extensão, toda branca. Qual o quê! Coberta por pedras e terra, só consigo acreditar mesmo que estou andando num dos maiores glaciares do planeta, quando empurro com o pé o cascalho que o encobre. Daí, sim, certifico-me de que caminho sobre um gigantesco bloco de gelo. O céu adquire uma coloração fortemente azulada, e a temperatura começa a esquentar pra valer. As pequenas moscas não dão tréguas, incomodam à beça. Incrível, porque estamos a mais de 3.500 metros! Não à toa, alguns porters carregam na mão um galho de flores arroxeadas: com elas espantam esses infames insetos! Paro várias vezes, não só pra descansar – está sendo bem puxada essa trilha, confesso! - quanto pra apreciar a linda paisagem onde se destaca, nitidamente, o Paiyu Peak (6.610 m), uma larga formação rochosa coberta de neve no topo. Quando estava no acampamento de Paiyu, não o enxergava bem - apenas uma pontinha de seu cume - já que escondido por outras montanhas. Agora, mais à distância, sobressai, na paisagem, toda sua imponência. Encontro, no caminho, um grupo de trekkers retornando a Askole; esqueço, porém, de indagar de onde são. Ali aponta uma gigantesca estrutura rochosa a nossa frente: são as famosas Trango Towers, preferidíssimas dos escaladores, especialistas em big walls. Algumas encostas de montanhas apresentam-se, ainda, atapetadas de grama. Começam a surgir arbustos rasteiros, alguns apenas com folhas, outros há em que brotam flores de diversas colorações: roxas, magentas, fúcsias, amarelas, vermelhas e brancas. Alguns lagos de águas verdes quebram a tonalidade ora bege, ora cinzenta da paisagem. Escuto um barulho imaginando ser uma cascata...qual o quê! é de água, não, e, sim areia escorrendo de uma ribanceira. Atravesso um rio pulando de pedra em pedra, tal qual uma cabrita. Estou cansadíssima. Paro seguidamente. Quando menos espero, Ali e Niaz, sentados (os porters há muito seguiram em frente), fumam, enquanto me aguardam, com um ar, displicentemente, divertido. E eu botando os bofes pela boca...putz grila!! Fico sabendo por um espanhol - vindo de Concórdia - que Urdukas está fedendo muito, moscas demais e pouca água. Diante disso, afora meu evidente cansaço, Ali decide acampar em Khaburse (pronuncia-se cobursê, e significa o nome duma planta muito cheirosa, comestível apenas por animais) onde chegamos às 13:15. Este acampamento não tem a mesma estrutura do de Paiyu, justo uma casinha de pedra, residência do proprietário das terras. De um córrego estreito, onde escorre um minguado filete d’água, é retirada a água, após devidamente fervida, para fazer comida e também beber. A paisagem é muito legal. Cercada por várias montanhas e torres de granito, destacam-se as Trango Towers, formidável maciço rochoso com quatro cumes identificáveis, sendo os mais badalados a Trango Tower ou Nameless Tower (6.239 m) e a Great Trango, a maior agulha das quatro com seus 6.286m. Disputam a atenção, ainda, Cathedral Peak (5.866 m), Liligo Peak (5.600 m) e Uli Biaho (6.109 m), todas lindas, lindas, lindas. Já acomodada na barraca, escuto o barulho da chuva tamborilando no teto. Um vento forte começa a soprar. Entra um bocado de areia nos meus domínios e meus pertences cobrem-se de uma fina camada de pó. Curto, daqui de dentro, dois cavalinhos recém chegados de Bardumal, tentando retirar alfafa dum saco caído ao chão. Um deles leva um cincerro ao pescoço. Tão gostoso o tilintar do sininho! Alguns porters montam, ao lado da minha, duas outras barracas, pertencentes a uma expedição cujos membros ainda não chegaram. No dia seguinte, conversando com eles, um casal, descubro que são trekkers e trabalham na embaixada do Canadá, em Islamabad. O vento se foi, a chuva, entretanto, permanece. Sinto, de repente, meu rosto molhado. Pois não é que a barraca tá vazando água? Grito por Ali, energicamente. Logo aparece ele, seguido de Muhammad e Mussa. Trazem um plástico para vedar as goteiras. Como minha barraca está justo ao lado do córrego, peço-lhe que a transfira de lugar. Sei lá, vá que continue a chover, e o tal córrego se transforme num riachão. Transportam-na para um local mais elevado. Aproveito, então, e peço que virem a abertura de entrada para Liligo Peak: assim, poderei ver, daqui de dentro, a espetacular paisagem desta montanha! Terminada toda essa faina, não é que a chuva estanca?!! Mesmo assim, veio a calhar a chuvarada, o ar tornou-se mais fresco e as malditas moscas sumiram do mapa. As montanhas ao redor estão encobertas por denso nevoeiro, cenário um tanto quanto espectral. Adoro tudo isso!! Se, inclusive, o conde Drácula fizesse uma aparição, eu, com certeza, podem crer, soltaria gritinhos, de tão deslumbrada estou. Pra completar o climão, estamos a 3.800 metros. Estou desconfiada de que sofri uma bela contratura na coxa direita. Era só o que me faltava! E foi coisa à toa: quando abaixei pra entrar na barraca, ao chegar aqui, senti um estirão no músculo. Muhammad chega à porta de minha tenda, avisando que a janta está pronta. Niaz preparou um delicioso sopão. Apenas Ali e eu jantamos. Niaz e os porters, Muhmmad e Mussa, preparam chapatis num canto da barraca-refeitório. Só irão comer após o término de minha refeição. Aos outros três porters não é permitido freqüentar a barraca-refeitório, daí que acampam em local mais afastado, lá preparando sua comida. Como sempre, Ali e eu conversamos enquanto bebemos um escaldante chá verde. Magro e ativo, ele é simpaticíssimo. Adora sua profissão. Seu sotaque é tão ruim que demorou um eito até eu entender que “sonou” era “snow”. Apesar das dificuldades no idioma, conseguimos nos entender razoavelmente. Como todo guia de alta montanha, já trabalhou em várias expedições de escalada, fixando cordas entre um acampamento e outro. No K2 (8.611 m), subiu até 7.400 m, além da participação em um resgate; no Gasherbrum 2 (8.035 m), atingiu o campo 2; já no K7 (6.934 m), fez o cume. Dou-lhe trela, e ele não se faz de rogado. Prossegue em sua biografia, contando orgulhoso que iniciou a trabalhar, no turismo, aos 16 anos, como porter, durante as férias escolares. Depois, foi sirdar, assistente de cozinheiro, cozinheiro e assistente de guia, até a atual função, que vem exercendo há 12 anos. Para tanto, fez um curso técnico de 1 ano. Exausta do longo dia, desejo "good night" a todos e vou embora. Minha perna está incomodando, portanto, ingiro, antes de dormir, um relaxante muscular e um antiinflamatório pra prevenir maiores complicações. Oxalá não seja nada grave! E a chuva reinicia, pois, pois...

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