Após uma noite mal dormida, desperto às 6 da manhã. Nem a quantidade de roupas vestidas, tampouco o saco de dormir, foram suficientes pra me aquecer satisfatoriamente. Neste tipo de clima, tem de ser um de –10º C e o meu é de -5º C. Parou de chover e o sol deu as caras, embora seja preocupante a quantidade de espessas nuvens, especialmente, pros lados de Concórdia. Hoje, sim, consigo avistar, nitidamente – ontem, fora impossível -, os espalhados e irregulares flancos nevados da linda montanha Masherbrum. Os nativos deram-lhe este nome - masher significando arma, e brum, montanha - devido à semelhança de sua forma à de uma arma de fogo. Olha gente, tive de fazer um certo esforço de imaginação para visualizá-la desse jeito, e mesmo assim....sei não. Saímos de Goro I às 7:50. Gostei demais do lugar, um mundo encantado em preto e branco. Damos uma parada para almoço às 11:45 e às 12:30, retomamos a caminhada. Ainda que o percurso apresente as indefectíveis subidas e descidas sobre o cascalho preto, não é dos mais extenuantes. Encantada, atravesso corredores formados por gigantescos blocos de gelo. A paisagem, na falta de melhor palavra, é sen-sa-cio-nal. O tempo que, durante quase toda a manhã, não se houvera revelado camarada – deveras nublado até então –, após o almoço, começa a melhorar: as nuvens espairecem, permitindo que o sol - oxalá assim continue - desponte com certa energia, realçando com seu brilho o contorno das montanhas e dos altos picos, cujas abruptas escarpas, ora se apresentam desnudas, revelando sua tonalidade cinza chumbo, ora vestidas pudicamente com o branco manto de gelo e neve que os recobre. Destaca-se na paisagem o Mitre Peak (6.025m). O caminho continua sendo um sobe e desce constante. As nuvens não permitem que se aviste, com nitidez, o Broad Peak e o K2, considerada a segunda montanha mais alta do planeta com seus espetaculares 8.611 m. Fico pensando que se a face sul do K2 é considerada mais difícil do que as duas do Everest, pior ainda deve ser sua face norte, localizada na China. Só o trekking de aproximação ao campo-base dura "rapidinhos" 30 dias! Visíveis, contudo, os lindos picos Marble (6.256 m) e Cristal (6.252 m), situados um pouco antes daquelas duas montanhas. As águas de degelo continuam a escorrer através do cascalho que assoalha o glaciar. Afinal estamos no verão e os efeitos desta estação já se fazem sentir na região. Um pouco antes de chegarmos a Concórdia, outro posto do exército, construído à semelhança de um iglu, justifica tais cuidados com a segurança: a região é zona de fronteira com a China, conquanto seja um país com quem o Paquistão mantém cordiais e profícuas relações comerciais. O ar frio e a baixa pressão atmosférica produzem precipitação de água-neve que se dissolve rapidamente ao cair. Chegamos em Concórdia às 3 da tarde e já se encontram instalados dois dos espanhóis que estavam com Carlos Soria em Paiyu. São trekkers e seguem amanhã pra Broad Peak onde vão se reunir à expedição liderada por seu conterrâneo, permanecendo no acampamento-base por três dias. Convidam-me a participar dum jogo, segundo eles muito popular na Espanha, que consiste no lançamento de pedras – três tentativas - numa estaca fincada na terra, de modo a derrubá-la. Não acerto uma. Agora, consigo avistar o K2 e o Broad Peak, ainda que espessas nuvens os encubram parcialmente. Já percorri 87 km desde Askole. Sinto-me ótima embora vente e faça muito frio. Não é pra menos, afinal a altitude é de 4.600 metros. Desde que iniciei o trekking, uma indignação vem crescendo dentro de mim à medida que constato a falta de consciência e o descaso, tanto dos porters quanto dos turistas, largando sujeira ao longo das trilhas. Aqui em Concórdia, entretanto, o lixo atinge seu apogeu. Este belo cenário, de onde se pode contemplar algumas das mais magníficas montanhas do planeta, encontra-se, lastimavelmente, cheio de entulho: pilhas e mais pilhas de latas enferrujadas de comida das mais diversas procedências, papel higiênico usado e carteiras de cigarro vazias, além de diversos outros resíduos, jogados com displicência no chão. Além de ferir profundamente meu senso estético, chocante a falta de consciência e desrespeito dessa gentalha com a natureza (gentalha, gentalha, sim!! como diz, com propriedade, um dos meus ídolos, o Chavez; não confundam, por favor, o excelente ator mexicano com o seu bufão homônimo da Venezuela!!). Poucos são os que tratam de carregar seu lixo pessoal, porque, claro, dá trabalho, sei por mim. O resultado é o descarte do lixaredo nos acampamentos, aqui elevado à enésima potência. Olhando pros morretes de entulho, lembro da breve palestra do funcionário do Ministério do Turismo, quando fui fazer o briefing em Islamabad, discorrendo entre outras coisas sobre as dezenas de containers retiradas pelos porters no final da temporada de verão quando, em mutirão, percorrem os mais de 120 km da trilha toda, cujo início é em Askole e final na vila de Hushe. Isso poderia ser evitado se todos agissem com um pouquinho mais de cuidado. Para o sul, o tempo está fechando, ainda que vez por outra o sol surja dentre frinchas de robustas nuvens. Da minha tenda, avisto o Broad Peak e o Gasherbrum 4 (gasher significa bela, e brum, montanha). Conversando com Ali sobre montanhismo, surpreendo-me com a revelação dos riscos envolvidos na escalada deste segundo pico. Explica ele que, embora o G4 seja um 7 mil, é bem mais perigoso devido aos constantes deslizamentos de gelo e neve que guarnecem suas encostas, se comparado ao Broad Peak com seus 8.047 m. Vejo os tais pássaros pretos voando em várias direções. Ainda há pouco, um deles pousou no teto da barraca e se pôs a assoviar. Coisa mais querida! Olha só o que são os mal entendidos quando não se sabe falar direito um idioma estrangeiro. Ontem quando perguntei ao Ali a idade de sua esposa, entendi, quando respondeu, que sua mulher seria Niaz. Bueno, aceitei na boa, considerando a tolerância ao homossexualismo existente no país. Hoje, resolvo, novamente, questioná-lo - por descargo de consciência - até porque não gosto de fornecer informações incorretas. Ali sorri e, deliciado, exclama, divertido "oh, no, no, Biá". Pede, sussurrando, que eu não comente nada com Niaz, enquanto faz engraçadas caretas pelas costas do outro, soltando risadinhas de satisfação pelo nosso segredinho. Aceito a conspiração, é claro, com muito gosto. Este Ali é um baita gozador, isso, sim! Mais do que não saber falar bem inglês, lamento mesmo é não entender patavina de urdu. Como não aproveitaria mais a viagem se pudesse me comunicar fluentemente com os paquistaneses. Ia extrair tantas informações interessantes deles, ora se ia!! À tardinha, visito os três porters em sua “casinha”. Abrigados no interior duma construção circular feita com pedras e coberta com plástico transparente, ficam muito contentes com minha presença. Sou convidada pra tomar uma sopa que está sendo preparada pelo mais velho dos três. Engulo, sem vontade, a insossa mistura de água e farinha, e, levantando o dedão enquanto balanço a cabeça pra frente e pra trás, sinalizo que gostei. Fico sabendo depois que justo o mais velho deles não tem saco de dormir. E sua indumentária consiste numa calça, camiseta e jaqueta, cujos tecidos são de algodão....pode? Pode sim!! E calça um tênis de plástico branco, sem meias! E é meio surdo. E mesmo assim, sorridente e prestativo demais!
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