segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Um oásis em meio à aridez do cerrado

Para ir ao engenho onde se situam o sítio dos Kalunga e a cachoeira Santa Bárbara, subimos a encosta da serra de Santana, parando no mirante Nova Aurora para admirar o vale onde repousa Cavalcante. Avisto várias queimadas ao longe. Santo Cristo, quando isso vai acabar?! Jair pára mais uma vez para eu conhecer a cachoeira da Ave Maria que se apresenta quase seca. Chegamos no engenho dos Kalungas, um povoado habitado por descendentes de antigos escravos que vieram da Bahia, no século XVIII, fugindo dos maus tratos infligidos pelos senhores de engenho.
Fundado o quilombo há quase 300 anos, viveram os kalungas durante esse tempo todo em quase total isolamento, preservando, dessa forma, o dialeto africano e usos e costumes dantanho. Converso um pouco com um dos que se encontram abrigados do sol a pino sob um alpendre forrado com folhas de indaiá. Interfere na conversa um senhor deitado na rede que se queixa de dor de cabeça. Pergunto se a dor é da cachaça. Ele me informa que “não, dona, num bebo não. Fiquei assim de ajudar a levantar uma mulher muito pesada dia desses, daí machuquei a coluna”. Amarrado à sua testa há um pano cobrindo várias folhas de arnica. "São pra aliviar a dor", explica. Jair e eu tomamos o rumo da trilha que conduz à cachoeira Santa Bárbara. O dia, à semelhança dos outros, continua esplêndido: quente e seco. A claridade do sol ofusca os olhos e sinto seus raios queimando a pele. Após 1:30 caminhando na plana estradinha quase sem sombra, chega-se à primeira queda d’água, uma cascatinha cujas águas jorram num pequeno poço de águas surpreendentemente azuladas, ao contrário da maioria dos outros em que a água sempre verde, só varia de tonalidade, ora apresentando-se mais escura ora mais clara, dependendo do tipo de rocha em seu fundo e da profundidade dos poços.Seguimos por um caminhozinho lateral à cascata, alcançando então a segunda queda. Esta, bem maior, deve ter uns 30 metros. Nesta época do ano, o sol incide nos poços das 12 às 15 horas tornando suas águas azuladas tanto em razão da areia fina e branca quanto do claro substrato rochoso depositados em seu fundo. É um oásis de rara beleza em meio à aridez da região em seu entorno. Apesar da frialdade da água, não poderia passar em brancas nuvens e não mergulhar no poço. O ruim é o primeiro impacto, depois o corpo se acostuma à fria temperatura e começo a curtir demais a limpidez da água distinguindo perfeitamente até os pequenos sinais nas minhas pernas. No retorno à Cavalcante, damos carona pra dois kalungas, o seu Antonio e seu Ambrosio, ambos já de idade, magros e altos. Contrariando minha natureza palradora, fazemos o trajeto de pouco mais de uma hora em agradável silêncio. Ao descer do carro, perguntam quanto custa o frete...pode?!! Coisa mais mimosas eles. Claro está que nada lhes cobramos, bem capaz! Ao passar pela praça da cidade, chama minha atenção um boteco com mesas na calçada - não resisto! - e peço a Jair que pare. Sentamos, bebericando eu uma cachacinha, a gostosa Seleta, ao passo que Jair curte uma cervejinha bem gelada.
Tão gostoso aqui, nem dá vontade de ir embora. Mas a fome tá batendo e voltamos pra pousada tratar de comer a excelente refeição preparada por Carla, mulher de Richard. É uma cozinheira de mão cheia e faz de tudo, desde os pães, bolos e biscoitos do café da manhã assim como as comidas servidas no almoço e janta. Sua comida é trilegal, destacando-se a geléia de pimenta que uso pra besuntar o peito de frango. Cuido logo de comprar um pote. Levarei de presente pro meu querido filho Raul. À noite, as indefectíveis queimadas lambem como rastilhos de pólvora a serra de Santana. Embora seja triste de ver o cerrado incendiando-se, não deixa de ser um espetáculo pirotécnico aquele rastro de fogo colorindo de vermelho a escuridão da noite.

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