sexta-feira, 1 de junho de 2018

Abraçasso no Brasil 2018: 2º Dia de Travessia nos Lençóis Maranhenses

Deixamos Baixa Grande com a lua cheia ainda visível no céu às 7 horas da manhã, quando a temperatura ainda se encontra fresquinha. Agradável caminhar, assim, em silêncio, eu e Nonato. Estou sem mochila porque descobri ontem com as gurias dos outros 2 grupos que dá pra enviar os equipamentos nos quadriciclos de oásis em oásis. Este versátil e econômico veículo, autorizado a trafegar sobre as dunas do parque, permite que os moradores dos oásis alcancem rapidamente Santo Amaro, a cidade mais próxima. O sobe e desce dunas, com acentuada inclinação exige bastante das panturrilhas, mas nada que um bom mergulho nas lagoas não alivie a fadiga muscular. Estou maravilhada, encantada, boquiaberta diante de tanta beleza. Não canso de repetir pros meus botões o mantra “Beatriz, estás no céu e não morreste, guria!”. Vez por outra vêem-se cabritos ou se escutam seus sonoros balidos. As pequenas e escuras bolitas de seus côcos quebram a brancura até então imaculada da areia. De longe se avista o verdor da Queimada dos Britos, o que dá a falsa impressão de que o oásis está perto. Triste engano, há muito ainda a palmilhar. E foram muitos os banhos nas águas cálidas das lagoas cuja coloração, seja azul-esverdeada ou caramelo, sempre é transparente. Encontramos Rafa e Nina com quem passamos a caminhar até a próxima laguna onde mais uma vez nos esbaldamos dentro d’água. Nem só de dunas vive os Lençois: quebram a brancura dos areais pequenos trechos de vegetação rasteira onde nascem minúsculas florzinhas de coloração amarela. Em algumas lagoas, delicadas flores brancas brotam de plantas aquáticas. E, pasmem, possível encontrar também neste magnífico deserto pequeníssimas plantas carnívoras! Curiosa a origem do rio Negro cuja nascente reside na lagoa Esperança. Reproduzindo relato de Nonato, a lagoa rasga as dunas, dividindo-as como se fosse um rio percorrendo um canyon, de modo a formar esse braço de lagoa, chamado negro devido à coloração escura da água. E como rio segue por 15 km findando por desaguar no oceano. É possível, conforme a direção do vento, escutar seu bramido suavizado pela distância. Espectrais as árvores mortas dentro d’água ou às margens das lagoas. Algumas evocam braços cujos dedos desarticulados e disformes pretendessem tocar o céu. Uma benção alcançar a Queimada dos Britos e penetrar em seus bosques porque hoje não há nuvens para suavizar a forte radiação solar. A vegetação, formada por variadas árvores do cerrado, como murici mirins, guajirus, cajueiros e murtas, proporciona bem vinda sombra. Dá pra perceber quão castigada pelas chuvas está a Queimada dos Britos: largas extensões de terrenos inundados mais parecendo lagoas e estradinhas de areia frequentemente interrompidas por imensas poças d’água. O número de residências é significativo já que vivem aqui 12 famílias: os Brito que dão nome ao oásis e os Paulo. Todas aparentadas entre si bem como com as famílias que moram em Baixa Grande. A maioria, originária do Ceará, migrou pro Maranhão há 80 anos devido à severa seca que castigou o estado vizinho. Algumas casas são de madeira, outras de alvenaria e há também as arejadas palhoças sem paredes, cobertas com folhas de buriti. Passo pelo cemitério e descubro dentro dum jazigo um ovo, ali colocado por alguma galinha dotada de senso de humor negro! Atravessamos toda a Queimada, nos alojando na sua ponta oeste, em casa de Biziquinho, guia de Rafa e Nina. Olho pro Strava e verifico que hoje foram 11 os km de pernada. Na minha opinião, a Queimada dos Britos é mais linda do que Baixa Grande...que me desculpem aqueles moradores. Ao contrário de sua simpática e conversadeira mulher, Maria de Jesus, Biziquinho fala pouquíssimo, é do tipo monossilábico. Embora Maria não seja econômica com as palavras, conversa apenas quando provocada. Não é enxerida. Ela conta que a família vive atualmente apenas do turismo que se estende de junho a outubro. O casal tem 3 filhos: Igor (10 anos), Brenda (5 anos) e João (2 anos). O mais velho puxou ao pai, consegue o feito de falar menos ainda. Talvez por timidez. A grande palhoça onde somos acomodadas serve de redário e sala de refeições. As redes têm providenciais mosquiteiros porque se assim não fosse, à noite, seríamos devoradas pelos famigerados insetos. Embora a água seja retirada de poço artesiano através duma bomba de madeira pra lá de rústica, Biziquinho instalou também gerador de eletricidade uhuuu!! Eu e Nonato bebemos caipirinha feita com tiquira, cachaça maranhense feita da mandioca, com forte teor alcoólico e coloração arroxeada. No embalo do tragoléu, o guia recita um versinho em homenagem à bebida vazada nestes termos “a tiquira é sobrinha do satanás, embriaga o homem e o rapaz, faz coisa que 70 cão não faz”....ala putcha!! À tardinha, vamos às dunas tentar apreciar o pôr do sol que, entretanto, não rola porque o céu nublado promete chuva. A comida do almoço, repetida na janta, continua saborosa. Um trivial caseiro cujo tempero na medida certa faz a diferença: feijão de corda com maxixe e batata, arroz, aipim frito, tortilha espanhola, galinha ensopada e farinha amarela daquela bem granulada. Cozida num engenhoso fogão feito com boca de cano e barro bolado por Biziquinho. De dar inveja ao professor Pardal! Durante a noite, compete com o tamborilar da chuva no telhado, um bando de sapos coaxando ao lado de minha rede e o ronco em surdina de Nonato. Das gurias não escuto pio algum. Feliz e toda prosa, eu, sim!! 

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