quinta-feira, 7 de junho de 2018

Abraçasso no Brasil 2018: Piauí - Litoral

Dou adeus à Tutoia e voo as tranças, na segunda, direto e reto à Parnaíba. Afinal são apenas 120 km entre as 2 cidades. Paro rapidamente pra dar carona a 2 professoras, uma bem falante, já a outra se mantém em silêncio. Sempre que cruzo as fronteiras dos estados, me emociono. A oportunidade de experimentar outra realidade, novo sotaque e costumes diferentes, embora seja tudo muito brasileiro, me faz sentir animadíssima. Assim ocorre enquanto atravesso a ponte sobre o rio Parnaíba, divisor natural entre Maranhão e Piauí. Largas avenidas, tráfego aparentemente civilizado me agradam de cara quando entro em Parnaíba, segunda maior cidade do Piauí com aproximadamente 200 mil habitantes. Como tenho de repor a placa dianteira no carro (perdi sei lá onde talvez nas ruas alagadas de Barreirinhas), perco desagradáveis horas no shopping Parnaíba quando poderia estar dando uma banda de bici na cidade que conta com ciclovias. Resolvo, por sugestão da maranhense Aline, dormir em Luís Correia, distante 15 km de Parnaíba. Depois de deixar minha bagagem na pousada, dou um rolê de bici à beira mar. Já noitinha, eu, dentro d’água, sou abençoada com outro espetacular pôr do sol, que incendeia o canto oeste da praia como se fogueira de São João fosse. Baiano, uma espécie de factótum da pousada onde me hospedo, inaugura sua pastelaria esta noite, único restaurante aberto à beira mar já que a temporada de verão ainda nem começou. Com fome, peço dois que, pra meu azar, além de gordurosos, contêm recheios secos e sem traço de tempero. Baiano, no afã de agradar à freguesia, responde aos meus pedidos com obsequiosos “na hora, minha patroa”. Quando pergunta se gostei dos pasteis, piedosamente, minto “que sim, estão bem gostosos". Terça, retorno à Parnaíba, pois quero conhecer o delta do rio, conhecido também como delta das Américas na sua porção maranhense. O delta vem a ser a foz do rio Parnaíba que se abre em cinco braços, abarcando um arquipélago formado por 73 ilhas fluviais. Atravesso os 300 metros da ponte Simplício Dias que une o continente à Ilha Grande de Santa Isabel, a maior delas, linda, verdejante e abundante em carnaúbas, palmeira predominante na região. Paro na vila de Morros de Mariana onde compro bolo de goma com queijo da Raquel, quituteira que vende seus petiscos na praça. Entretanto, não pretendo permanecer em Ilha Grande e sim na ilha das Canárias. Como a lancha sai do Porto dos Tatus continuo a dirigir mais alguns kms até chegar à beira do rio. Pergunto a um dos homens sentados na calçada onde posso pegar um barco que me leve à ilha. Um deles mais que ligeiro diz “te levo por tanto”. Assim, conheço Didi, dono de 2 lanchas novas e velozes. Bom de negócio fecha um pacote comigo. Consigo a duras penas um descontinho além de estacionar, sem custos, o carro na garagem de sua casa. O ex-pescador se apresenta como aventureiro, nativo e batuqueiro. Quando indago se é namorador, ele não contesta, muito pelo contrário, sorridente, confirma “estamos na disposição”. Esse Didi é muito cavalheiro.....hahahaha!! Ao zarparmos do cais, vejo 2 mulheres lavando roupas no rio. Didi elogia a mais velha pela excelência de seus lavados. Ele deixa de navegar no rio e conduz a lancha pelo igarapé dos Periquitos, em cuja margem direita elevam-se dunas de coloração mais amarelada que as de Lençois. Revela-se assim outro paraíso aos meus olhos. Devo ter sido muito boa na outra encarnação, porque continuo no céu e nem morta estou uhuuu!! Trinta minutos depois atracamos nas Canárias, a segunda maior ilha do delta, com 2 mil almas e 5 povoados: Canárias, Caiçara, Passarinho, Torto e Morro do Meio. A ilha não pertence ao Piauí como erroneamente se pensa e sim ao Maranhão. Aqui no delta nunca se sabe quando se está num estado ou noutro. Instalada na pousada Casa de Caboclo, à beira rio, sou levada ao meu aposento. Depois das modestas hospedagens anteriores, o quarto me parece luxuoso. Naquele estilo enganadoramente rústico, tem uma cama de casal protegida por dossel coberto por farto mosquiteiro. Sinto-me como se fosse uma princesa de contos de fada deitada no espaçoso e confortável colchão entre macios travesseiros e rodeada por aquela nuvem de filó branco. Hoje quero só descansar, curtir a pousada, seus recantos e o amplo jardim. Mais uma vez me confundem com turista estrangeira. O fofo do garçom, no bar, pergunta em inglês “what do you want miss?” Eu em bom português, peço caipirinha de tamarindo feita com a cachaça Lira. E os piauienses são tão amáveis quantos os maranhense, um pouco mais sérios talvez. Em torno das 16 horas, quando o sol está menos ardido, saio pra dar uma banda no povoado de Canárias. É o maior dos cinco. Todas as ruas são de areia fofa e, em ambos os lados da comprida rua principal, predominam boas casas de alvenaria, salvo uma que outra de adobe. Há um pequeno largo diante da igreja católica e no lado oposto o bar e pousada Delta. Tiro fotografias de 3 velhotes que ficam encantados, rindo muito enquanto lhes mostro as fotos. Escuto o conversê deles comentando entre si que sou bonita, hahaha...que fofos eles! Quando peço água de côco no bar, o dono pega uma vara comprida, vai até o coqueiro mais próximo, retira a fruta e me entrega. Volto pela praia e ao avistar 2 gurias pergunto de que brincam. “De turistas”, respondem, sorridentes. “O que é brincar de turista?” “É entrar no barco e falar inglês”, explicam, rindo, mais uma vez. “E vocês falam inglês?” É então que elas se torcem, encabuladas, fugindo pra ponta do cais. O céu se mantém sem nuvens e o calor é intenso embora a tarde já esteja bem avançada. Tentar se banhar no rio é tarefa impossível: afundo na lama preta até quase o joelho, afinal aqui imperam os manguezais. Na quarta, às 9 e 30, Francisco e não Didi vem me buscar para dar um bandaço no delta do Parnaíba pilotando a confortável lancha em que ontem viajara. Navegamos nas águas de coloração marrom avermelhada do rio e aprendo a diferença entre o mangue vermelho (raízes aéreas de cima para baixo) e mangue branco (raízes de baixo para cima). O dia, lindo, embora ventoso, céu azul, calor gostoso. Após 30 minutos, deixamos de navegar no Parnaíba e entramos no rio do Corte. Nas margens deste rio há milhares de aningas, planta de água doce cujo caule tem 2 utilidades: na feitura de balsas e como cicatrizante. Sua folha verde e a flor branca lembram a do copo de leite e seu fruto quando maduro se esfacela, caindo no rio de modo a servir de alimento aos peixes. Nas águas do delta há jacarés e sucuris, essas sim, perigosas, adverte Francisco. Aliás, na variadíssima fauna destacam-se ainda tartarugas, macacos de várias espécies, jacus, colhereiros, botos e peixes-marinhos. Só consigo ver iguanas que, quando a gente se aproxima da margem onde elas se encontram, se escondem assustadas entre o matagal. Entramos num igarapé estreito, sombreado em ambas as margens por um emaranhado manguezal vermelho. Suas raízes em certos trechos pendem dos troncos como se cortinas de contas fossem. Um mundo colorido de marrom e verde. Francisco me conta que a esposa o abandonou há anos. Ficou tão traumatizado que passou 5 anos sem olhar mulher “nem com o rabo do olho”. Agora novamente casado, está contente com a atual companheira com quem tem 2 filhos. Paramos numa prainha e Francisco faz uma demonstração de como se cata caranguejo. Enfia o braço até o ombro e daí pega o bicho. Se for macho, usa-se um longo pau com uma espécie de cunha de ferro porque cava tocas mais fundas que as fêmeas. A pesca das fêmeas é proibida de dezembro a julho porque durante 8 meses elas têm de cuidar dos 8 mil ovos que ficam enterrados nas tocas. Durante esse período, são alimentadas pelos machos que lhes levam folhas frescas. Há outros predadores além do homem como o bagre. Quando a maré alaga o mangue, este peixe entra e suga das tocas os bebês caranguejos cuja casca ainda mole está boa pra ser comida. Paramos pra almoçar no restaurante e pousada Aires, situado no povoado Morro do Meio, na ponta noroeste da ilha, cuja população é de apenas 15 famílias. O proprietário, Raimundo, conta que se tornou caçador de caranguejos aos 12 anos. Trabalhava das 9 às 13 horas. Nessas 4 horas, catava crustáceos caminhando, ou melhor, se equilibrando nos troncos e galhos dos mangues enquanto carregava dezenas de cordas (vem a ser uma enfiada de 4 caranguejos ligados entre si por fios feitos da fibra da carnaúba). No almoço, Maria, sua mulher, serve uma excelente pescada amarela assada na grelha. Sesteio de babar, na rede providencialmente pendurada no refeitório, um amplo e aberto avarandado. Continuamos o passeio, navegando por 15 minutos até chegar a uma praia lindíssima, repleta de dunas. Subo na mais alta delas donde tenho uma visão linda do rio e das ilhas ao redor. Pena que as lagoas entre elas estejam secas. Voltamos à lancha e navegamos nem 2 km até a pequena ilha dos Guarás, onde as aves, como de costume, vêm pernoitar após passarem o dia pescando seu alimento predileto: o caranguejo espera-maré de cor avermelhada, responsável pela coloração de sua plumagem. Como o guará tem um fino e comprido bico, encurvado na ponta, consegue assim cavar fundo a lama dos baixios, pinçando lá de dentro o crustáceo, após o que o lava a fim de retirar a lama preta que o cobre, comendo-o então bem limpinho. Um espetáculo o pouso deles nos galhos das árvores. São milhares que vêm em bandos manchando o verde matagal de vermelho como se flores fossem. Esta revoada dos guarás deu de 10 a zero à que assisti em Atins. Ótima decisão a de ter vindo passear no delta do Parnaíba que nem fazia parte dos meus planos. O bom de viajar de carro é que vão surgindo oportunidades de conhecer lugares pouco divulgados ou até então desconhecidos pra mim. Definitivamente, o delta do Parnaíba é outro pedacinho de paraíso terrestre com sua paisagem exuberante, cheia de dunas, mangues e ilhas fluviais! Didi quem me busca, quinta, na pousada retornando eu à Ilha Grande onde pego o carro. Resolvo antes de sair da ilha, conferir uma de suas praias que vejo anunciada numa placa porque acho sugestivo o nome: Pedra do Sal. Minha curiosidade é recompensada: a praia é um mimo com farol branquinho rodeado de pedras, barracas-restaurantes feitas de palha de carnaúba, uma praia brava e outra mansa, torres eólicas ao longe. Completamente pé na areia, nenhuma pousada chique, tudo muito rústico mesmo, vila de pescadores que não se descaracterizou ainda. Lamento não poder ficar mais pero desejo explorar outras praias do litoral piauiense. Ao longo da estrada paralela à costa, a paisagem alterna dunas, vislumbre dum mar verde e matas. Em Cajueiro da Praia, onde entro para dar um vistaço, homens dormem em redes penduradas entre árvores nas calçadas, em cima dos bancos e das mesas de praças. Vou então até Barra Grande, antiga vila de pescadores descoberta pela galera do kitesurf, cuja maioria dos proprietários dos estabelecimentos são estrangeiros. Na rua principal, de chão batido, iluminada com luminárias de conchas, há diversos restaurantes cujo estilo predominante é o inevitável rústico chique. Em julho, mês da alta temporada, deve ser uma muvucagem esta praia. Graças a deus vim antes, sem nem me dar conta dessa coisa de alta e baixa temporada. Como sou sortuda, a ignorância continua me protegendo. À beira mar, restaurantes feitos com folhas e caules de carnaúba. O mar não é tão quente quanto o de Atins, Tutoia e Luís Corrreia. Mesmo assim, acabo por mergulhar em suas águas repletas de algas marrons. Adoro as cercas feitas de galhos de árvores muito semelhantes às que encontrei na vila de Askole, Paquistão. O céu tem se mantido nublado desde a primeira hora da tarde. O tal caranguejo que peço no restaurante pé na areia exaure minha paciência, mal consigo extrair de suas carapaças um dedal de carne e me sujo toda tentando. Exasperante comê-lo, não tenho a manha necessária pra extrair a polpa do crustáceo. Quem sabe na próxima encarnação. Mal alimentada, dirijo-me até a praça e apelo para o PF do restaurante Sabor de BG. Tão fácil comer peixe serra, baião de 2, farofa e salada de cenoura!! À noite, a convite de Luiz, filho da dona da pousada onde me hospedo, assisto ao seu show no restaurante Manga Rosa, encerrando minha temporada no litoral piauiense com o excelente repertório de MPB cantado por ele!!

Nenhum comentário: