Pouco sabia do Parque Nacional da Serra da Capivara a não ser por seu conjunto de belíssimas formações rochosas e por se localizar no Piauí, estado que vem atiçando minha curiosidade exatamente porque pouco badalado no circuito turístico. Motivo de orgulho descobrir que o parque é área de maior concentração de sítios arqueológicos pré-históricos do continente americano e Patrimônio Cultural da Humanidade. Contém a maior quantidade de arte rupestre do mundo! Estudos científicos confirmam que a Serra da Capivara foi densamente povoada em períodos pré–históricos. Os artefatos encontrados apresentam vestígios do homem de 50.000 anos atrás: os mais antigos registros na América! O relevo do parque compõe-se de serras e planícies interrompidas por pequenas gargantas (boqueirões) e desfiladeiros. O clima semiárido é o par perfeito da vegetação dominante na região: a caatinga, bioma exclusivamente brasileiro. Incrível pensar que há 10 mil anos atrás o clima nesta região era tropical úmido com vegetação abundante e a existência de espécies da megafauna há muito desaparecidas como mastodonte, preguiça-gigante e tigre dente de sabre circulando daqui pra lá e dali pra acolá!! Atualmente, há onças pintadas, pretas, vermelhas e jaguatiricas, porém o que vejo são apenas dezenas e dezenas de mocós - roedor típico da caatinga - circulando no parque e seu entorno. Vem daí a origem do nome do sítio onde estamos hospedadas: do Mocó. O parque compreende 4 serras: Capivara, Vermelha, Branca e Talhada. Nesta última, onde fica o Sítio do Mocó, salta aos olhos, o motivo de assim ter sido denominada. As enormes rochas ao redor da vila, tais quais gigantescos e arredondados gomos de frutas, parecem ter sido esculpidas a cinzel! Rodeada de pedras, impossível existir melhores guarda-costas! Bueno, na terça-feira, iniciamos então a visitação ao PN da Serra da Capivara, começando no setor da serra Talhada. Visitamos durante a manhã o desfiladeiro da Capivara onde dezenas de sítios de pinturas rupestres representam cenas do cotidiano do homem pré-histórico, como a cena do parto em que - detalhe interessante - o parteiro é homem, além de cenas de sexo e de caçadas. Destaca-se entre as tocas a impressiva Toca do Inferno, um brete lindo e escuro formado por altos paredões rochosos que se fecham de modo a formar um elevado teto, restando pequenas aberturas no alto por onde vazam feixes de luz solar. Damos um rolê na Toca da Entrada do Baixão da Vaca onde na parte inferior há pequena garganta cujas paredes são de dimensões modestas, não ultrapassando 150 metros de altura. Na Entrada da Toca do Pajaú, somos surpreendidas com a presença duma cascavel com mais de 1 metro de comprimento cruzando languidamente a trilha! Chama atenção a coloração fortemente avermelhada das rochas, causada pela densa concentração de óxido de ferro. Esta a razão de as crianças do sertão quando anêmica raspar as paredes de adobe de suas casas no intuito de ingerir o ferro ali contido. Planta típica da caatinga, os cactus dão o ar de sua espinhuda graça: elegantes xique-xiques cujos galhos lembram castiçais, altos mandacarus e gorduchas coroas de frade são figurinhas fáceis por onde se vá. A bromélia macambira é o ninho preferido das pombas que, para proteger seus ovos de predadores, os colocam entre as folhas farpadas da planta. Já a bromélia caroá é fashion porque sua fibra é usada na fabricação de bolsas. Como estamos saindo do inverno, o verde predomina na caatinga e arbustros como camaratubas, jitiranas e juremas estão em plena florescência dando um toque azulado à paisagem. Depois do almoço no albergue, visita à fábrica de cerâmica Serra da Capivara onde são feitos belíssimos artefatos em cerâmica com pinturas reproduzindo a arte rupestre. À tardinha, nos tocamos até a serra Vermelha pra assistir do alto do Baixão das Andorinhas ao voo de regresso destas aves até o fundo do desfiladeiro onde pernoitam. A garganta é ladeada por formações rochosas cuja ovalada e craquelada superfície lembra àquelas vistas no PN das 7 Cidades. Das andorinhas, contudo, não vimos qualquer risco no céu!
Na primeira metade do século XX, o Piauí viveu o auge da produção do látex, extraído da maniçoba, árvore característica da caatinga. A sua exploração estava relacionada ao desenvolvimento das indústrias automobilística e elétrica.A importância dessa borracha só ficava atrás da produção das seringueiras no norte do país. Em sendo assim, na quarta- feira, rumamos pra Serra Branca onde lá iremos conhecer o Caminho da Maniçoba. Um exemplo, na região, da existência de maniçobeiros ou seus descendentes, são os habitantes do Sítio do Mocó. E lá vamos nós mergulhar nessa peculiar comunidade de extratores de látex que viveram durante décadas em tocas antes ocupadas pelos pré-históricos, usando matérias primas encontradas na própria natureza. Embora os maniçobeiros não soubessem o valor desses sítios arqueológicos, deixaram-nos intactos. Deveriam, acho eu, curtir as figuras desenhadas nas paredes como se fossem quadros a enfeitar suas toscas residências. Dentro das tocas, eram erguidas paredes, feitas duma mistura de pedra, barro e madeira, à semelhança de casas, algumas com portas entre os cômodos a conferir certa privacidade aos moradores. Comum os móveis e utensílios serem de pedras, como estantes, balcões, bancos, camas, potes e panelas. Um mundo na pedra feito de pedra. Os maniçobeiros de certa forma foram os Flintstones do século XX! Cada toca não deixava de ser uma pequena vila: na do Mulungu viveram 9 famílias. Visitamos a toca do Vento onde os maniçobeiros, aproveitando sua excelente ventilação, punham o latéx pra secar devido ao seu maior valor de venda. Na Toca do João Sabino, situada em zona elevada, os cactus abundam e o visual panorâmico permite avistar ao longe as demais chapadas cuja coloração clara dá nome à serra. Nos baixões, subsistem ainda resquícios de mata atlântica como as costelas de adão e as copadas gameleiras que se desenvolvem junto às paredes de arenito ou próximas a olhos d’água como aquele existente nas proximidades da Toca do Juazeiro. Pra encerrar com fecho de ouro o dia, visitamos a Fundação Museu do Homem Americano cujo objetivo principal é a preservação e pesquisa dos mais de 700 sítios arqueológicos existentes no PN da Serra da Capivara.
De manhã cedinho, na quinta-feira, com Alu debutando numa estrada marca diabo, crivada de fundos buracos e coberta por espesso areal, vamos ao Caldeirão dos Rodrigues onde se espalham outros sítios rupestres. Até 9 horas o ar é bem fresco, depois, pura antecâmara do inferno. Em ambos os lados da estrada, forrada com brita ou piçarra, árvores formam densa alameda que roçam as laterais do carro. Caldeirões são profundas depressões onde em priscas eras se acumulavam águas das chuvas que posteriormente originaram rios. Atualmente, raríssimos vestígios de umidade são vistos nesses sítios. Do Caldeirão dos Rodrigues II conhecemos apenas o entorno de seu topo, descortinando ampla paisagem pontuada por zonas rochosas e áreas verdes. Já no Caldeirão dos Rodrigues I, descemos até seu fundão, desescalando estreitos e íngremes corredores de pedra onde foram instalados, para facilitar a descida, degraus de ferro, à semelhança das vias ferratas. Ali embaixo, encontram-se belíssimas pinturas gravadas nas paredes de tocas com nomes singulares como Xique-Xique de Cima do Fundo. Destaca-se pela plasticidade a cena da dança em que os troncos dos dançarinos arqueados para trás transmitem com tosca fidelidade fluidez à dança. Já em alguns desenhos de animais, observa-se a tendência de fugir da unidimensionalidade infantil do traço com o preenchimento das figuras, sugerindo assim certa bidimensionalidade às imagens retratadas. Após o almoço no restaurante da Paula no sítio do Mocó, visitamos o boqueirão da Pedra Furada. Neste sítio, há a famosa cena do beijo entre um casal pré-histórico e desenhos pintados em branco, amarelo e cinza demonstrando a evolução dos pré-históricos que passaram a utilizar outros pigmentos que não apenas o vermelho. Quem sabe nossos longínquos antepassados não retiraram tais pigmentos do paredão de conglomerado, existente diante da Pedra Furada, cujas camadas superpostas exibem colorações bege, amarela, vermelha, cinza e preta, não é mesmo? Não muito distante do boqueirão, eis-nos diante da Pedra Furada, que sofreu milenar processo de erosão resultando na monumental abertura na extensa parede rochosa. Na frente dessa magnífica escultura, foi construído um anfiteatro onde uma vez por ano, em julho, acontecem eventos artísticos. Conhecer os sítios arqueológicos deste parque, cuja presença humana remonta a 10 mil anos, foi algo impactante. Emocionei-me profundamente ao ver estampado nas paredes de arenito o cotidiano de seres humanos cujas vidas giravam em torno de 2 eixos primordiais: a caça visando à sobrevivência e o sexo para perpetuar a espécie, que registravam sem qualquer pudor. Que inveja desses antepassados tão autenticamente sem-vergonhas!
Um comentário:
Que rico relato, minha amiga! Refiz novamente alguns desses caminhos em minha mente, tamanha a sua minúcia ao escrever...foram dias muito felizes ao seu lado e cercadas de natureza e pessoas tão exuberantes! Que venha logo nossa próxima aventura! Bjs!
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