Pretendo com este blog descrever viagens que fiz e farei por este tão lindo planeta, resgatando da memória as impressões armazenadas, algumas já esmaecidas pelo tempo, outras prudentemente registradas pelo olho mágico das lembranças fotográficas.
quinta-feira, 14 de junho de 2018
Abracasso no Brasil 2018: Piauí - PN da Capivara
A partir de agora não viajo mais só. Alussandra, vindo de Fortaleza participará desta etapa do Abraçasso. Depois de me regalar com um lauto café da manhã, vou buscá-la na rodoviária em Teresina, longe paca do hotel, com direito a me perder graças ao maldito GPS do carro. Sinos de alegria bimbalham festivamente em minha cabeça quando vejo a amiga!! Sorrindo não só com a boca quanto com os olhos, Alu está radiante não só por me rever quanto pela aventura que nos aguarda! Nos abraçamos longamente, após o que vamos visitar Iolanda, mãe de Polly, amiga comum, piauiense, residindo atualmente em Porto Alegre. Viúva recentíssima, Iolanda merece uma visita, um abraço de aconchego. Embora eu não a conheça - chame a isso curiosidade - quero visitá-la. E não me desaponto, sua calorosa acolhida confirma as boas vibrações que eu intuía dela. Nos espera com um café que mais parece almoço, tantos os quitutes oferecidos: carne seca, queijo coalho, bolos, pães e frutas. E não contente em querer nos bem alimentar, ainda faz marmita pra comermos durante a viagem. Lastimo não ter podido ficar mais tempo usufruindo da companhia de Iolanda, mas a distância a São Raimundo Nonato, nosso destino, soma respeitáveis 580 km. A partir daqui, não mais pilotarei o carro, assim, cedo o volante à Alu, excelente motorista. Rodamos um bom tempo pela BR 343, vendo, vez por outra diante dos pórticos de algumas cidades, gigantescas e cafonas estátuas em homenagem às santas padroeiras das localidades. Seja em animadas conversas ou em confortável silêncio, sempre tá rolando uma boa trilha musical dentro do carro. Próximo a São Raimundo
Nonato, já na PI 140, destacam-se, dourados ainda mais pelo sol poente, tufos de capim amarelo adornando ambos os lados da rodovia. São Raimundo Nonato situa-se
no sudeste do Piauí e sua população não passa de 35 mil habitantes. A cidade, pequena, destituída de charme, não mereceu de nós especial atenção, tanto que nos limitamos apenas em cruzá-la a caminho dos passeios. Procuramos
a casa da guia que se revelou não só de burocrático comportamento quanto despida
de qualquer pingo de senso de humor. Foi o único senão dos 3 dias de visitação no Parque Nacional da Serra da Capivara. Acertados os passeios, enfrentamos
mais 33 km até o Sítio do Mocó onde eu tivera ciência, lendo num site da internete, a
existência duma pousada e camping administradas por uma tal de Conceição, cuja
descrição muito me agradara. Mais uma vez não me decepciono. Conceição ou Ceiça
é desembaraçada, animada, safa demais em seus 70 e poucos anos. Remanescente do movimento hippie, Conceição é uma genuína dinossaura da era de Aquarius. Saiu cedo de São Raimundo e passou a maior parte de sua vida entre São Paulo, Rio e Bahia. Sobre um cara que conheceu avalia que "ele era fluídico sem ser dogmático." Conta estórias hilariantes sobre seu agitado passado, tendo conhecido vários famosos
dentre os quais Raul Seixas e Novos Baianos, pra quem costurou trajes com que
se apresentavam nos shows. E Conceição comenta que por serem todos aparentados
no Sítio do Mocó, alguns moradores ou são deficientes físicos ou mentais, como
o rapaz que volta e meia se põe a uivar. Quando à noite, vamos eu e Alu em
busca dum restaurante aberto, encontramos o comércio fechado e grande aglomeração
diante duma casa. Alu menciona que alguém deve ter morrido. Dito e feito. O
povoado parou pra homenagear um de seus moradores. Embora velando o defunto,
Talita, uma loura magrinha e agitada, na faixa dos 30, aparentando 20,
abre sua pequena pizzaria e prepara 2 pizzas pra nós. Sabemos então por ela que
o finado, seu parente, com 88 anos, morreu de tristeza porque a esposa
falecera há coisa dum ano. Segundo tradição nordestina, própria de famílias
fervorosamente católicas, erguem-se ao lado das casas capelinhas com imagens de
santos e santas. A da casa do falecido foi construída porque sua esposa, quando viva,
tinha dificuldade em se deslocar à igreja devido a problemas cardíacos. Como a
sala onde o morto está sendo velado é pequena, as pessoas sentam em cadeiras
na calçada em frente à casa. Sobre uma mesa coberta com toalha, térmica de
café, garrafa d’água e copos. Dos homens, muito comedidos, não se escuta quase falação.
As mulheres, quando não conversam em sussurros, rezam. Presentes
no velório, além de toda a vila, parentes de outras cidades, incluindo Teresina. Velórios não deixam
de ser acontecimentos sociais, porque ao reunir pessoas que não se encontram amiúde,
oportuniza-se a renovação de laços parentais e de amizade. Após o enterro do sr.
Valdemar, todas as noites a partir das 18, parentes, maioria mulheres, se
reúnem pra rezar o terço durante 9 dias pra que sua passagem (pra outra vida, é claro) seja tranquila. Na segunda noite, quando
passo diante da casa onde cadeiras mais uma vez foram colocadas na calçada, sou
convidada a participar das orações. Gentilmente, uma mulher cede seu assento,
sentando-se no banco à frente. E não é
que ainda me lembro do Pai Nosso e da Ave Maria?! Aliando-me ao coro feminino, recito
um tantinho emocionada as orações.
Pouco sabia do Parque Nacional
da Serra da Capivara a não ser por seu conjunto de belíssimas formações
rochosas e por se localizar no Piauí, estado que vem atiçando minha curiosidade
exatamente porque pouco badalado no circuito turístico. Motivo de orgulho descobrir
que o parque é área de maior concentração de sítios arqueológicos
pré-históricos do continente americano e Patrimônio Cultural da Humanidade.
Contém a maior quantidade de arte rupestre do mundo! Estudos científicos
confirmam que a Serra da Capivara foi densamente povoada em períodos
pré–históricos. Os artefatos encontrados apresentam vestígios do homem de
50.000 anos atrás: os mais antigos registros na América! O relevo do parque compõe-se
de serras e planícies interrompidas por pequenas gargantas (boqueirões) e
desfiladeiros. O clima semiárido é o par perfeito da vegetação dominante na
região: a caatinga, bioma exclusivamente brasileiro. Incrível pensar que há 10
mil anos atrás o clima nesta região era tropical úmido com vegetação abundante
e a existência de espécies da megafauna há muito desaparecidas como mastodonte,
preguiça-gigante e tigre dente de sabre circulando daqui pra lá e dali pra
acolá!! Atualmente, há onças pintadas, pretas, vermelhas e jaguatiricas,
porém o que vejo são apenas dezenas e dezenas de mocós - roedor típico da caatinga -
circulando no parque e seu entorno. Vem daí a origem do nome do
sítio onde estamos hospedadas: do Mocó. O parque compreende 4 serras: Capivara,
Vermelha, Branca e Talhada. Nesta última, onde fica o Sítio do Mocó, salta aos
olhos, o motivo de assim ter sido denominada. As enormes rochas ao redor da
vila, tais quais gigantescos e arredondados gomos de frutas, parecem ter sido
esculpidas a cinzel! Rodeada de pedras, impossível existir melhores guarda-costas!
Bueno, na terça-feira, iniciamos então a visitação ao PN da Serra da Capivara,
começando no setor da serra Talhada. Visitamos durante a manhã o desfiladeiro
da Capivara onde dezenas de sítios de pinturas rupestres representam cenas do
cotidiano do homem pré-histórico, como a cena do parto em que - detalhe
interessante - o parteiro é homem, além de cenas de sexo e de caçadas. Destaca-se entre as tocas a impressiva Toca do
Inferno, um brete lindo e escuro formado por altos paredões rochosos que se
fecham de modo a formar um elevado teto, restando pequenas aberturas no alto por
onde vazam feixes de luz solar. Damos um rolê na Toca da Entrada do Baixão da
Vaca onde na parte inferior há pequena garganta cujas paredes são de dimensões
modestas, não ultrapassando 150 metros de altura. Na Entrada da Toca do Pajaú,
somos surpreendidas com a presença duma cascavel com mais de 1 metro de
comprimento cruzando languidamente a trilha! Chama atenção a coloração fortemente
avermelhada das rochas, causada pela densa concentração de óxido de ferro. Esta
a razão de as crianças do sertão quando anêmica raspar as paredes de adobe de suas
casas no intuito de ingerir o ferro ali contido. Planta típica da caatinga, os
cactus dão o ar de sua espinhuda graça: elegantes xique-xiques cujos galhos lembram
castiçais, altos mandacarus e gorduchas coroas de frade são figurinhas fáceis por
onde se vá. A bromélia macambira é o ninho preferido das pombas que, para proteger seus ovos de predadores, os colocam entre as folhas farpadas da planta. Já a bromélia caroá é fashion porque sua fibra é usada na fabricação de bolsas. Como estamos saindo do
inverno, o verde predomina na caatinga e arbustros como camaratubas, jitiranas e
juremas estão em plena florescência dando um toque azulado à paisagem. Depois do almoço
no albergue, visita à fábrica de cerâmica Serra da Capivara onde são
feitos belíssimos artefatos em cerâmica com pinturas reproduzindo a arte
rupestre. À tardinha, nos tocamos até a serra Vermelha pra assistir do alto do
Baixão das Andorinhas ao voo de regresso destas aves até o fundo do desfiladeiro
onde pernoitam. A garganta é ladeada por formações rochosas cuja ovalada e
craquelada superfície lembra àquelas vistas no PN das 7 Cidades. Das andorinhas, contudo, não vimos qualquer risco no céu!
Na primeira metade do século
XX, o Piauí viveu o auge da produção do látex, extraído da maniçoba,
árvore característica da caatinga. A sua exploração estava relacionada ao
desenvolvimento das indústrias automobilística e elétrica.A importância dessa borracha só ficava atrás
da produção das seringueiras no norte do país. Em sendo assim, na quarta-
feira,
rumamos pra Serra Branca onde lá iremos conhecer o Caminho da Maniçoba. Um
exemplo, na região, da existência de maniçobeiros ou seus descendentes, são os habitantes
do Sítio do Mocó. E lá vamos nós mergulhar nessa peculiar comunidade de extratores
de látex que viveram durante décadas em tocas antes ocupadas pelos
pré-históricos, usando matérias primas encontradas na própria natureza. Embora
os maniçobeiros não soubessem o valor desses sítios arqueológicos, deixaram-nos
intactos. Deveriam, acho eu, curtir as figuras desenhadas nas paredes como se fossem
quadros a enfeitar suas toscas residências. Dentro das tocas, eram erguidas paredes, feitas
duma mistura de pedra, barro e madeira, à semelhança de casas, algumas com
portas entre os cômodos a conferir certa privacidade aos moradores. Comum os
móveis e utensílios serem de pedras, como estantes, balcões, bancos, camas,
potes e panelas. Um mundo na pedra feito de pedra. Os maniçobeiros de certa
forma foram os Flintstones do século XX! Cada toca não deixava de ser uma
pequena vila: na do Mulungu viveram 9 famílias. Visitamos a toca do Vento onde os maniçobeiros, aproveitando sua excelente ventilação, punham o latéx pra secar devido ao seu maior valor de venda. Na Toca do João Sabino, situada em zona elevada, os cactus abundam e o visual panorâmico
permite avistar ao longe as demais chapadas cuja coloração clara dá nome à
serra. Nos baixões, subsistem ainda resquícios de mata atlântica como as costelas
de adão e as copadas gameleiras que se desenvolvem junto às paredes de arenito
ou próximas a olhos d’água como aquele existente nas proximidades da Toca do
Juazeiro. Pra encerrar com fecho de ouro o dia, visitamos a Fundação Museu do
Homem Americano cujo objetivo principal é a preservação e pesquisa dos mais de
700 sítios arqueológicos existentes no PN da Serra da Capivara.
De manhã cedinho, na
quinta-feira, com Alu debutando numa estrada marca diabo, crivada
de fundos buracos e coberta por espesso areal, vamos ao Caldeirão dos Rodrigues
onde se espalham outros sítios rupestres. Até 9 horas o ar é bem fresco, depois, pura antecâmara do inferno. Em ambos os lados da estrada, forrada com brita
ou piçarra, árvores formam densa alameda que roçam as laterais do carro. Caldeirões
são profundas depressões onde em priscas eras se acumulavam águas das chuvas que
posteriormente originaram rios. Atualmente, raríssimos vestígios de umidade são
vistos nesses sítios. Do Caldeirão dos Rodrigues II conhecemos apenas o entorno
de seu topo, descortinando ampla paisagem pontuada por zonas rochosas e áreas
verdes. Já no Caldeirão dos Rodrigues I, descemos até seu fundão, desescalando estreitos
e íngremes corredores de pedra onde foram instalados, para facilitar a descida,
degraus de ferro, à semelhança das vias ferratas. Ali embaixo, encontram-se belíssimas
pinturas gravadas nas paredes de tocas com nomes singulares como Xique-Xique de
Cima do Fundo. Destaca-se pela plasticidade a cena da dança em que os troncos dos
dançarinos arqueados para trás transmitem com tosca fidelidade fluidez à dança.
Já em alguns desenhos de animais, observa-se a tendência de fugir da unidimensionalidade
infantil do traço com o preenchimento das figuras, sugerindo assim certa bidimensionalidade
às imagens retratadas. Após o almoço no restaurante da Paula no sítio do Mocó,
visitamos o boqueirão da Pedra Furada. Neste sítio, há a famosa cena do beijo
entre um casal pré-histórico e desenhos pintados em branco, amarelo e cinza
demonstrando a evolução dos pré-históricos que passaram a utilizar outros
pigmentos que não apenas o vermelho. Quem sabe nossos longínquos antepassados
não retiraram tais pigmentos do paredão de conglomerado, existente diante da
Pedra Furada, cujas camadas superpostas exibem colorações bege, amarela,
vermelha, cinza e preta, não é mesmo? Não muito distante do boqueirão, eis-nos diante da Pedra
Furada, que sofreu milenar processo de erosão resultando
na monumental abertura na extensa parede rochosa. Na frente dessa magnífica escultura, foi construído um anfiteatro
onde uma vez por ano, em julho, acontecem eventos artísticos. Conhecer os sítios
arqueológicos deste parque, cuja presença humana remonta a 10 mil anos, foi algo
impactante. Emocionei-me profundamente ao ver estampado nas paredes de arenito o
cotidiano de seres humanos cujas vidas giravam em torno de 2 eixos primordiais:
a caça visando à sobrevivência e o sexo para perpetuar a espécie, que registravam sem qualquer pudor. Que inveja desses antepassados tão autenticamente
sem-vergonhas!
Um comentário:
Alu
disse...
Que rico relato, minha amiga! Refiz novamente alguns desses caminhos em minha mente, tamanha a sua minúcia ao escrever...foram dias muito felizes ao seu lado e cercadas de natureza e pessoas tão exuberantes! Que venha logo nossa próxima aventura! Bjs!
Um comentário:
Que rico relato, minha amiga! Refiz novamente alguns desses caminhos em minha mente, tamanha a sua minúcia ao escrever...foram dias muito felizes ao seu lado e cercadas de natureza e pessoas tão exuberantes! Que venha logo nossa próxima aventura! Bjs!
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