Tchararará!! Aaahhh, que bom, hoje é a minha vez de ir pro acampamento argentino. Tô na ponta dos cascos, como se diz aqui no Sul. Depois do almoço, enquanto nos preparamos, chegam os dois ingleses e a mexicana. Os três fizeram cume! Converso rapidamente com eles em busca de algumas dicas. Deixamos o refúgio Huayna Potosí às 12 e 50, caminhando por uma trilha bem demarcada, numa contínua subida pela encosta da montanha. Uma parada obrigatória no Rincón de Huayana Potosí onde se paga pedágio de 10 bolivianos pra fazer o cume. Após mais uma hora de caminhada, atingimos o Rock Camp (5.130 m), o primeiro acampamento alto. Muita gente, sentada nas pedras, aproveita a tarde ensolarada pra curtir o visual. Seguimos em frente, agora, sim, escalaminhando um trepa-pedra em cujas frinchas já há a presença de neve. E embora a aclividade não dê tréguas, chego sem maiores problemas no segundo acampamento alto às 16 e 10. Situado a 5.427 m, o refúgio, uma construção de zinco alaranjada, compõe-se dum vestíbulo que serve de cozinha e doutra peça, maior, ocupada quase inteiramente por rústicos beliches. Largo minha mochila e saio pra fora. Largos trechos do vale de Zongo encontram-se cobertos por um denso nuvaredo ao contrário de ontem quando as nuvens pareciam echarpes adejando no azul do céu. Embora distante uns bons 70 km, o Illimani é perfeitamente visível. E os nevados Chikimani, Telata e Charkini percebem-se bem nítidos já que mais ao alcance dos olhos! Agora, 18:20, as nuvens dantes brancas tingem-se de rosa, banhadas pelos últimos raios de sol poente que colorem dum tom levemente rosáceo três dos quatro cumes do Illimani. Que cenário!! Após a janta, todos se deitam e tentam dormir até a meia-noite, horário convencionado pra levantar. Nem todos, porém, conseguem, caso da australiana que tosse desesperadamente por quase uma hora. E eu! Quase enlouquecida, me sinto uma refém, trancada naquele cubículo, sem poder escapar, sendo obrigada a escutar o som daquela guria tossindo feito um cachorro tuberculoso. A irritação aliada à ansiedade com a expectativa do ataque ao cume impedem que eu relaxe. Sem mencionar as duas vezes que saio pra fazer xixi, graças a essa frouxa da minha bexiga! Se dormi um par de horas, foi muito. Meia-noite, por óbvio, já estou de olho arregaladésimo. E - coisa boa! – primeira vez nestes nove dias, não acordo com minha cabeça latejando. Às 00:45, partimos eu e Roque. Nem se faz necessário o uso da lanterna de testa tão iluminada a noite pela lua cheia. O início da caminhada se dá pela lateral esquerda do glaciar. É um trajeto de 350 m percorrendo uma rampa suave cuja inclinação não ultrapassa 30º. A trilha coberta por neve está bem demarcada. Também pudera, desde junho trocentos grupos vêm-na percorrendo diariamente. Os cristais de gelo brilham à luz do luar. E não resisto ao velho chavão de compará-los a diamantes incrustados no solo....ai ai. Encordoada em Roque, que segue à frente, pareço um cachorrinho sendo levado na guia por seu dono. Vejo o topo duma elevação bem distanciada e suspiro fundo. É pra lá que nos dirigimos. Não sinto falta de ar, apenas cansaço nas pernas causado pelas botas e pelo esforço de pisar com os grampões. São breves as passagens que exigem mais atenção, seja pelas pequenas gretas a atravessar, seja pelos trechos bordejando precipícios. Decorrida duas horas de caminhada, olho e vejo a minha esquerda as luzes amareladas de La Paz brilhando à distância. Uma lindeza de cenário. Estou deslumbrada. Compensa o cansaço que já sinto. Atingimos um platô e nova rampa à frente cuja aclividade deve atingir 40º. E já estamos a 5.800 m, ponto onde muita gente desiste. E então inicia a via crucis. Embora seja um trajeto de 250 metros dura 3 horas. Começo a sentir meus dedos dos pés super frios. Nem ouso dizer que estejam congelados - seria exagero - mas não deixa de ser uma sensação bem desagradável. Embora tenha tirado por breves segundos da mão esquerda a luva acolchoada - mantendo entretanto a de fleece - pra retirar um chocolate da mochila, os dedos tornam-se rapidamente geladésimos, e assim ficam um bom tempo. A temperatura, segundo Roque, beira os - 6º C. Primeira vez na vida que enfrento clima tão frio!! Durante todo o trajeto até a base do monolito rochoso, um cordão tremeluzente de lanternas indica a intensa movimentação de montanhistas rumo ao cume. Pra driblar a fadiga, valho-me do recurso de contar meus passos de 100 em 100, permitindo-me, entre uma centena e outra, um minúsculo descanso, para então recomeçar a caminhada (aprendi isso lendo Tocando no Vazio, com Joe Simpson). Até que distrai um pouco do cansaço o uso desse artifício de concentração. Quando chegamos na base do Huayna Potosí, uma trilha entre penitentes, que conduz à torre norte, quase me faz desistir - e olha que só restam 61 m! Roque, contudo, me incentiva usando a clássica engabelação “son apenas 15 minutos, Beatriz”. E os tais 15 minutos triplicam-se quando alcanço a torre norte, crente que ali é o tal cume. Triste engano! Uma longa e estreita crista, misto de rocha e neve, tem de ser percorrida. Em ambos os lados, um precipício que deve beirar uns 60 m de altura. Ainda não clareou embora na banda oriental uma barra amarelada comece a dar pinta no horizonte. Quando chego ao cume norte às 6 e 30, a lua ainda brilha no céu. Ah, me emociono demais ao ponto de verter algumas lágrimas. E de repente tudo fica cor de rosa!! Uma estupenda paisagem, avivada pela cálida luz matinal, revela a oeste os nevados da cordilheira Real, a leste o onipresente Lago Titicaca e a norte a ainda cintilante La Paz acena boas vindas ao dia que surge. Mal consigo fotografar de tanta gente que há no estreito cume. É um tal de cabeção passando pra lá e pra cá, irritante demais!! Vontade de empurrá-los de modo que não atrapalhem as fotos, hehe. Lá embaixo, macula a brancura do glaciar os vultos das pessoas que ora se dirigem ao cume, ora descem dele. No retorno, um pequeno congestionamento ao longo da crista, provocado pelo tanto de gente que hoje fez cume. Calculo em torno de 70. Coisa mais bizarra essa vida de montanhista: demora-se 5 horas e 30 minutos para vencer um desnível de 661 metros, distância esta que, ao nível do mar, duraria tão somente 8 minutos. Durante os três dias em que permaneci no refúgio Huayna Potosí, olhava aquela monumental montanha e tentava descobrir naquela insondável brancura onde seria a rota normal. E agora estou eu aqui, trilhando-a!! Eu consegui, caramba!! A sensação de exaustão até empana a sensação de triunfo, não dá aquela euforia que eu imaginara. No retorno, à luz do sol, posso então admirar a impecável alvura do terreno, salvo em alguns pontos onde manchas amarelas indicam que alguém ali fizera pipi. Escavadas nas paredes de gelo, brotam grutas de coloração índigo e fendas enormes rasgam o solo congelado. Ao redor, alguns picos mostram apenas uma feição rochosa, sem vestígio algum de neve cobrindo-os. Nos vales, lagunas esverdeadas formadas pelas águas de degelo dos glaciares. Esgotada, desço com vagar as intermináveis rampas, resmungando pros meus botões que não quero mais saber dessa vida de montanha. Quando chego ao acampamento alto às 09 e 50, deito num dos beliches e peço a Roque um tempo. “Necessito 15 minutitos, queridito, para restabelecer mis energias”, lasco num infernal portunhol. Saímos às 10 e 20 e chegamos ao refúgio às 12 e 20. Quando chego a La Paz às 15 horas, antes de ir pro hotel, compro um mapa da Cordillera Real. Durmo 5 horas. Por incrível que pareça, já no avião, retornando ao Brasil, sinto-me, é claro, cansada mas sem sono. Tô pronta pra outra! E que vengam más cumbres!!
Um comentário:
Que beleza, menina! Eu quando estive na Bolívia infelizmente não consegui chegar nem perto de montanh nenhuma tamanho era o desconforto pelo mal da altitude :(
Por aqui segue o baile do doutorado, mas assim que tiver um tempinho vou visitar vc sim, obrigada pelo convite!E vc tamb´m apareça aqui pelos pampas rsrs. Beijocas e boa semana
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